Especial: O colapso do indivíduo

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O conceito moderno de indivíduo[1] é, particularmente, um conceito de sistema de afetos, no sentido de “ser proprietário de minha própria pessoa” conforme afirmou John Locke e o medo (pois o outro é sempre um invasor em potencial).

Procura-se sofregamente construir e analisar as consequências políticas deste primado do indivíduo com seus afetos, assim como levantar os caminhos para sua superação através da recuperação de certos aspectos da teoria freudiana.

Contemporaneamente estamos nos encaminhando para o chamado medo patológico e absoluto de tudo que é heterônomo, ou seja, diferente de mim. È a incapacidade de entender que nem sempre a heteronomia signifique servidão ou subjunção.

Enfim, é a capacidade de autorreconhecer no que é involuntário que significa liberdade. A capacidade de abrir-me para aquilo que não seja a imagem e semelhança de mim mesma.

Estamos fatidicamente atrelados a imagem de que a vida social, seja como uma associação de indivíduos, cada qual defendendo seus interesses e suas identidades.

Precisamos entender que os afetos dos indivíduos é o que constrói vínculos sociais e, dá ritmo a toda dinâmica político-social.

Temos que aceitar os afetos dos indivíduos, principalmente o medo e a esperança. O medo, por sua vez, dentro das origens da filosofia política com Thomas Hobbes que trouxe uma reflexão de que o medo como afeto político central para a coesão social.

Hobbes é defensor da ideia de contrato social e, o medo é motor chave para a necessidade desse contrato. Ao viverem em estado de natureza, os homens estão propensos a sua imaginação, donde pela honra, eles ficam fadados a imaginar que a guerra entre estes não tem fim.

Portanto, a figura do homem é retratada como o lobo do homem. Afinal, sem a espada que lhes imponha o respeito, o acordo não serve para atingir os objetivos a que lhe propõe. Desta forma, o filósofo inglês justifica o contrato social.

A sociedade é um composto de indivíduos que não tem relação natural entre si. Pois todos os indivíduos são impulsionados pelo desejo, onde todos têm direito à tudo, o que nos leva a uma situação belicista e concorrencial.

A guerra e o conflito de todos contra todos e, significa a única maneira de impedir essa guerra declarada ou implícita, é instituir o poder soberano do Estado que vai proteger um cidadão de outro.

Precisa-se da soberania[2] encarnada na figura do governante. O poder tem como principal atribuição de regular as relações sociais, formando a segurança e protegendo os cidadãos, uns dos outros. Ou seja, eu protejo, logo obrigo, eis o mantra do Estado. Eis o cogito ergo suum do Estado.

O soberano de Hobbes é simultaneamente o bombeiro e o piromaníaco como mencionou Carl Schmidt. Afinal, a todo instante o Estado tem que nos lembrar da insegurança para exatamente nos vender a segurança. Vindo até mesmo produzir novas inseguranças para que então a segurança seja novamente instaurada.

A noção do medo como elemento decisivo político, tal como o afeto político central que está relacionado à ideia do indivíduo como o proprietário de sua pessoa.

Macpherson que cogitou sobre o individualismo possessivo, porque ser “eu mesmo”, eu ter a jurisdição sobre mim mesmo, assumir regiamente minhas responsabilidades, significa que sou composto de propriedade, de bens, e de predicados (o que garante uma particularidade), o que traça certa consensualidade mercantil, muito bem materializada num contrato.

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C. B. Macpherson[3] apresentou em uma de suas obras, “A Democracia Liberal” onde pretendeu trazer a radiografia da sociedade democrática contemporânea, como desdobramento das teorias políticas do individualismo possessivo.

Foi o trabalho de Hobbes e Locke que deram o início de argumentação sobre os pressupostos fundantes da democracia liberal, com base o mercado, na propriedade privada como determinantes das relações sociopolíticas.

As diferentes e variadas relações e demandas que se estabeleceram no âmago das sociedades contemporâneas sob a forma de Estado de Direito, representando o derradeiro modelo do Estado do Bem-Estar Social.

Percebe-se assim o progressivo estreitamente da participação dos cidadãos, em diversos setores da sociedade civil dentro do modelo do Estado Liberal moderno, cujas prerrogativas fundam-se apenas na defesa e garantia das liberdades individuais formais, sem se preocupar com a efetivação de condições materiais dos cidadãos.

Assim, a atividade política torna-se missão de “especialistas” e resta menor espaço para a participação educativa. Mas ainda é possível um sujeito capaz de agir tendo em vista a abertura para questionamentos e crítica.

Enfim, o que acontece na política contemporânea[4] reproduz o que já acontecia na vida psicológica do sujeito, onde se detecta sensível perda de confiança na capacidade de fazer.

Ainda hoje temos a noção de que onde exista o indivíduo, existe a liberdade. E, além de que fora da ideia do indivíduo, só existe o caos.

Então, nossa liberdade é pensada sobre a figura do livre-arbítrio. O livre-arbítrio é uma liberdade contingenciada, onde tenho opções, tomo decisões a partir de escolhas racionais.

É preciso reconhecer e aceitar que em nós, habito o inconsciente e somente o reconhecimento da necessidade, poderá nos conduzir a autêntica liberdade.

O colapso do indivíduo nos apresenta quando a atuação coletiva pode ser uma ação com todos os elementos de indivíduos presentes.

E, pensar o coletivo significa pensar o que é comum, e que não representa algo a ser apropriado por outros. O que é comum e que acaba prevalecendo sobre o individual.

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Gisele Leite | Créditos: Divulgação

Gisele Leite

Gisele Leite é professora universitária. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. E-mail: [email protected].

 

 

 

Referências

OLIVEIRA. Neiva Afonso. Cidadania e Participação. Política: uma contribuição ao debate a partir de C. B. Macpherson. Disponível em: www.revistas.ucpel.tche.br/index.php/rsd/article/download/583/523 Acesso 02.10.2018.

MACPHERSON, Crawford Brough. A democracia liberal (1977). Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MACPHERSON, Crawford Brough. A teoria política do individualismo possessivo (1962). Trad. Nelson Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social (1757); Ensaio sobre a origem das línguas (1759?); Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755); Discurso sobre as ciências e as artes (1749). Trad. Lourdes Santos Machado; introduções e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).

NEPOMUCENO, Bruno Aparecido. A guerra de todos contra todos e a luta pela vida em Thomas Hobbes. Disponível em: http://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=1479Acesso em 02.10.2018.

HOBBES, Thomas. Do cidadão. 3. ed. Tradução de Janine Ribeiro. São Paulo: Martins fontes, 2002. Original inglês. (Clássicos).

______. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

CHAUÍ, Marilene. Cidadania Cultural – O Direito à Cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

 

NOTAS DE FIM

[1] Percebe-se que a noção de indivíduo é relativamente recente, e surgiu exatamente com a emergência do mundo moderno. O indivíduo moderno surgiu por conta do capitalismo industrial e fora acompanhando as mutações, sobretudo, a partir do século XVIII. O termo indivíduo surge, primordialmente, como uma acepção lógica, sem nenhuma referência à pessoa humana e, é a tradução latina de atomon. Concluíram Adorno e Horkheimer demonstraram que desde seu aparecimento o conceito de indivíduo designa algo concreto, fechado e autossuficiente.

[2] Marilene Chauí coloca que o conceito de hegemonia indaga sobre as relações de poder e a origem da subordinação e obediência voluntárias, ultrapassando o conceito de ideologia pois envolve todo o processo social “vivo como uma práxis”.

[3] Crawford Brough Macpherson. (1911-1987) importante cientista político canadense que lecionou Teoria Política na Universidade de Toronto. Sua contribuição mais famosa feita à filosofia política é a teoria do “individualismo possessivo”, em que um indivíduo é concebido como o único proprietário de suas habilidades e nada deve à sociedade para estes. Tais habilidades e as de outro são uma mercadoria a ser compra e vendida em pleno mercado aberto. E, em tal sociedade é demonstrada uma sede egoísta e interminável de consumo que é considerada o núcleo crucial da natureza humana. Passou a maior parte de sua carreira acadêmica lutando contra essas premissas, mas talvez, a mais expressiva expressão individual pode ser encontrada em The Political Theory of Possessive Individualism, onde examinou a função desse tipo particular de individualismo em Hobbes, Harrington e Locke, Levellers, e sua disseminação resultante na literatura mais liberal do período. Por ser um socialista declarado, acreditava que essa cultura do individualismo possessivo impediria os indivíduos de desenvolver seus poderes de racionalidade, julgamento moral, contemplação e, até mesmo, amizade e amor. Esses eram para o canadense “verdadeiros poderes humanos”.

[4] Pensar o indivíduo “com e para” esta sociedade é apreender tensões, conflitos e seus subsequentes sofrimentos e contradições. O que não significa condená-lo ao que está posto e tão pouco conceber este mesmo indivíduo como determinado e subordinado a ordem vigente.

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