Oito coisas que devem ser ouvidas no início da Faculdade de Direito

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Por Bruno Torrano*

1) Faculdade não é recreação. Faculdade não é moleza. Faculdade é lugar de sentar a bunda na cadeira e ler. Ler muito. Ler coisa que gosta e coisa que não gosta. Ler até cansar. E, quando cansar, tomar café e ler mais um pouco. É lugar de aprendizado. É lugar de humildade intelectual. É lugar para perceber que somos pequenos e limitados. Que sabemos pouco e que há aqueles que sabem infinitamente mais. Que há pessoas melhores do que nós. E que nossos antepassados também estudaram. Produziram conhecimento relevante. Viveram, leram, debateram e morreram. E, de legado para nossa geração, deixaram livros imortais.

2) Faculdade não é lugar de “luta política” se “luta política” for entendida especificamente como tentativa de impor aos outros, por força, agressão, bagunça ou gritaria, a visão de mundo que te agrada. Faculdade não é tentativa de calar aquele que pensa diferente. Faculdade é local de debate cortês e racional. É local de saber controlar emoções primitivas. É local de empatia. É local para pensar e discutir ideias divergentes. É local para pensar melhores alternativas ao que temos, hoje, aí. E melhores alternativas só aparecem quando não nos dispomos a engessar nossas próprias ideias como se fossem verdades eternas. Por mais que doa, você pode estar errado. E não há vergonha nenhuma em estar errado. Melhores alternativas aparecem quando temos a sabedoria de fazer o debate continuar fluindo, a despeito de nossas divergências.

3) Faculdade não é curso preparatório para concurso público. Entenda: não há nada de errado com cursos preparatórios, mas o propósito da faculdade é outro. Faculdade não é local para aprender a marcar X. Faculdade não é local para decorar lei ou informativos do STF. É local de conhecimento aprofundado, vertical, multidisciplinar. É local de ler livros difíceis de outros países em outras línguas, é lugar de ler livros densos e complexos historicamente importantes. É local de saber examinar questões do ponto de vista crítico, e não apenas com base na resposta que a banca do concurso considera correta (mas que, muitas vezes, não é).

4) O direito é uma prática argumentativa. É preciso saber argumentar. Tanto na escrita quanto na fala. É preciso estudar o que é um argumento. É preciso saber estruturar argumentos com boas razões. É preciso saber o que são boas razões. É preciso saber identificar e analisar criticamente a estrutura argumentativa elaborada pelo adversário. Livros de argumentação e de lógica devem ficar na cabeceira da cama. E acompanhar o estudante durante toda a faculdade. Saber argumentação não é apenas uma questão de conhecimento para petições ou audiências. É vital para a própria autodefesa. Para desnudar não só aqueles que elaboram raciocínios absurdos, como também aqueles que, com malícia, tentam nos manipular a todo o momento.

5) Na condição de estagiário, a culpa sempre será sua. Não interessa o quão seu superior está errado, ele sempre achará um modo de jogar a culpa no seu colo. No trabalho, você nem sempre vencerá. E nem sempre terá um bom salário. Aliás, é provável que suas primeiras remunerações sejam horríveis. Se você ficar desempregado, é recomendável que tenha um currículo brilhante. Não só bom. Brilhante. Ser bom não é o suficiente. Haverá dias que alguém será mais inteligente que você. Haverá dias difíceis em que você duvidará da própria capacidade. Haverá críticas o tempo todo. O direito lida com problemas. O direito lida com questões moral e politicamente sensíveis. E as pessoas, em geral, não se sentem bem ao serem contrariadas. Você deve aprender a conviver com ataques à sua pessoa. Largar a zona de conforto. E não se deixar estressar por isso. O preço de se destacar é sujeitar-se à opinião dos outros. Mesmo que essa opinião seja injusta e infundada.

6) Juristas, como quaisquer pessoas, têm muitos defeitos. Há juristas que pensam ter credenciais para falar sobre assuntos que não conhecem pelo simples fato de serem juristas. Há juristas vaidosos. Tanto na universidade quanto na prática judicial. Há juristas que são extremamente indulgentes consigo mesmos. Há aqueles que nunca erram. Ou que só erram quando pensam estar errados. Há aqueles que sempre posam de críticos. Porque criticar tudo a toda hora dá ibope. E faz parecer mais inteligente. É preciso saber relacionar-se civilizadamente com todas essas pessoas. Elas podem melhorar com o tempo. E elas têm defeitos: mas você também tem muitos.

7) Ler livros em outras línguas é fundamental. Em particular, ler em inglês é imprescindível. Há muitos livros excelentes que, por interesses editoriais, não são traduzidos para o português. Você não pode ser refém das opiniões dos professores. Você deve formar o seu próprio ponto de vista. Mas de modo responsável. Com leitura, estudo e reflexão. Outras línguas facilitam esse processo. Aprender outra língua, ademais, é enxergar o mundo de outra maneira.

8) O direito não é o que você pensa ser justo. O direito, na maior parte do tempo, não está nem aí para sua opinião pessoal sobre esta ou aquela questão. Ele age e ponto final. O direito não é um mundo encantado. O direito pode ser decepcionante. O direito pode ser terrivelmente seletivo. O direito pode ser imoral. O direito pode ser ineficiente. O direito pode ser burro. O direito pode ser ilógico. O direito pode ser omisso. O direito é um artefato utilizado por pessoas que querem exercer algum tipo de poder sobre você. Enquanto houver legisladores corruptos, ignorantes e dissimulados, normas ruins serão criadas e a engrenagem continuará funcionando. É preciso saber identificar as falhas do direito e propor mudanças de forma inteligente e realista. Isso demanda não só estudo, mas também astúcia.

*Bruno Torrano é Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça e Professor do IDP/Brasília.

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