O STF e a Vaquejada

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O STF e a Vaquejada | Juristas
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Introdução

Em 6 de outubro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI no 4983, ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra a Lei no 15.299/2013, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará. Por 6 votos a 5, os Ministros consideraram que a vaquejada impõe sofrimento aos animais e, portanto, fere princípios constitucionais de preservação ambiental.

A vaquejada é uma prática desportiva tradicional no nordeste brasileiro, na qual um boi jovem é solto em uma pista e dois vaqueiros montados a cavalo tentam agarrá-lo pela cauda. O objetivo é fazer com que o animal caia com as quatro patas para cima, demostrando perícia e técnica do vaqueiro. A prática da vaquejada remonta a uma tradição secular sertaneja de captura do animal.

 

1. Conflito entre Direitos Fundamentais: Direito ao Desporto versus Direito ao Ambiente

Os animais são comumente utilizados como forma de preservar e exercitar a cultura de grupos da sociedade. A vaquejada é uma dessas atividades. O direito ao desporto, garantido constitucionalmente, deve ser compatibilizado com a preservação do ambiente.

Os bens ambientais não se afiguram como valor absoluto e prevalecente sobre os demais valores constitucionais. Porém, a vaquejada e as normas que a regulamentam contrariam a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pois não têm finalidades socialmente relevantes (Art. 225, §1º), não condizem com a dignidade humana (Art. 1º, III), não contribuem para construção de uma sociedade livre, justa e solidária (Art. 3º, I) e submetem os animais à crueldade (Art. 225, §1º, VII).

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao vedar condutas que submetam os animais à crueldade, não se refere a qualquer ato praticado contra os animais, mas aqueles desnecessários, inúteis, injustificáveis, repugnantes, caracterizados pela ausência de motivos adequados ou pelo impulso torpe ou fútil em satisfazer um desejo mórbido de ver o animal agonizando.

O Estado brasileiro tem a obrigação de garantir a todas as pessoas o pleno acesso e exercício dos direitos culturais, além de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais (artigo 215 da Constituição).

Apesar de alguns Ministros reconhecerem expressamente a vaquejada como atividade esportiva e cultural e admitirem a importância econômica para a região, concluindo que seria mais conveniente regulamentar a prática da vaquejada do que reprimir uma tradição que pode desencadear na prática descontrolada e criminosa (submetendo os animais a uma crueldade ainda pior), a maioria dos ministros considerou que a atividade impõe sofrimento aos animais e fere princípios constitucionais de preservação ambiental.

 

2. Animais não são coisas

Outro aspecto salutar no julgamento da ADI nº 4983 aconteceu durante o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que fez uma interpretação biocêntrica do Direito e ressaltou que os animais não podem ser tratados como “coisas”, citando os princípios da Carta da Terra, declaração de princípios éticos fundamentais para a construção de uma sociedade justa, sustentável e pacífica.

Esta afirmação de que os animais não são (juridicamente) coisas parece provocativa, entretanto uma evolução legislativa parece iniciar-se neste sentido.

Um dos atuais embates com o qual o Direito se depara é aquele referente à natureza jurídica dos animais. Se dotar os animais de personalidade seria um biocentrismo exagerado e desnecessário, parece possível, todavia, desenvolver uma lógica de proteção dos animais que não implique personificação.

Há uma crescente discussão no sentido da consagração de um tertium genus em relação ao animal, que levou a que os ordenamentos austríaco, alemão e suíço renunciassem à qualificação dos animais como coisas, sem contudo os dotarem de um regime jurídico efetivamente distintivo. Tais alterações reconheceram as particularidades do animal em relação às outras coisas e recordaram o dever de respeitá-los, sem dotá-los de personalidade jurídica.

Deve haver uma mudança da concepção do significado de “coisa”. O animal, por ser vivo e capaz de sofrer, seria protegido por si, admitindo que possa ter alguns interesses na manutenção de seu bem-estar. Mesmo classificados como coisas e objetos de relações jurídicas, esta mudança de paradigma contribui para maior conscientização da condição de ser vivo do animal.

É preciso garantir aos animais um estatuto jurídico compatível com sua natureza de coisas sensíveis, uma vez que maltratá-los degrada também a nossa humanidade. Esta parece ter sido a intenção do Ministro Ricardo Lewandowski na fundamentação de seu voto na ADI nº 4983.

 

3. Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes e proibição da vaquejada em todo território nacional

A Ação Direta de Inconstitucionalidade- ADI é um mecanismo de controle concreto de lei ou ato normativo federal ou estadual. Conforme Art. 102, § 2º da Constituição Federal de 1988 – CF/88, as decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal - STF nas ações diretas de inconstitucionalidade produzirão eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Diferente das decisões com efeitos inter partes, cujos efeitos restringem-se apenas aos litigantes, o objeto da ADI nº 4983, qual seja, a Lei Cearense nº 15.299/13, será retirado do âmbito jurídico e a decisão será executada contra todos.

Coloca-se, no entanto, dúvida sobre a abrangência dos efeitos da decisão proferida na ADI nº 4983 quanto a leis de conteúdo semelhante que possam existir em outros estados brasileiros. Cita-se, por exemplo, a Lei nº 10.428, de 20 de Janeiro de 2015, que reconhece a vaquejada como atividade esportiva no âmbito do Estado da Paraíba.

Neste diapasão, trata-se de refletir sobre a aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes às decisões do STF no exercício do controle concentrado de constitucionalidade.

A Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes tem origem na Alemanha e reconhece a eficácia vinculante não apenas à parte dispositiva do acórdão, mas também aos próprios fundamentos que embasaram a decisão. Ou seja: não apenas a conclusão do acórdão, mas também aquilo que serviu de fundamento para o julgado passaria a vincular os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. Observa-se que apenas as razões principais de decisão (ratio decidendi) vinculariam a Administração Pública e Poder Judiciário, tendo as razões que meramente reforçam a fundamentação (obter dictum) caráter não-vinculativo.

Admitindo-se a Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes, o efeito vinculante da decisão que declarou a inconstitucionalidade da Lei Cearense nº 15.299/13 passa a impedir a vaquejada em outros Estados da Federação.

Após análise criteriosa do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio Mello, que foi acompanhado pela maioria dos ministros, resta evidente a identificação comum do motivo determinante para a declaração de inconstitucionalidade da norma: a ‘crueldade intrínseca’ a qual os animais estão submetidos na vaquejada:

“Tendo em vista a forma como desenvolvida, a intolerável crueldade com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de o boi não sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento. A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada.” (Voto Min. Marco Aurélio Mello na ADI nº 4983, disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4983relator.pdf)

É inequívoca a ratio decidendi, alcançando situações semelhantes, de modo a também considerá-las inconstitucionais. Declarada a inconstitucionalidade da Lei cearense nº 15.299/13 e, havendo no Brasil outras leis idênticas sobre a vaquejada, a decisão de mérito da ADI nº 4983 tem a obrigação de ser observada, vinculando não apenas o seu dispositivo, mas transcendendo-o a fim de alcançar os seus motivos determinantes.

A aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes à decisão que julgou inconstitucional a lei cearense que regulamentava a vaquejada preserva o ordenamento jurídico de atos desarmônicos à CF/88 e contribui para celeridade, eficácia e economia processual. Ao evitar que o STF profira outras decisões com iguais fundamentações relacionadas à mesma conjuntura fática (prática da vaquejada), garante-se uma maior uniformização da interpretação constitucional, respeitando a força normativa da Constituição e conferindo maior segurança ao Estado Democrático de Direito.

Deste modo, resta claro que, com o advento da decisão da ADI nº 4983, a prática da vaquejada está proibida em todo território brasileiro. A decisão servirá de referência para todo o país, sujeitando à punição por crime ambiental de maus-tratos aos animais (Art. 32 da Lei nº 9.605/98). Se admitíssemos que a abrangência da ADI nº 4983 estivesse restrita somente à Lei Cearense, depararíamos com uma incongruência jurídica: haveria prática de crime contra os animais somente no Estado do Ceará, podendo haver vaquejada em outros Estados da Federação.

 

4. Considerações Finais

Embora o STF tenha admitido a vaquejada como tradição cultural secular na região nordeste brasileira, o reconhecimento da crueldade contra os animais durante a prática desportiva fez com que o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado prevalecesse face ao direito ao desporto e manifestação cultural.

A classificação dos animais como coisas sui generis sensíveis deve ser encarada como uma evolução do Direito, que passa a considerar o animal como uma criatura, um ser vivo que deve ser protegido mais do que uma simples coisa inanimada.

Deve-se evitar que triviais interesses lúdicos prevaleçam em face do sofrimento desnecessário dos animais e parece que o Supremo Tribunal Constitucional foi nesse sentido. A Ministra Cármen Lúcia ainda reiterou que há sempre quem defenda que a vaquejada “vem de longo tempo, se encravou na cultura do nosso povo. Mas cultura se muda e muitas foram levadas nessa condição até que se houvesse outro modo de ver a vida, não somente ao ser humano”.

Resta evidente que a crueldade intrínseca a qual os animais estão submetidos na vaquejada foi o motivo determinante para a declaração de inconstitucionalidade da lei cearense. Assim sendo, a partir da aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes há que se chegar à conclusão que houve a proibição da vaquejada em todo território brasileiro.

Ao contrário da farra do boi e das rinhas de galo, a vaquejada faz parte da tradição nordestina e, igualmente, da identificação cultural de parte da população daquela região. A partir de agora, defronta-se com o grande desafio de coibir a prática clandestina da vaquejada. Espera-se que a decisão do STF logre êxito em seus efeitos práticos.

Helena Telino Neves
Helena Telino Neves
Advogada. Bióloga. Professora Universitária. Investigadora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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