A Lei Federal n.14.297, de 05 de janeiro de 2022, inova ao criar uma obrigação para as empresas de entrega por aplicativo e, ao fazê-lo, provoca-nos a refletir sobre os contratos de seguro e as clássicas cláusulas de exclusão, que afastam as coberturas em caso de terremotos, pandemias e eventos afins.
Inicialmente, convém tecer rápidas considerações sobre três aspectos da novel lei que, dois anos após o início da Pandemia, cria proteção ao entregador de empresa de aplicativo “durante a vigência, no território nacional, da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela covid-19.” (Art. 1º, caput) e “até que seja declarado o término da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em decorrência da infecção humana pelo coronavírus Sars-CoV-2.” (Parágrafo Único).
O mecanismo de proteção envolve a nova obrigação legal para as empresas de aplicativo de entrega, de “contratar seguro contra acidentes, sem franquia, em benefício do entregador nela cadastrado” […] “devendo cobrir, obrigatoriamente, acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte.”
Portanto, exige a contratação de seguro com cláusulas extravagantes.
Por fim, fixa que, por 15 dias, deve a empresa assegurar assistência financeira “ao entregador afastado em razão de infecção pelo coronavírus”, prazo que pode ser “prorrogado por mais 2 (dois) períodos de 15 (quinze) dias, mediante apresentação do comprovante ou do laudo médico”.
Esse prazo equivalia ao tempo de prudente e seguro afastamento para os contaminados, desde o início da tramitação do PL 1665, de idos de 2020. Aliás, tal prazo ainda é o recomendável:
“A Sociedade Brasileira de Infectologia recomenda uma média de sete dias para afastamento de pessoas assintomáticas e de 10 a 14 dias para pessoas com sintomas. Já um prazo de cinco dias a própria ciência está descartando, é muito pouco.” […] “Se queimarmos etapas e encurtarmos os prazos, pode haver infecção generalizada que vai acabar paralisando a atividade das empresas”…
Portanto, independente de opiniões e teses num ou noutro sentido, agora há norma federal vigendo e fixando para essa categoria o prazo de 15 dias de afastamento – e prorrogável por mais duas vezes. É um parâmetro legal que, decerto, servirá de paradigma para outros casos e interpretações a respeito.
CONTRATO DE SEGURO PREVÊ COBERTURA EM PANDEMIA?
A nova lei federal cria uma excepcional obrigação para os empregadores daquele setor e isso nos faz indagar se os comuns e ordinários contratos de seguro cobrem as ocorrências decorrentes diretamente da Pandemia.
Bom lembrar que a natureza da álea prevista e contratada é da própria natureza do contrato de seguro. A rigor tudo pode ser objeto de contrato de seguro, desde que estipulado na avença.
Sobre o contrato de seguro, o novo e vigente Código Civil assim se expressa:
“Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.”
O “interesse legítimo” é a álea, o hipotético evento aleatório, motivador do interesse e da contratação do seguro, notemos, “contra riscos predeterminados”.
A respeito se fala em legítimo interesse do segurado, como prevê o citado artigo do Código Civil. O risco previsto é possível ou não de ocorrer e, portanto, de se prever e contratar. Daí a natureza aleatória do pacto. Algo aleatório, possível ou se tornar real no futuro – jamais no passado.
Pode o contrato prever garantia contra queda de meteoro? Pode, desde que previsto. A questão é o risco contratado.
Não obstante, é óbvio que ninguém achava que uma Pandemia poderia ocorrer e o que isso significaria, na prática. Lockdown? Quem eram as pessoas que conheciam essa palavra antes da Pandemia?
Fora os especialistas em certos setores, os brasileiros comuns vivem sua previsível rotina diária, num cotidiano repetitivo: trabalham, estudam, cuidam da família, pagam os impostos, votam nas eleições, usam transporte público e perdem horas em congestionamentos.
Pandemia e eventos desse porte eram só conhecidos em filmes e programas de TV. É crível que nunca pensaram em ter de enfrentá-los em suas vidas. Empresas e pessoas foram surpreendidas.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ tem admitido a validade das cláusulas de exclusão de cobertura, como exemplifica o julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.358.159/SP, ocorrido em 08.06.2021, onde, na Ementa do unânime Acórdão, consta:
“É da própria natureza do contrato de seguro a prévia delimitação dos riscos cobertos a fim de que exista o equilíbrio atuarial entre o valor a ser pago pelo consumidor e a indenização securitária de responsabilidade da seguradora, na eventual ocorrência do sinistro.”
Na página Notícias, daquela Corte, em 18.8.2021, a respeito do julgado suso referido, lemos: “Por unanimidade, o colegiado considerou que essas limitações de cobertura não contrariam a natureza do contrato nem esvaziam seu objeto; apenas delimitam as hipóteses de não pagamento da indenização”
Ademais, desde 2020 tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 2113/2020, que objetiva regular a não restrição de cobertura em face da Pandemia, o qual ora aguarda “Parecer do Relator na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF)”, como consta no site da Câmara dos Deputados.
A propósito, é incompreensível esse divórcio entre o tempo de gestação da lei e a realidade do mundo real.
De toda sorte, o referido Projeto de Lei não poderá gerar lei federal que incida nos contratos vigentes ao tempo da sua edição e, portanto, assinados antes do início da sua vigência, pois estes estarão cobertos pelo constitucional princípio que protege os atos jurídicos perfeitos.
Valerá, todavia, como diretriz normativa para os contratos futuros.
Assim, sem essa lei que se pretende editar e tendo em vista o precedente jurisprudencial antes referido, devemos considerar o peso do conteúdo da Circular 621, de 16.02.2021, da SUSEP – Superintendência de Seguros Privados, (publicada em 17.02.2021, no Diário Oficial da União), consta: “Art. 18. As condições contratuais deverão apresentar as disposições de todas as coberturas incluídas no plano de seguro, com a especificação dos riscos cobertos, dos riscos excluídos e, quando for o caso, dos bens e interesses não compreendidos no seguro.”
Apenas para clareza da análise, a comentada circular foi editada quando a Pandemia já tinha cerca de um (1) ano de duração.
Assim, os casos vão sendo tratados individualmente pelo Judiciário.
Já há julgados a favor dos consumidores que contrataram seguro e que não foram indenizados por seguradoras. Exemplo é a Sentença proferida pela 11ª. Vara Cível da Comarca de Santos – SP que, em 15.10.2021, ao julgar o processo 1016257-17.2021.8.26.0562, decidiu que “a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável, na redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019 e há de prevalecer o princípio da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, CDC) e a interpretação contratual que lhe seja mais favorável (art. 47, CDC)”.
Além disso, dessa Sentença também destacamos o seguinte trecho: “o descumprimento do dever de informação por parte da empresa ré, no tocante à cláusula excludente de cobertura, afastou sua eficácia em relação à autora, autorizando, em contrapartida, a manutenção da responsabilidade da seguradora pelo pagamento da indenização, prevista na apólice para a modalidade respectiva”.
De toda sorte, é recente julgado de 1ª Instância.
Decerto outras pretensões dessa natureza tramitam e tramitarão por todo o país.
Por apego aos detalhes, convém registrar que não enseja o cabimento de Recurso Especial a pretensão recursal que alvitre a interpretação de cláusulas contratuais, por força do verbete 5, da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.
Debate a respeito também poderá atrair a incidência das Súmula 7/STJ e 279/STF, já que potencialmente exigiria o revolvimento do conteúdo fático-probatório.
Isso não afastará a sobrecarga do Poder Judiciário nas instâncias ordinárias. Os juízes e tribunais serão instados a decidir cada pretensão deduzida em Juízo sobre a aplicação e a interpretação dessas cláusulas contratuais e relações entre seguradoras e segurados, até que, eventual e futuramente, haja decisão de âmbito nacional, quiçá em sede de Repercussão Geral, sedimentando a controvérsia e pacificando a questão.
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