No contrato de trabalho desportivo a liberdade das partes fixarem o conteúdo dos contratos sofre drástica limitação, conforme restará demonstrado. Todo o Direito é criado pelas pessoas e para as pessoas, e nasce como a consequência da convivência entre as pessoas num mesmo espaço social.
Na lição do jurista brasileiro Caio Mário da Silva Pereira, a relação entre os indivíduos sempre foi pautada por uma norma ou uma regra de conduta.
A independência e a autonomia da Teoria Geral do Direito é assunto polêmico e não unânime.
Podem ser destacados princípios universais, cuja finalidade deve ser o bem-estar e a felicidade do cidadão, sendo que cada um desses princípios de direito civil exprime uma realidade específica.
A autonomia é a liberdade conferida às pessoas para se regerem e vincularem a si próprias, uma perante as outras, de prometerem e de se comprometerem, excedendo, inclusive o âmbito do Direito Civil, pois abrange o conceito de autodeterminação no Direito Internacional Público e do Poder Constituinte.
Na lição de Pedro Pais de Vasconcelos “a autonomia privada pressupõe um espaço de liberdade em que as pessoas comuns podem reger os seus interesses entre si, como entenderem, através da celebração de negócios jurídicos ou de contratos e do exercício de direitos subjetivos, sem terem de se sujeitar a diretivas de terceiros.”
Todavia, restará demonstrado que essa liberdade não é absoluta e será delimitada pelos ditames da lei e da moral, além das limitações impostas pela natureza.
Cabe destacar que o contraponto da autonomia é a heteronomia, podendo ser definida como a sujeição a um direito criado por outrem que não aqueles a que se destina. A autonomia e a heteronomia relacionam-se numa série polar em que, entre a pura autonomia e a pura heteronomia, podem existir situações e regulações intermediárias mais autônomas ou mais heterônimas.
Para Maria Helena Diniz o Princípio da autonomia da vontade é um dos princípios basilares que norteia todo o conteúdo do direito civil.
A autonomia privada é um princípio fundamental do direito civil. É ela que corresponde à ordenação espontânea (não autoritária) dos interesses das pessoas, consideradas como iguais, na sua vida de convivência que é a zona reservada do direito privado.
Está presente em todos os domínios em que o direito civil se propõe a uma função de modelação da vida social; mais amplamente no plano das relações patrimoniais e da troca dos bens e serviços, com menor extensão no domínio das relações pessoais e das relações familiares, domínios onde o caráter imperativo de grande parte das normas jurídicas proíbe a disposição ou limitação de certos direitos (n g., certos direitos de personalidade) ou reduz a liberdade de contratação a uma mera liberdade de concluir ou não o ato jurídico, mas fixando-lhe necessariamente, uma vez celebrado, os efeitos (v.g., casamento, adopção).
A autonomia privada está presente nos domínios em que o direito civil visa uma função de modelação e disciplina positiva da vida social. Esta delimitação é estabelecida por Mota Pinto — domínios em que o direito civil tem uma função modeladora da vida de relação — para excluir o domínio (a responsabilidade civil ou, mais genericamente, a garantia da relação de direito civil) em que cabe ao direito civil uma função de protecção ou defesa dos direitos constituídos ao abrigo da sua função modeladora.
O referido princípio também encontra limitações impostas pela natureza, pela lei e pela moral, devendo ser ressaltado que a Jurisprudência confirma essa limitação.
No julgamento do Processo n.º 335/10.4TTOAZ.P1, de relatoria da Conselheira Maria José Costa Pinto, o Tribunal da Relação do Porto apreciou um caso de atleta amador que sofreu acidente e cobrava das seguradoras uma indenização por danos não patrimoniais. Todavia, o seu pedido inicial havia sido baseado em apólice que não contemplava esta previsão, mas tão somente o ressarcimento de danos patrimoniais. Outrossim, restou fixado no Sumário da decisão que “o Decreto-Lei nº 352/2007, de 23.10, tem carácter imperativo, pelo que as incapacidades no domínio dos direitos laboral e civil passaram a ser obrigatoriamente calculadas de acordo com as suas tabelas, impedindo que as partes possam fixar livremente outras formas de cálculo de desvalorização e respectivas percentagens para efeitos de indemnização por dano corporal.”
Nota-se, portanto, uma limitação ao princípio da autonomia da vontade que foi imposta pela imperatividade da lei e que foi confirmada pela jurisprudência.
No caso em destaque, nada obstante o princípio da autonomia da vontade, foi considerada nula a cláusula que fixou a exclusão da cobertura do seguro para incapacidade inferior a 10%, tendo em vista os limites mínimos fixados na lei, no caso o artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.° 146/93.
Portanto, a regra permite que as partes fixem livremente o conteúdo dos contratos, os quais, uma vez firmados, devem ser fielmente cumpridos, conforme disposição contida no art. 405º e 406º nº 1 do Código Civil de Portugal.
Todavia, essa autonomia da vontade e liberdade contratuais têm limites, não podendo desrespeitar a imperatividade das leis, ou, no que preceitua o art. 405º nº 1 do CC, elas têm de se conter “dentro dos limites da lei”.
O direito ao trabalho está previsto no artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil e está incluído no Capítulo II que trata Dos Direitos Sociais. Na Constituição de Portugal esse direito está previsto no artigo 58. É predominantemente privatístico e disciplina diretamente o trabalho subordinado prestado a outrem. Este trabalho ou atividade laboral é executado por força de um contrato de trabalho, firmado entre o trabalhador e a entidade patronal.
De acordo com Mota Pinto é plenamente justificável a regulamentação especial do direito do trabalho, tendo em vista que a actividade laboral, em regime de subordinação jurídica à entidade patronal, normalmente a uma empresa, prende-se com importantíssimos problemas e interesses ligados à vida económica da colectividade, à situação social dos trabalhadores, à formação profissional, etc. Daí que a disciplina das relações de trabalho tenha, em maior ou menor escala, de se afastar do regime geral dos contratos, quanto à sua constituição, efeitos e extinção em ordem a dar satisfação a exigências do tipo indicado.
No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece que o contrato de trabalho é qualquer ajuste existente entre as partes, que passam a ser denominadas de empregado e empregador. O referido ajuste pode ser expresso, verbal, formal ou tácito.
Esta regra prevista na CLT é válida apenas para o trabalhador ordinário e não se aplica ao atleta profissional, pois, de acordo com a legislação desportiva, este trabalhador celebrará com o seu empregador um contrato especial de trabalho desportivo (CETD), com características próprias, razão pela qual os artigos 442 e 443 da CLT não se aplicam ao atleta profissional.
Nas primeiras décadas do século XX a atividade do praticante desportivo sequer era vista como um trabalho, tendo em vista uma série de fatores, valendo citar: a) o complexo processo do amadorismo ao profissionalismo; b) o desporto ser mais uma diversão do que uma obrigação; e c) o alto grau de participação do público.
A partir da década de 1930 tem início um processo mundial de profissionalização das entidades de prática desportiva e das entidades de administração do desporto, porém, o principal personagem ainda sofria com a falta de uma legislação que regulamentasse a sua atividade. O atleta era tratado, de forma injusta, como um mero personagem secundário.
Mesmo após o reconhecimento do atleta como um trabalhador, eram notórias as restrições à mobilidade do praticante do desporto na Europa.
O professor João Leal Amado lembra que no ano de 1963, o atleta George Eastham contestou a licitude do retain and transfer system que ficou conhecido como o caso Eastham vs. Newcastle United Football Club. O “sistema de retenção e transferência”, então vigente, estabelecia que ao jogador de futebol era negada a faculdade de decidir, com autonomia, qual o rumo daria a sua vida profissional, mesmo após a extinção do contrato que o ligara ao clube que até então havia representado. Com efeito, a cessação do contrato não importava a dissolução do vínculo do jogador, pois, se o clube aceitasse pagar-lhe determinada importância salarial mínima, a agremiação poderia colocar o jogador na lista de retenção, o que, na prática, significava que o atleta não poderia ser contratado por nenhum outro clube.
A alternativa era incluir o atleta na lista de transferência (transfer list), fixando um montante pecuniário que deveria ser pago por qualquer clube que desejasse contratar o jogador, o que demonstra que a entidade empregadora detinha um controle absoluto sobre o praticante desportivo. Por essa razão, no caso em tela, o juiz Wilberforce declarou, no ano de 1963, a ilicitude desse sistema que foi considerado uma “injusta restrição de liberdade de emprego” e consistiu em um prenúncio daquilo que viria a ocorrer nas décadas seguintes.
A extinção do “passe” representou um grande marco nas relações desportivas modernas. Até o ano de 1998 (tanto no Brasil quanto em Portugal), a legislação desportiva estabelecia o regime do passe, sistema pelo qual o atleta continuava vinculado à agremiação mesmo após o término da vigência do contrato.
Nesse sistema, a transferência do atleta para outro clube esportivo se dava necessariamente pelo pagamento de uma indenização à agremiação original. Essa situação acarretava ônus extremo aos atletas, cuja vida profissional dependia da negociação da indenização relativa a seu passe, sendo-lhes negada a liberdade de contratar livremente com as agremiações que lhes oferecessem as melhores condições contratuais.
A doutrina do direito desportivo aponta o Caso Bosman como o marco da mudança de tal regime. No caso, o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que o regime do passe violava o direito à livre circulação de trabalhadores nos países que integram a Comunidade Europeia.
O jogador belga Jean-Marc Bosman teve um protagonismo na história ao ajuizar uma ação em junho de 1990. Atraído por uma namorada francesa, Jean-Marc decidiu trocar o Liège pelo Dunquerque, da segunda divisão da França. Entretanto, a formalização da transferência esbarrou na exigência dos belgas, que condicionaram a sua cessão aos franceses ao oferecimento de garantia bancária para o pagamento futuro do valor do passe. E como o Dunquerque não conseguisse que nenhum banco se dispusesse a atendê-lo, o caso foi parar na corte europeia de Justiça, sediada em Luxemburgo, onde Bosman pediu a liberação do vínculo.
A disputa judicial levou cinco anos, e somente em 15 de dezembro de 1995 o atleta ganhou passe livre, com base jurídica no acordo que estabelece a livre circulação de trabalhadores nos países que integram a Comunidade Europeia.
A decisão da Corte considerou indevidos não apenas os valores exigidos pelos clubes europeus para cedê-los a outro ao final dos contratos, como também a limitação do número de jogadores, em cada clube, de atletas de outros países da Comunidade Europeia. A sentença, na prática, viria a extinguir o passe pelo menos nos moldes tradicionalmente adotados pelos clubes da Europa.
Nos dias atuais, o contrato de trabalho do atleta profissional é o negócio jurídico celebrado entre uma pessoa física (atleta) e o clube, disciplinando condições de trabalho, algumas delas pré-fixadas na lex sportiva, de forma onerosa e sob a orientação do empregador (clube).
No CETD a regra é a de que o contrato será, sempre, por prazo determinado, nunca inferior a 3 (três) meses e nunca superior a 5 (cinco) anos. Esta talvez seja uma das características mais determinantes deste contrato especial, tendo em vista que em relação ao trabalhador ordinário a regra é a de que o contrato de trabalho vigora por prazo indeterminando, configurando exceção o prazo determinado.
Para o magistrado brasileiro Sério Pinto Martins, as características do atleta profissional justificam a existência de um contrato de trabalho por prazo determinado, pois, do contrário, o atleta poderia sair do clube no decorrer do campeonato.
Por outro lado, o contrato por prazo determinado assegura uma garantia para o atleta, na medida em que não estará obrigado a permanecer por longo período vinculado ao mesmo clube, salvo se assim o desejar, tendo em vista que poderá celebrar outros contratos de trabalho com o clube, sendo que esses contratos serão independentes e autônomos, via de regra.
Tendo em vista o curto período de duração da atividade do atleta profissional é natural a celebração de contratos até mesmo por campeonatos ou temporadas, desde que respeitado o período mínimo de 3 meses.
As características do CETD estão enumeradas no artigo 28 da Lei Pelé que dispõe. Verbis:
Art. 28. A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:
I – cláusula indenizatória desportiva, devida exclusivamente à entidade de prática desportiva à qual está vinculado o atleta, nas seguintes hipóteses:
[…]
II – cláusula compensatória desportiva, devida pela entidade de prática desportiva ao atleta, nas hipóteses dos incisos III a V do § 5º.
Em Portugal, na hipótese de haver rescisão do contrato antes do seu término, por iniciativa do atleta, é devido ao clube empregador o pagamento do valor previsto na “cláusula de rescisão”, constante do contrato de trabalho.
Logo, no Brasil, a sistemática é a mesma havendo alteração tão somente na nomenclatura, tendo em vista que, havendo rescisão contratual por iniciativa do atleta, este terá que pagar ao clube o valor da cláusula indenizatória.
Essas peculiaridades que envolvem o CETD podem ser definidas como restrição ao princípio da autonomia da vontade.