O STJ e o rol da ANS: pela taxatividade declarada, novas técnicas, tratamentos e doenças não existem

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Rogério Reis Devisate Advogado,Não há precedentes na História diante da velocidade com que os cientistas e pesquisadores criam novas tecnologias, descobrem inovadores princípios ativos e desenvolvem outras modalidades de tratamento.

No mundo globalizado ocorre de tudo e com muita agilidade, incluindo o intercâmbio permanente de informações entre governos, instituições e pesquisadores.

Os antibióticos existem há cerca de 90 anos e o Raio X há pouco mais de 1 século. A ressonância magnética surgiu em 1972 e, em 1987, a cirurgia por técnica de videolaparoscopia. Apesar disso, os vírus, bactérias e fungos prosseguem o seu caminho evolutivo. Alguns, alheios a tudo, parecem zombar dos medicamentos, disfuncionando antibióticos, ao se fortalecer e formar cepas mais resistentes.

Os vírus se adaptam e seguem se reproduzindo e matando. O mesmo ocorre com os fungos, das micoses mais simples aos casos mais complexos e que não respondem a tratamento e levam à morte.

A Pandemia do Covid-19, que ainda não acabou, abalou o status quo e exigiu agilidade na adoção de medidas de enfrentamento e no desenvolvimento de vacinas. Estas logo obtiveram registro provisório e emergencial, ficando para depois o registro definitivo.

O aprendizado é diário. Pensar o contrário ofende à lógica de Sócrates, que dizia: “Só sei que nada sei”

A mudança de paradigma na decisão do STJ- o rol da ANS passa a ser visto como taxativo

Ao decidir que é taxativo o rol de procedimentos da ANS, o STJ – Superior Tribunal de Justiça lhe conferiu status de comando absoluto, de sorte que não terá existência jurídica o que
ali não estiver elencado.

Portanto, modifica-se o modo de se categorizar a listagem da ANS: deixa de ser exemplificativa e passa a ser taxativa (numerus clausus).

Isso cria novo paradigma.

Como consequência, as operadoras dos planos ou seguro de saúde estariam desobrigadas de custear tratamentos não existentes naquele rol, se houver outros adequados e disponíveis.

Ao negar existência jurídica ao que não esteja naquela listagem, a decisão do STJ – Superior Tribunal de Justiça (1) reflexamente não reconhece hipotético direito a quem precise de remédio, tratamento ou técnica, que ali não esteja elencado e (2), como outra face da mesma moeda, só visualizaria direitos sobre o que ali esteja expresso.

Ao se trazer isso aos corredores dos fóruns e à realidade das partes e dos Juízos, poder-seia dizer que não estaria sujeita a acolhimento a própria Petição Inicial que viesse a postular algo não ali expressado, pois, pela tese do STJ – Superior Tribunal de justiça, não tendo o suposto direito, inexistiria fundamento para a pretensão a ser deduzida em Juízo.

Além disso, aquela decisão alcança as ações em curso e se refletirá nos seus julgamentos.

A novidade não está em se interpretar como não flexível as regras de Direito Administrativo. Até aí não há nenhuma novidade no Sistema Jurídico.

O ponto sensível e controvertido está na mudança da qualificação da natureza jurídica da listagem da ANS – Agência Nacional de Saúde.

É importante fixar este pequeno e fundamental aspecto, pois são os “detalhes” que fazem a diferença. O que estava em julgamento não era a natureza de um ato administrativo. O punctum saliens era a natureza e qualidade jurídica da listagem da ANS.

Este aspecto é mais importante do que parece, mesmo quando a Corte Superior admite a possibilidade de haver outro tratamento, pois o faz por meio do uso da conjunção condicional “se”. Embora a questão aparente representar mera posição jurídica, se nos parece traduzir qualidade jurídica e, portanto, algo mais duradouro e estável.

Aquela conjunção condicional (“se”) envolve os eventos futuros e incertos.

Portanto, é providência que estará na dependência de várias circunstâncias, algumas já expressas naquela decisão, como a ausência de indeferimento da ANS para a incorporação do procedimento extra no rol da saúde complementar.

Antes de avançar, vamos nos prender ao que consta no parágrafo anterior, pois parece que isso significaria dizer que, se a ANS decidir indeferir, nada a respeito se poderia fazer.

Isso é algo extremamente complexo no Estado Democrático de Direito, porquanto se qualificaria decisão administrativa, a cargo do Poder Executivo, como absoluta, dogmática e inquestionável!

Curioso que o Judiciário as trate como irrecorríveis, enquanto as suas próprias decisões judiciais sejam passíveis de recurso...

Além disso, se exige a comprovação da eficácia do tratamento, a recomendação de órgãos técnicos e, quando possível, a realização de diálogo interinstitucional do juiz com experts na área da saúde.

Aquele “se” antes referido expressa mais do que parece. Nele moram o subjetivismo e a necessidade de prova.

Ocorre que o próprio STJ – Superior Tribunal de Justiça possui a Súmula 7, que o impede de avaliar ou reavaliar o conteúdo fático e probatório dos recursos.

Xeque-mate.

Além disso, aquela decisão prevê que o cidadão/paciente/familiar/cliente possa ampliar as coberturas básicas, por meio de aditivo contratual, para incluir procedimentos extras. Em tese, tudo o que não for proibido pode ser feito. Isso não precisa constar em decisão judicial, já que a lei o diz.

O que, aqui, importa considerar, é que só poderá vir a ser feita contratação extra se (de novo, como evento futuro e incerto) a pessoa (o cliente ou a sua família) tiver dinheiro para isso! Mesmo sem a contratação extra, o endividamento das famílias certamente se agravará ante o imenso iminente impacto do cogitado aumento de 15% nas mensalidades dos planos de saúde.

A reforma do judiciário não afetou a redação original do texto constitucional, sobre a saúde

Essas questões de economia familiar e dos impactos da crise e dos mercados nos lares das pessoas não importam, diante do teor do Documento Técnico 3192, do Banco Mundial, datado de 1996, que serviu de base para a Reforma do Judiciário no Brasil, há cerca de 20 anos.

Naquele Documento, lemos os seguintes trechos: “a economia de mercado demanda um sistema jurídico eficaz [...] os mercados se tornam mais abertos e abrangentes [...] estas instituições contribuem com a eficiência econômica”.

Economia e mercado, mercado e economia.

O Banco Mundial propôs e o Congresso aprovou a reforma do Judiciário para atender aos
mercados e aos operadores do fluxo de capital?

Observemos que o rotativo dos cartões de crédito gerou taxas de juros de cerca de 350%3
e que os bancos têm lucrado bastante nas últimas décadas.

Por sorte, não foi atingida a redação original da Constituição Federal de 1988, que
aborda a Saúde em capítulo próprio, como garantia e direito de todos e dever do Estado
(art. 196).

É muito interessante perceber que a Constituição cuida da Saúde e só remete ao legislador inferior o trato das ações de regulamentação, fiscalização e controle das atividades do setor (art. 197).

Não é comum que o peixe pesque o pescador!

Portanto, não podem as atividades exercitáveis em plano inferior ao nível constitucional gerar interpretação que corresponda a limitação do exercício de direitos e garantias que a Constituição Federal definiu como plenos.

A previsível sobrecarga do sistema público de saúde, pela iminente migração dos que não puderem pagar as mensalidades e, “do próprio bolso”, os tratamentos não incluídos na listagem

Há detalhe que talvez devesse passar despercebido: ao atribuir o status de rol taxativo à lista da ANS, o STJ – Superior Tribunal de Justiça deixou vulneráveis os consumidores, os pacientes e os familiares, diante dos altos custos dos planos de saúde e da expressa admissão de contratação de cláusulas extras.

É dispensável bola de cristal para se perceber que haverá sobrecarga do sistema público de saúde.

O aumento vegetativo natural - decorrente do aumento da população – é incrementado pelo endividamento das famílias, decorrente da crise existente e que se agrava há anos. 

Aquele aumento da procura por serviços públicos de saúde será agravado pela migração dos que não puderem suportar os altos custos do sistema privado...

Como se isso não bastasse e, por si só, não fosse já grave o bastante, haverá  também a migração dos que deixarão de ter capacidade de pagamento do valor das mensalidades dos planos e seguros saúde exatamente porque doravante terão de pagar “do próprio bolso” para custear os tratamentos não cobertos pelos planos, já que não previstos na tal lista da ANS !

Qual o universo de pacientes e familiares atingido por tal decisão, notadamente envolvendo pessoas portadoras de doenças raras ou que não respondam aos tratamentos convencionais? 

Além do mais, os casos menos comuns são os que reclamam mais atenção e ocasionam maior gasto. 

A crueldade está em se negar o óbvio, para quem sente dor ou vê a sua doença se agravar. 

Ao valorizar tanto a lista da ANS, reflexamente o STJ fecha os olhos ao mundo e se desinteressa das novas técnicas, tratamentos e doenças

A comentada decisão parece se antecipar ao tempo e desde já negar para o futuro qualquer novo tratamento ou técnica, por mais eficaz que seja, “se” e enquanto não incluída na listagem da ANS.

Em certa medida, reflexamente nega também a existência de novas doenças ou diferentes formas de manifestação das já existentes.

O uso da conjunção condicional se tem alcance curioso neste caso, pois, em certa medida, nega também a possibilidade de surgimento de novas doenças – já que só reconhece algo que esteja regrado no tal rol da ANS e doenças novas exigiriam remédios ou técnicas novas...

“Vale-tratamento futuro” não é garantia de nada, para quem precisa dele hoje.

Aliás, as coisas não ocorrem com tanta agilidade quando se trata da inclusão de nova técnica ou remédio, pois a atividade envolve sérios estudos e pesquisas. Nada costuma ser tão rápido como o que ocorreu com vacina contra o Covid, havendo exemplo de requerimento de 24.3.2021 que já foi aprovado em 31.3.2021.

Outro aspecto importante: será que a decisão do STJ – Superior Tribunal de Justiça não fere a Soberania do Ato Médico

Parece que, com a nova decisão, mudará a orientação da Corte, que assim vinha decidindo:

 “Quem decide se a situação concreta de enfermidade do paciente está adequada ao tratamento conforme as indicações da bula/manual da ANVISA daquele específico remédio é o profissional médico” [...] A ingerência da operadora, além de não ter fundamento na Lei 9.656/98, consiste em ação iníqua e abusiva na relação contratual, e coloca concretamente o consumidor em desvantagem exagerada”.

A indagação se fortalece na medida em que o próprio Conselho Nacional de Saúde – CNS, colegiado vinculado ao Ministério da Saúde, entende que o rol taxativo limita benefícios e inviabiliza atendimentos.

Enfim: há doenças tradicionais e doenças novas, o raro hoje pode se tornar algo mais comum no futuro, a natureza não produz linhas retas e as doenças não sabem ler.

De modo mediato, reflexo, indireto, aquela decisão freia o exercício pleno da Medicina, na medida em que sujeita os profissionais a depender da lista da ANS para atuar, servindo de exemplo os casos de prescrição de tratamentos off label (mencionado no precedente do próprio STJ – Superior Tribunal de Justiça, em parte acima transcrito).

Recursos possíveis e a salvaguarda constitucional

Não podemos deixar de observar aspectos processuais imediatos, relacionados ao caso, sendo crível que o recurso de Embargos de Declaração não tem outro propósito senão o aclaramento do julgado, razão pela qual não se nos parece hábil a gerar qualquer modificação na matéria de fundo.

A Modulação dos Efeitos também não interessa, na medida em que não modificaria o julgado, que já declarou que é taxativo aquele rol.

Com isso, o único caminho seria recurso à Suprema Corte, alvitrando confrontar o decisum em comento com o escudo protetor - o texto constitucional.

Consideração final

Por fim, agora, com calma, respire. 

Feche os olhos. 

Imagine um ser humano sofrendo, sentindo dores insuportáveis... definhando lenta e dolorosamente, numa cama de hospital. 

Como será que a pessoa receberia a notícia de que há tratamento ou remédio que serve para a cura ou o alívio da sua dor e que não está disponível para o seu uso, por conta dessa decisão judicial?

Rogério Reis Devisate
Rogério Reis Devisate
Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Associado ao IBAP e à UBE. Autor de vários artigos e dos livros Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilagem das Terras e da Soberania. Instagram @rogeriodevisate

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