Mesmo sem novo pagamento, cobrança de dívida quitada pode gerar devolução em dobro ao consumidor

Data:

Lar das Crianças
Créditos: Zolnierek / iStock

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão de segundo grau que condenou o Banco HSBC a devolver em dobro o valor cobrado por uma dívida já quitada, ainda que o consumidor não tenha chegado a fazer o pagamento infundado. No recurso especial, o HSBC alegava que o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) prevê a devolução em dobro dos valores cobrados indevidamente somente na hipótese de ter havido pagamento.

Os ministros afirmaram que, nas relações de consumo, quando a falta do pagamento impedir a aplicação do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, a solução pode se basear no artigo 940 do Código Civil – o qual ainda estabelece o direito à devolução em dobro, caso a dívida questionada tenha sido demandada judicialmente e se comprove a má-fé do suposto credor.

Para o colegiado, embora o Código de Defesa do Consumidor (CDC) tenha aplicação prioritária nas relações de consumo, a incidência do Código Civil é possível, principalmente quando a legislação específica agravar a situação do consumidor.

O recurso teve origem em ação de reparação de danos movida pelo consumidor contra o Banco HSBC, com o fito de obter indenização a título de danos materiais e morais em virtude da cobrança judicial de dívida já paga. O débito discutido tinha origem em contrato de abertura de crédito para a aquisição de um trator agrícola.

Má​​​-fé

Em primeira instância, o juiz de direito reconheceu que houve cobrança indevida por meio judicial do contrato já quitado pelo consumidor, razão pela qual condenou o Banco HSBC a devolver em dobro o valor de R$ 108.000,00 (cento e oito mil reais), correspondente à dívida cobrada.

A decisão de primeiro grau foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS). De acordo com o TJMS, apesar de o processo tratar de relação de consumo, ficou demonstrada a presença dos requisitos do artigo 940 do Código Civil, inclusive em relação à má-fé do Banco HSBC ao ajuizar ação de execução de título extrajudicial para cobrar dívida já quitada.

Hipóteses disti​​​ntas

O ministro Villas Bôas Cueva, relator do recurso especial interposto pelo Banco HSBC, destacou que os artigos 940 do Código Civil e 42 do Código de Defesa do Consumidor possuem hipóteses de aplicação diferentes. De acordo com o ministro, o artigo 42 não pune a simples cobrança indevida, exigindo que o consumidor tenha realizado o pagamento do valor indevido. O objetivo, destacou, é coibir abusos que possam ser cometidos pelo credor no exercício de seu direito de cobrança.

O ministro Villas Bôas Cueva consignou que, na hipótese dos autos, o valor questionado não foi pago duas vezes e, portanto, não haveria possibilidade de aplicação do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

No entanto, o relator destacou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido da possibilidade de aplicação do artigo 940 do Código Civil quando a cobrança se dá por meio judicial – mesmo sem ter havido o pagamento – e fica comprovada a má-fé do autor da ação. O ministro entendeu ser essa a hipótese dos autos, tendo em vista que o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) destacou que houve má-fé por parte do Banco HSBC, que insistiu em cobrar dívida já quitada, mesmo após a apresentação de exceção de pré-executividade e da sua condenação ao pagamento de multa por litigância de má-fé em embargos à execução.

Valores e ​​​princípios

Segundo o ministro Villas Bôas Cueva, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) é prioritária nas relações de consumo. Destacou, entretanto, que "a aplicação do sistema jurídico deve ser convergente com os valores e princípios constitucionais, não podendo adotar métodos que excluam normas mais protetivas ao sujeito que se pretende proteger – no caso, o consumidor".

O ministro Villas Bôas Cueva manteve o direito do consumidor ao recebimento em dobro, concluindo que a aplicação do CC/2002 é admitida, no que couber, "quando a regra não contrariar o sistema estabelecido pelo CDC, sobretudo quando as normas forem complementares (situação dos autos), pois os artigos 42, parágrafo único, do CDC e 940 do CC preveem sanções para condutas distintas dos credores".

(Com informações do Superior Tribunal de Justiça - STJ)

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO.
RELAÇÃO DE CONSUMO. COBRANÇA JUDICIAL. INDEVIDA. DÍVIDA PAGA.
INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. MÁ-FÉ. DEMONSTRAÇÃO. ART. 42 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE. ARTIGO 940 DO CÓDIGO CIVIL.
REPETIÇÃO DE INDÉBITO EM DOBRO. PRESSUPOSTOS PREENCHIDOS.
COEXISTÊNCIA DE NORMAS. CONVERGÊNCIA. MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. Cinge-se a controvérsia a discutir a possibilidade de se aplicar a sanção do art. 940 do Código Civil - pagamento da repetição do indébito em dobro - na hipótese de cobrança indevida de dívida oriunda de relação de consumo.
3. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte.
4. Os artigos 940 do Código Civil e 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor possuem pressupostos de aplicação diferentes e incidem em hipóteses distintas.
5. A aplicação da pena prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC apenas é possível diante da presença de engano justificável do credor em proceder com a cobrança, da cobrança extrajudicial de dívida de consumo e de pagamento de quantia indevida pelo consumidor.
6. O artigo 940 do CC somente pode ser aplicado quando a cobrança se dá por meio judicial e fica comprovada a má-fé do demandante, independentemente de prova do prejuízo.
7. No caso, embora não estejam preenchidos os requisitos para a aplicação do art. 42, parágrafo único, do CDC, visto que a cobrança não ensejou novo pagamento da dívida, todos os pressupostos para a aplicação do art. 940 do CC estão presentes.
8. Mesmo diante de uma relação de consumo, se inexistentes os pressupostos de aplicação do art. 42, parágrafo único, do CDC, deve ser aplicado o sistema geral do Código Civil, no que couber.
9. O art. 940 do CC é norma complementar ao art. 42, parágrafo único, do CDC e, no caso, sua aplicação está alinhada ao cumprimento do mandamento constitucional de proteção do consumidor.
10. Recurso especial não provido.
(STJ - REsp 1645589/MS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/02/2020, DJe 06/02/2020)
Juristas
Juristashttp://juristas.com.br
O Portal Juristas nasceu com o objetivo de integrar uma comunidade jurídica onde os internautas possam compartilhar suas informações, ideias e delegar cada vez mais seu aprendizado em nosso Portal.

Deixe um comentário

Compartilhe

Inscreva-se

Últimas

Recentes
Veja Mais

TJSP mantém condenação de acusados que aplicavam golpe em locadora de veículos

A 7ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a decisão da 13ª Vara Criminal da Capital, sob a juíza Erika Fernandes, que condenou três homens por associação criminosa, com um deles também condenado por estelionato, relacionado a um golpe praticado contra uma locadora de veículos. As penas impostas, variando entre um e dois anos de reclusão, foram convertidas em medidas alternativas, incluindo prestação pecuniária e serviços comunitários.

Tribunal nega devolução em dobro após depósito realizado por engano

A 2ª Vara Cível de Araraquara julgou um caso envolvendo a devolução de R$ 37 mil que foram depositados por engano em uma empresa após um contrato de securitização de ativos empresariais. Após o acordo, a empresa não mais gerenciava os ativos, mas recebeu indevidamente o depósito de uma devedora. A empresa devolveu o dinheiro 14 dias após o depósito, mas apenas depois que a ação foi ajuizada, o que levou a autora a pedir a devolução em dobro, alegando retenção indevida do montante.

Estado indenizará estudante trans depois de ofensas de professor

A Vara da Fazenda Pública de Guarujá condenou o Estado de São Paulo a pagar uma indenização por danos morais no valor de R$ 8 mil a uma estudante trans, devido a comentários ofensivos feitos por um professor sobre a comunidade LGBT em sala de aula. Além disso, foi estabelecido um pagamento de R$ 800 por danos materiais, referente aos custos com tratamento psicológico que a estudante teve após o incidente.

Ré é condenada por uso de embalagem similar ao da concorrente

A 5ª Vara Cível de Barueri condenou uma empresa do ramo alimentício por praticar concorrência desleal ao comercializar geleias em potes e embalagens muito parecidos com os de uma marca concorrente. A decisão judicial ordenou que a empresa ré cessasse o uso desses produtos e determinou o pagamento de uma indenização por danos materiais, cujo montante será definido na fase de liquidação do processo.