Sintaxe estratégica para advogados

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Pode ser que o tema não lhe traga boas lembranças. De escola éramos infernizados, horas a fio, com “análises sintáticas”. Tempos penosos. Principalmente pra quem não tinha lá muito jeito com as aulas de português. Sujeito, predicado, verbo, objeto direto, locução adverbial, oração subordinada, pronome pessoal do caso reto e assim por diante.

Sintaxe, no entanto, não se resume a isso. Sintaxe trata da organização das frases e orações. No dia a dia da advocacia escrevemos de forma natural, sem que se passe pela nossa cabeça que é possível planejar a ordem das palavras dentro das frases. Essa organização subliminar pode fazer toda a diferença; os bons escritores sabem muito bem disso.

Ou então você acha que um sujeito leva dez anos para publicar um romance apenas por falta de imaginação de como acabar a história? Evidentemente que não. Ou, ao menos, não na maioria dos casos. Os grandes mestres planejam as palavras e as frases, os lugares e até a sonoridade.

Claro, não temos esse tempo todo para peticionar. Porém, é possível sim tomar alguns cuidados ao revisar o seu texto, organizando melhor as suas frases para criar um contexto mais favorável à recepção de sua mensagem. É isso que chamo de sintaxe estratégica.

E se você não está apenas corrigindo o seu texto, mas planejando a primeira escrita, excelente. Pense na big idea do seu pedido. Concentre-se nela. Construa as frases pavimentando o caminho, com ênfase no que deve ter. Não é necessário reforço de adjetivos; tampouco excesso de negritos, itálicos e – principalmente – sublinhados.

Mantra da ordem direta

Praticamente todos os bons livros de redação (e redação jurídica) aconselham a usar a ordem direta. De fato, é mais fácil de entender “O autor requereu a realização de perícia no automóvel” do que “O automóvel, cujo pedido de perícia requereu o autor”. Por algum motivo – ainda indecifrável para mim – nós, advogados, costumeiramente optamos pelas ordens truncadas e indiretas.

Sim, prefira a ordem direta: sujeito, verbo e predicado. Mas não, isso não vale para tudo. Em nossas petições temos temas que são mais importantes. Eles devem ficar mais evidentes; devem vir primeiro inclusive na construção da frase. Então, sim, use também a ordem indireta, quando as palavras que interessam podem ficar na frente de todo o resto.

Repare no singelo exemplo: 1. O autor juntou uma prova ilegal; e 2. É ilegal a prova juntada pelo autor.

As frases acima contêm a mesmíssima informação. Porém, a primeira (1) está na ordem direta e ativa, a segunda, (2) na ordem indireta e passiva. O conteúdo é o mesmo, mas a tônica é diferente. O olhar passa primeiro no que é mais importante. A segunda frase dirige o olhar do leitor, pois começa pelo ponto fundamental de sua argumentação jurídica.

Portanto, a ordem indireta, quando bem colocada, dá mais ênfase ao argumento. Quanto mal utilizada, traz a sensação de obscuridade.

Não utilize sempre a mesma estrutura frasal

Na revisão de sua petição repare bem como você começa os parágrafos. É muito comum que utilizemos a mesma estrutura de frases. As vezes começamos sempre pelo verbo, outras vezes começamos sempre pelos pronomes. Isso torna a leitura monótona (mono-tono: um tom). É como um ritmo repetitivo, um disco riscado. Nem sempre se nota, mas se sente na leitura.

Varie o tom de sua escrita. Comece com verbos, depois alterne para pronomes, substantivos, advérbios, quem sabe adjetivos (ou locuções adjetivas). Tente deixar sempre o que é mais importante na frente, mas evite usar em excesso a ordem indireta. Sei que é difícil entender, por isso vamos aos exemplos:

  1. Verbos:

“É contra a decisão monocrática que se volta esse recurso”;

“Equivoca-se o réu quando afirma que não há prova documental da alegação”;

“Revogada a decisão, o réu retomou o controle da empresa”.

  1. Pronomes:

“Isso ficou demonstrado pelo depoimento da testemunha da parte autora, Sr. João da Silva”;

“Excelência, o pedido é de suspensão imediata dos efeitos da tutela antes concedida”;

“Seu histórico de saúde debilitada desaconselha a participação pessoal em audiência”.

  1. Substantivos:

“A decisão de fls. 100 considerou precluso o direito do réu”;

“O autor postula o levantamento das constrições judiciais”;

“A posse foi exercida ininterruptamente por 26 anos”;

  1. Advérbios e locuções adverbiais:

“Antes da prolação da sentença, o autor juntou nos autos a procuração”;

“Sim, a defesa não nega a existência da negociação narrada na inicial”;

“Possivelmente as testemunhas receberam a mesma orientação antes da audiência;”

“Mais atento está o Ministério Público, que complementou o rol de documentos a serem juntados pelo postulante”;

“Ao contrário do afirmado pela decisão recorrida, a prova da condição debilitada de saúde foi juntada aos autos no Ev. 95”

  1. Adjetivos:

“Egrégia Corte, o pedido é de declaração da nulidade da sentença”;

“O fraco depoimento da testemunha da acusação, Sr. João da Silva, não foi capaz de revelar a presença do réu no local dos fatos”;

“Clara é a sentença nesse ponto”.

* Cuidado: evite a adjetivação excessiva – principalmente com locuções adjetivas. Muitas vezes uma adjetivação mal colocada tem o efeito oposto ao pretendido; expressões como “claríssima sentença”, “gravíssima ilegalidade”, “evidente direito”, podem ganhar a conotação de que se a afirmação fosse verdadeira, não necessitaria do reforço do adjetivo. Infelizmente temos o costume de adjetivar pontos que temos insegurança, e isso transparece na leitura.

Alterne o tempo verbal

Escrever sempre no mesmo tempo verbal também torna a leitura mais cansativa. Alguns exercícios literários propõem que modifiquemos os tempos verbais do nosso texto, mudando o estilo de narrativa. É claro que petição não é obra literária, mas isso não significa que o conselho não possa ser acolhido também para nos ajudar a peticionar melhor.

Ao falar de um fato passado, conjugue o verbo no passado. Por exemplo: 1. Diz a testemunha, que o autor não estava presente naquele momento; 2. Disse a testemunha que o autor não estava presente naquele momento.

Muitos infinitivos podem ser suprimidos, substituídos ou conjugados. Exemplo: 1. A defesa irá promover a juntada do documento em 5 dias; 2. A defesa promoverá a juntada do documento em 5 dias; 3. A defesa juntará o documento em 5 dias; 4. A defesa comprovará em 5 dias.

O mínimo de verbos auxiliares

Ser, estar, ter, haver, fazer. Na maioria das vezes são acompanhantes de outros verbos ou substantivos e podem ser substituídos por verbos mais fortes: intimado em lugar de “foi intimado”; sabia, ou soube, em lugar de “estava ciente”; conhecia, ou conheceu, em lugar de “tinha conhecimento”; compareceu, em lugar de “tinha comparecido”; esteve, em lugar de “havia estado”; protocolou, ou protocolizou, em lugar de “fez o protocolo”.

Polui o texto o uso excessivo de verbos auxiliares, e que normalmente vêm acompanhados do particípio passado dos verbos com mais significado. Quanto menos palavras melhor; quanto mais verbos específicos e fortes, melhor. Verbo é ação, dinamismo.

* O verbo fazer, no entanto, pode ser utilizado para dar ênfase. Ele pode substituir os verbos fortes quando eles já foram ditos na oração anterior. Exemplo: 1. A acusação juntou documentos, a defesa também o fez.

Voz passiva

Está aqui outra mania muito nossa. Abominada pelos manuais de redação. A voz passiva é a omissão do sujeito da ação; é ela que dá um tom neutro nas mensagens que passamos: “a condenação foi proferida” ao invés de “o juiz condenou”; “requer-se” ou invés de “o autor requer”.

Acredito firmemente que não precisamos eliminar a voz passiva de nossas petições. Porém é necessário reconhecer – olha a voz passiva aqui – que a podemos e devemos sim evitar.

O excesso de voz passiva é tão cansativo que passa a impressão de que tudo não passou de uma obra da natureza. Ou então de que o advogado não se compromete, que tem insegurança de afirmar seu ponto de vista. A sentença foi prolatada (por quem?), a condenação foi requerida (por quem?), produziu-se aprova (quem?), presidiu-se o feito (quem?), juntou-se a procuração (?). É claro que o contexto oferece entendimento (ou deveria). Mas alternar a voz passiva com a indicação do sujeito pode contribuir para legibilidade do texto, tornando a leitura mais agradável, menos monótona: A defesa produziu a prova; o juiz sentenciou o feito; a parte autora regularizou a representação processual, etc.

A voz passiva tem o seu lugar de importância; sempre que queremos amenizar a responsabilidade sobre algo ou omitir uma informação que não é foco da nossa discussão. Veja que por vezes necessitamos afirmar firmemente, mas sem acusar diretamente o juiz ou a outra parte. Por isso é possível dizer “A prova foi produzida ilegalmente”, sem apontar alguém diretamente de ter cometido a ilegalidade; “O acusado foi torturado”, sem dizer quem tomou frente em odioso comportamento. Porém, muitas vezes amenizamos ou omitimos o que não deveria ser amenizado ou omitido; por isso é preferível organizar as frases de forma ativa e direta. Steven Pinker dá o exemplo de uma advertência em um modelo de um gerador a gás portátil norteamericano: o adesivo diz “Usar um gerador dentro de casa pode matar você em minutos”.[1] Muito mais persuasivo que dizer que o uso de aquecedores pode ser arriscado e até levar a morte. De qualquer forma, amenizar o discurso também é estratégico; mas faça de propósito, um bom planejamento de sintaxe ajudará.

Elipse

A elipse é a omissão proposital de um elemento da oração. Ela fica subentendida no contexto. Dá elegância e objetividade. Lembro quando, da primeira vez, li uma petição que ao final dizia “requer seja determinado”. Estagiário metido, corrigi o chefe: “o certo é: requer QUE seja”. E ele retorquiu “é assim mesmo que escreve, requer seja, não se preocupe”. Tempos depois, consultando minha velha gramática do Napoleão Mendes de Almeida, foi que aprendi que isso era elipse.

Essa “omissão” é bem-vinda, desde que não deixe o leitor perdido. É possível omitir todo tipo de elemento da frase. No entanto, esse elemento deve estar facilmente subentendido para que não sejamos acusados de ter esquecido a preposição, conectivos, o artigo definido ou indefinido e até o verbo.

Castelar de Carvalho ensina, a propósito da obra de Machado de Assis, que “é possível omitir a preposição de e a conjunção integrante que”, como fez o velho Bruxo na seguinte passagem: “Capitu (…) continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo [de que] fosse ouvida dos pais.”[2] Na literatura temos vários autores que utilizam tão bem esse recurso; Dalton Trevisan, o melhor pra mim.

Em nossas petições, também podemos, por exemplo, referir “Na sala de audiências, apenas juiz, promotor, réu e advogado”. Omitimos o verbo “estavam”, porém ele é facilmente subentendido. Outro: “O pedido de adiamento da audiência seria deferido, não houvesse a oposição do litisconsorte passivo”. Aqui omiti a conjunção “se” (seria deferido, se não houvesse). Ainda é possível arriscar estruturas mais complexas com inversões e elipses: “Morto o réu, extinta a punibilidade” (O juiz extinguiu a punibilidade pela morte do réu).

Esse recurso estilístico tende a aguçar a leitura e, de quebra, economizar palavras e ir direto ao ponto.

Temos muito a falar ainda sobre sintaxe. Mas para o momento já temos muito. Agora é sentar[3], pensar e escrever.

Notas de fim

[1] PINKER, STEVEN. Guia de Escrita: como conceber um texto com clareza, precisão e elegância; Trad. Rodolfo Ilari. – São Paulo: Contexto, 2016, [livro eletrônico, paginação irregular], p. 93.

[2] Dicionário de Machado de Assis: língua, estilo, temas. Rio de Janeiro : Lexikon, 2010, p. 150.

[3] Uma curiosidade: a gramática normativa exige que esse verbo seja acompanhado da partícula “se”. Entretanto, aqui no Brasil a linguagem natural é “sentar”, e não “sentar-se”. Não sou um especialista, mas penso que esse ponto demonstra que temos uma sintaxe diferente de nossos irmãos portugueses, angolanos, moçambicanos e de toda a comunidade lusófona. Para quem quiser se aprofundar no assunto: GALVES, Charlote. A sintaxe do Português Brasileiro. Disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cltl/article/view/7204/6204

Luiz Henrique Merlin
Luiz Henrique Merlin
Advogado criminalista, atua especialmente em casos de crimes empresariais, avaliação e mitigação de riscos, investigações complexas e causas criminais de grande repercussão. Sócio do escritório MERLIN Advogados. Professor da Universidade Positivo. Mestre em Direito pela UFPR.

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