Direito Aplicado: Cuidados necessários ao discutir dívida em juízo

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Créditos: Rodrigo Bellizzi | iStock
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Créditos: Rodrigo Bellizzi

Por Tiago Bitencourt de David*

Caro leitor,

Iniciamos aqui, juntos, um passeio sobre alguns instigantes aspectos da aplicação prática do Direito, investigando possibilidades, rastreando as raízes históricas e sociais dos entendimentos alcançados e desvendando nuances de questões importantes que nem sempre abordadas. Longe de buscar-se a polêmica pela polêmica, recusando-se a projeção fácil e efêmera, aqui será um espaço de reflexão sobre a aplicação cotidiana do Direito, especialmente no meio forense, mas sem descambar para o praxismo e para a mera paráfrase de leis e entendimentos, fenômeno comum em escritos na internet e em manuais.

Entre a crítica pela crítica e o comentário estéril há um campo fértil para avançarmos em diversas discussões que se revelam decisivas para o jurisdicionado e para os operadores do Direito. Nesta coluna semanal, abordaremos temas candentes que impactam diariamente na prática jurisdicional sobre os quais entendemos que se impõe a projeção de novas luzes.

A primeira contribuição nesta coluna Direito Aplicado versa sobre questões corriqueiras, às vezes incompreendidas, envolvendo tanto ações revisionais quanto insurgências do executado em face da pretensão executiva que lhe é oposta. Por fim, é abordado o caráter relativo da prioridade da constrição de dinheiro em face de duas exceções legais nem tão conhecidas.

Aquele que se diz compelido a pagar mais do que realmente deve possui o ônus de declinar, fundamentadamente, a quantia incontroversa e a parcela controvertida, adimplindo a primeira enquanto é debatida a segunda. Não fazia sentido o debate a respeito do excesso da exigência quando sequer era identificado, pelo devedor, o quanto entendia como efetivamente devido e, por isso, em boa hora o legislador, em mais de uma oportunidade (art. 50 da Lei Federal 10.931/2004, art. 475-L, § 2º, do CPC/73 acrescido pela Lei Federal 11.232/2005, art. 285-B do CPC/73 acrescentado pela Lei Federal 12.810/2013, bem como arts. 330, § 2º e 3º, 525, §§ 3º e 4º e 917, § 3º, do atual CPC), passou a exigir a discriminação do quanto está sendo controvertido e pagamento normal do valor incontroverso.

Além disso, a mera discussão judicial sobre o montante controvertido não tem o condão de, por si só, obstar a exigibilidade de tal valor, esteja ou não o mesmo sendo objeto de cobrança em juízo. A mera alegação de excesso não fulmina a liquidez do título executivo e nem obsta a eficácia natural de contrato.

O valor objeto de controvérsia pode ter sua exigibilidade imediata afastada no caso de antecipação de tutela em ação revisional, podendo ou não ser exigido o depósito do montante controvertido, a depender das circunstâncias do caso, sendo evidente que, depositado, afasta-se o perigo na demora reverso, resguardando-se o interesse do credor enquanto debate-se o real quantum debeatur. É condição para o deferimento de pedido de antecipação de tutela que obsta a retomada de bem móvel ou imóvel que garantia a dívida e geralmente é o objeto do financiamento que o valor incontroverso não apenas seja discriminado, mas que continue sendo regularmente adimplido, ainda que a continuidade do pagamento do valor induvidoso não se afigure como condição para o prosseguimento da ação judicial.

Nos raros casos onde é deduzido, em sede de ação revisional, pedido de antecipação de tutela que se limita ao valor controvertido, sem pleito de abstenção da retomada de bem, é até possível o deferimento da tutela de urgência sem o respectivo pagamento do valor controvertido, desde que presente a verossimilhança da cobrança ilegal na parte que sobeja o débito admitido e risco da cobrança indevida gerar prejuízo sério ao devedor na ausência de inibição da exigência, em princípio, indevida. Não é de afastar-se, ainda, casos de tutela de evidência para decotar cobrança exorbitante, ainda que isso ocorra de forma incomum.

Se a hipótese for outra, de execução movida em desfavor do devedor que a impugna ou embarga, alegando excesso, então poderá ser atribuído efeito suspensivo à medida defensiva no que tange ao valor objeto de discussão, desde que haja pedido nesse sentido, tenha o débito sido garantido judicialmente, haja verossimilhança nas alegações do executado e a continuidade da execução revele-se manifestamente capaz de gerar ao cobrado grave dano de difícil ou incerta reparação (arts. 525, § 6º, e 919, § 1º, ambos do CPC). Note-se que a garantia do débito pode ser em dinheiro, mediante a penhora de bem idôneo, seguro-garantia, fiança bancária ou outra forma de resguardar a efetividade da exigência no caso de rejeição da alegação do executado.

Em casos de evidente, manifesto, abuso executivo, cabe o controle jurisdicional de ofício e independentemente de garantia do débito, antes ou depois de intimado/citado o executado, não podendo o Poder Judiciário simplesmente chancelar execuções claramente iníquas, que desbordem do título executivo, seja o mesmo judicial ou extrajudicial, inclusive valendo-se da contadoria do juízo para aferir o aparente excesso e limitando-se a penhora ao valor reputado, em cognição sumária, como sendo aquele devido (art. 525, § 1º e 2º, do CPC).

Postas as balizas acima, cumpre ainda ter em vista duas alterações importantes levadas a efeito pelo CPC no que diz respeito ao modo de satisfazer o exequente, a saber: o da prioridade da excussão do bem dado em garantia e o da substituição da penhora de dinheiro. Em comum, a prioridade da constrição de dinheiro, ainda que exista, assume status relativo nos dois casos sob exame.

Note-se que, enquanto no regime jurídico do art. 655, § 1º, do CPC/73, a penhora deveria recair, preferencialmente, sobre o bem objeto da garantia, o art. 835, § 3º, do atual CPC passar a tratar a questão em termos peremptórios, prestigiando a alienação do bem sobre o qual constituiu-se o direito real do credor, inovando, assim, a ordem jurídica. E por isso Bruno Garcia Redondo ensina que “na execução de crédito com garantia real, a penhora deve recair, obrigatoriamente, sobre a coisa dada em garantia”.

Já a segunda hipótese é aquela na qual substitui-se a penhora em dinheiro por seguro-garantia ou fiança bancária, desde que em valor 30% maior do que o montante do débito (art. 835, § 2º, do CPC). É direito do executado ver a penhora do dinheiro ser substituída pela garantia ofertada quando cumprido o quanto exigido no art. 835, § 2º, do CPC, não ficando tal proceder submetido à anuência do exequente e nem ao sabor da discricionariedade judicial. Note-se, ainda, que a exigência do acréscimo de 30% diz respeito à substituição da penhora, não impondo-se para fins de garantia do débito e obtenção de certidão de regularidade fiscal (positiva com efeitos de negativa). Note-se que a apresentação de seguro-garantia ou de fiança bancária, ainda que confira direito à obtenção de certidão de regularidade fiscal, não suspende a exigibilidade do crédito tributário que fica, assim, garantido, mas não tem sua pretensão obstada.

*Tiago Bitencourt de David é Mestre em Direito (PUCRS); especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER), em Contratos e Responsabilidade Civil (Verbo Jurídico); Pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (Toledo/Espanha) e Bacharel em Filosofia (UNISUL). Atua como Juiz Federal Substituto na Terceira Região.

¹WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, et al. Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 1.930.

²Nesse sentido: TRF3, AGRAVO DE INSTRUMENTO - 584270 / SP
0012356-46.2016.4.03.0000, julgado em 03.05.2018; TRF3, AGRAVO DE INSTRUMENTO / SP
5015580-67.2017.4.03.0000, julgado em 22.03.2018.

³Nesse sentido a súmula 112 do STJ: “O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro.”.

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