A indispensável ambivalência

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A indispensável ambivalência | Juristas
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A indispensável ambivalência

  

O artigo fala da inescapável ambivalência da modernidade líquida e das considerações relevantes de Zygmunt Bauman e Hans Jonas.

 

A racionalização moderna produziu horrores tais como as duas Grandes Guerras Mundiais e, diante de tamanhas consequências desastrosas, muitos filósofos teorizaram sobre em que consistia o projeto da modernidade e seus efeitos. 

Dentro da miríade filosófica, percebem-se nitidamente duas posições identificadas, de um lado, os que olham com bons olhos, e, de outro lado, os que apontam para os perigosos riscos e limites produzidos pela racionalidade moderna.

 Bauman e Hans Jonas[1] se enquadram exatamente na vertente pessimista e, chamam a atenção para os riscos da racionalidade moderna até mesmo para a existência humana. 

Bauman, em sua obra intitulada “Modernidade e Ambivalência”, apresentou um diagnóstico sobre o projeto da modernidade, que consistiu em criar uma ordem social artificial, mediante uma razão esclarecedora. 

No fundo, seria um sistemático afastamento de tudo que fugisse da ordem racional pura, a contingência seria de todas as maneiras superadas, ou quando não, seria peremptoriamente negada sua possibilidade real. 

Para Bauman, o projeto da racionalidade moderna ocidental é profundamente contraditório, pois aquele que nega, constitui exatamente a força que o coloca em movimento, ou seja, a motriz da ambivalência ou contingência. 

O mundo é contingente e, mais, todos nós participamos dessa contingência, posto que seja inevitável. Enquanto Bauman enxergou tal fenômeno numa visão mais ampla e geral, Hans Jonas a enxergou dentro do processo de racionalidade científica de forma mais precisa, na associação da técnica com a ciência, ou seja, na técnica moderna. 

Destacou Hans Jonas em sua obra “O Princípio Responsabilidade[2]: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica”, onde apresentou a situação-limite que nos conduziu a racionalidade moderna. Hipnotizados pelo fascínio de obter soluções imediatas apresentadas prontamente pela técnica, diante de nossos problemas e dilemas diários, chegamos ao extremo de nos esquecer da contingência, colocando em risco até mesmo a possibilidade da existência.  

Já Bauman fez a mesma constatação, ainda no segundo capítulo de sua obra retromencionada. Podemos, então, concluir e observar que ambos os filósofos possuem visão convergente no que se refere ao processo de racionalização da modernidade e seus efeitos negativos.

Na concepção do filósofo polaco, o desejo de fugir de toda e qualquer realidade ambivalente constitui característica que perpassa por toda a concepção moderna de mundo. Assim, há clara tentativa humana de estabelecer um espaço inteiramente humano e controlado absolutamente.

Bauman partiu da premissa de que a razão nomeadora seria aquela capaz de desvelar tudo aquilo que se encontra velado no reino natural. Noutros termos, seria um processo de desmistificação do mundo. Há um preciso esforço para exterminar a ambivalência, compelindo a produção de definição com precisão capaz de suprimir ou eliminar tudo o que não poderia ser, ou não fosse precisamente definido. 

Enfim, a modernidade contrapõe-se a ordem e caos. Hipervalorizando a ordem e evitando, a todo custo, o caos. Na tentativa de superar um mundo pensado a partir de um substrato divino[3]. Quando se retira esse substrato, nos deparamos com a necessidade de organizar a sociedade, os fenômenos, a existência em si, tendo outro ponto como referência.  

E, assim podemos identificar a influência de Kant, no campo moral e da epistemologia; a influência de Hobbes, no campo da sociedade, preocupada com a organização racional da política; a influência de Bacon, no domínio total da natureza pelo homem principalmente através do conhecimento científico.

Consolida-se a ideia de que os modernos são os novos responsáveis por dar sentido ao mundo. E tal legado, particularmente, o de Bacon, culminou na chamada ciência moderna[4].

Que nascera com a intenção de pôr a natureza a serviço do homem.  E, a visão moderna contempla a natureza como algo caótico e carente de uma ordenação racional. Na natureza, enfim, o homem se encontra entregue ao acaso. Se posta cego diante de um abismo incomensurável. Algo que inquietou e angustiou a racionalidade iminentemente moderna.

A ciência moderna tem uma enorme ambição de conquista a natureza, submetendo-a as necessidades humanas. E a reverenciada curiosidade científica levou o homem ir além, onde não sequer imaginaria chegar, estimulando a visão de controle e administração, de fazer as coisas de forma aperfeiçoada, sendo mais flexíveis e mais obedientes e desejosas de servir. De fato, a natureza acabou por significar algo que deve ser subordinado à vontade e a razão humana.

 A racionalidade científica constituiu o ideal moderno elevado ao mais alto patamar. E, onde há nítida bifurcação entre a ordem e o caos. Vale recordar, que a razão é designada apenas pelo “cálculo utilitário das consequências”, como quer, por exemplo, a teoria dos jogos. Organizando-se de maneira a obter um objetivo previamente definido.

 Karl Mannheim[5] chamou tal razão de funcional, enquanto que Max Weber a chamou de instrumental e Eric Voeglin, de pragmática.

A racionalidade funcional não questiona seus pressupostos e, nem seu sentido, age na esfera do como, sem perguntar pelo o porquê.

O que determina um nível de ação teleológica exclusivamente técnica, interesseira e ambiciosa onde predomina a dominação do sujeito sobre o real; ao sujeito então cabe estabelecer os fins e, ainda, eleger os meios de toda ação.

 Assim, Max Weber[6] descreveu a burocracia calcada em funções racionais, dentro da sociedade capitalista, centrada e coordenada pelo mercado e cuja racionalidade é funcional.

 Mas, no sentido da filosofia antiga, a razão era caracterizada como sendo a capacidade humana de diferenciar o bem e o mal, o falso e o verdadeiro.

E, a partir daí, era possível organizar a vida social e individual. Também a razão era completamente permeada por sentido ético, permitindo ao ser humano laborar julgamentos inteligentes e autônomos sobre as interrelações dos diversos acontecimentos de sua vida.

A esse tipo de razão Weber chamou de racionalidade de valor, Mannheim chamado de substancial, enquanto que Voeglin de noética.

A noética é parte da lógica que estuda as leis fundamentais do pensamento humano, conhecida como os quatros princípios: o da identidade, da contradição, do terceiro excluídos e da razão suficiente. Foi termo proposto por Hamilton, que, entretanto, foi também adotado por alguns poucos autores.

A noética é uma disciplina que estuda os fenômenos subjetivos da consciência, da mente, do espírito e da vida a partir do ponto de vista da ciência, e como conceito filosófico, em linhas gerais, vem a definir a dimensão espiritual do homem.

Para Marc Halévy[7] a noética é essencialmente a ciência do conhecimento. Não somente dos valores da epistemologia, dos mecanismos mentais e neurobiológicos descritos pelas ciências cognitivas, mas de maneira muito mais ampla, é o estudo de todos os aspectos do conhecer, da sua produção (criatividade), formulação (semiologia e metalinguagem), estruturação (teoria dos sistemas, paradigmas e ideologias), validação (critérios de pertinência, epistemologia) e proliferação de ideias (processos de apropriação e normalização) em seu sentido mais lato.

Estuda também a dinâmica e os ciclos da vida, das ideias e das teorias, das condições de sua emergência, desenvolvimento, apogeu, decadência e extinção.

Segundo Stratton, noética se refere a uma estrutura individual de conceitos, sendo o somatório de ideias, crenças e opiniões de cada um, e a forma pela qual tais conceitos se relacionam entre si e com o mundo externo.

A noética moderna teve um precursor na figura de Charles Darwin, que procurou estudar a evolução das espécies numa perspectiva global e sintética, mas foi primeiramente definida pelo psicólogo norte-americano William James[8], dizendo que ela descreve “estados de insight em verdades profundas inalcançadas pelo intelecto discursivo. Estes insights seriam revelações e iluminações cheias de significado, mas todas inarticuladas; como regra, elas trazem consigo um curioso senso de autoridade”.

Ele foi um dos pioneiros da valorização do potencial da transcendência humana no terreno do estudo científico da consciência, enquanto que mais ou menos ao mesmo tempo, na Europa, neurologistas como Jean-Martin Charcot e Pierre Janet definiam a hipótese psicogênica para sintomas físicos.

Esta hipótese foi levada adiante por psicanalistas e médicos da escola de Viena como Freud e Jung, e por outros norte-americanos, desenvolvendo uma complexa teoria de psicologia dinâmica do inconsciente para demonstrar que os sintomas das doenças muitas vezes são simbólicos de causas de origem física e/ou psíquica, lançando as bases em torno de 1930 da moderna psicossomática.

Os pressupostos essenciais da noética são os conceitos, encontrados em várias tradições filosóficas e religiosas, de que o homem é o criador de sua própria vida, que a consciência impregna toda a realidade, que o homem tem outros meios de contatar a realidade além de seus cinco sentidos tradicionais e, também que muito do assim chamado “conhecimento objetivo” não tem nada de objetivo, mas é fruto apenas do consenso coletivo e, se baseia em boa medida na subjetividade.

Entendemos como substancialmente racional o ato de pensamento que revel percepção inteligente das interrelações dos acontecimentos de uma determinada situação. Dessa forma, o ato inteligente de pensamento, em si, será descrito como substancialmente racional, enquanto tudo o mais que seja falso, ou não seja absolutamente um ato de pensamento (como por exemplo, impulsos, desejos e sentimentos) e sentimentos tanto conscientes como inconscientes, serão denominados de substancialmente irracionais.

Mannheim afirmava que quanto mais for industrializada a sociedade, mais difundida estará a divisão do trabalho e sua organização, daí aumenta-se significativamente racionalidade funcional, tornando o homem mais previsível, bem diferente do indivíduo nas sociedades antigas, que agia sempre funcionalmente, em esferas limitadas e delimitadas, sendo que hoje, o indivíduo é obrigado a agir cada vez mais dessa forma, ou seja, a industrialização crescente implicou na racionalidade funcional, onde há uma organização de atividades dos membros da sociedade em função de finalidades objetivas.

De sorte que não promove nas mesmas proporções a racionalidade substancial, ou seja, a capacidade de agir com inteligência numa determinada situação à base da percepção própria da interrelação dos acontecimentos.

A racionalização está, conforme apontou Mannheim, destinada a privar o indivíduo médio de reflexão, percepção e responsabilidade, e a transferir essa capacidade aos que dirigem o processo de racionalização.

Nesse sentido, na concepção de Bauman, encara-se a bifurcação existente entre ordem e caos, o que constitui a existência moderna por excelência. E aí, reside uma contradição no projeto da modernidade, pois aquilo que é posto a margem e, que é toda forma temido e evitado, ou seja, a ambivalência, paradoxalmente, constitui a força propulsora do processo de racionalização.

Assim, a ambivalência não pode ser tão facilmente desprezada, enfim, sublinhou Bauman que é extremamente necessária, além de inexorável.

Buscar a ordem e evitar o caos, ou se desfazer da ambivalência tem ocupado o protagonismo da ação moderna. E, cogitar na eliminação de tudo que foge a ordem, constitui algo problemático, pois Bauman entendeu a ambivalência tal como elemento intrínseco da existência. Assim, aponta-se, finalmente, para impossibilidade real de efetivação do projeto da modernidade.

Diante da multiplicidade de tarefas impossíveis e variadas que a modernidade se atribuiu e fizeram dela, o que é, essencialmente, sobressai a ordem, e mais precisamente em sua forma mais importante, a ordem como tarefa, como a menos possível das impossíveis missões e, a menos disponível das indispensáveis, com efeito, como arquétipo de todas as outras tarefas meramente metafóricas de si mesmo.

 

A metáfora revela-se tão poderosa que até mesmo em altíssimos julgamentos tal como ocorrido recentemente 03.4.2017 do TSE, onde se cogitou: “Processo não é para ouvir Adão, Eva e a serpente”, disse o relator Ministro Herman Benjamin. Num bafejo metafórico em prol da celeridade processual.

E, humildemente, atrevo-me a sugerir a limitação da oitiva somente da serpente, pois tanto Adão como Eva seria visivelmente parciais e comprometidos intrinsecamente. Temos que defender a celeridade processual e a fé na justiça brasileira.

Como é sabido, tudo aquilo que é negado[9] constitui a força propulsora daquele que o nega. Essa afirmação, inicialmente pode parecer paradoxo, mas na verdade, não se trata disso, posto que descreva a posição de Bauman de que a ambivalência é a força que põe em movimento o desejo de ordem.

Portanto, essas duas realidades: caos e a ordem, apesar de teoricamente opostas, em verdade, se convergem, ou seja, a negatividade da primeira é o que possibilita a positividade da segunda.

O caos[10], conforme disse Bauman, é o outro da ordem, é pura negatividade. É a negação de tudo o que a ordem se empenha em ser. É contra essa negatividade que a positividade da ordem se constitui.

Mas, a negatividade do caos é um produto da autoconstituição da ordem, seu efeito colateral, seu resíduo e, no entanto, a condição sine qua non da sua possibilidade (reflexa). Sem a negatividade do caos, não há a positividade da ordem: sem o caos, não há ordem.

Percebe-se que Bauman vai em direção contrária à concepção moderna acerca da ambivalência. Se a modernidade de inspiração iluminista tende a uma negação absoluta da possibilidade de aceitação da ambivalência, por outro lado, o filósofo polonês aponta para uma necessária aceitação da mesma.

Essa visão, em um campo mais restrito, pode ser contemplada em Hans Jonas, quando ele tratou das consequências da racionalidade científica – ciência associada à técnica que levou homem moderno a uma situação ainda mais ambivalente do que aquela que se buscou evitar, portanto, uma situação paradoxal.

Hans Jonas apontou que a técnica moderna é o desejo de superação da contingência

A crítica feita por Bauman ao projeto de racionalização da modernidade, também pode ser contemplada no pensamento filosófico Hans Jonas. O primeiro cita o segundo na abertura de sua obra “Modernidade e Ambivalência”, na qual o filósofo tece sua crítica à modernidade.

Mas se um elaborou sua crítica em sua perspectiva macro; o outro se se restringiu mais ao dado da técnica moderna (techné) no intuito de evidenciar as consequências de uma crença ingênua de que existe uma evolução para um melhoramento sem fim, referendada pela associação da técnica com a ciência.

O termo grego “techné” é ambíguo e flutuante principalmente se avaliado sob a perspectiva da História da Filosofia. Afinal, a techné segundo a filosofia aristotélica se insere na categoria geral das faculdades intelectuais tais como a phronesis, episteme, sophia[11] e nôus[12]. E, não pode ser confundida com os termos.

A techné é forma de conhecimento que pressupõe conhecimento da causa e a disposição de ânimo aliada ainda à atividade poética para final operação concreta.

A techné é resultante de conhecimento preciso e sua apreensão teórica requer cuidadosa análise de sua imagem e significação, que ocorre senão pela delimitação de outros conceitos correlatos a esse.

Não basta a investigação de sua dimensão semântica influenciada exclusivamente pelo texto de obra intitulada “Poética” [13], de Aristóteles, pois que a obra pode ser considerada como sistema, por sua relativa linearidade conceitual.

A techné é um conhecimento (gnósis) corresponde a uma atividade do espírito, porém, é atividade produtiva e prática. E a movimentação produtiva não se exaure.

É concebida por meio de uma arte artesanal, sendo causa de movimento que tem um fundamento intelectual que transporta o pensamento da esfera, poética das ideias para o campo produtivo. Do abstrato para o concreto.

Daí que, apesar de gnósis, a techné é uma faculdade que se afasta substancialmente das demais faculdades intelectuais tais como episteme, sophia e nôus.

Hans Jonas criticou a modernidade partindo do pressuposto de que o homem ao longo da evolução modificou sua relação com a natureza. Inicialmente, o homem estava em total submissão à natureza; mais tarde, quando surgiram as cidades que vieram a por um pequeno equilíbrio dentro de outro bem maior; a técnica que era considerada como neutra por ser vista como algo que não poderia e comprometer potencialmente de existência humana, pois sua inexpressividade era incapaz de provocar dano derradeiro à integridade do objeto manipulado ou mesmo perturbar a ordem natural no seu todo.

Hans Jonas descreveu essa realidade mediante sua interpretação de um canto do coral da Antígona[14], de Sófocles (explicar a importância).  Pois o que não está dito, mas está implícito para aquela época, é a consciência de que, a despeito de toda grandeza de sua engenhosidade, o homem, confrontado com os elementos, continua pequeno: é justamente isso que torna suas incursões naqueles elementos tão audaciosos e lhe permite tolerar sua petulância. Todas as liberdades que ele se permite com os habitantes da terra, do mar e do ar deixam inalterada a natureza abrangente desses domínios e não prejudicam sua força regeneradora.

Com o processo de racionalização moderna, ou seja, a técnica associada à ciência, no intuito de colocar a natureza a seu serviço e afastar o fantasma da ambivalência, o homem redimensionou sua força de ação, ou seja, nosso agir no mundo tomou uma dimensão causal para além do tempo presente.

Sonhos e desejos que anteriormente eram tidos como mera ficção científica se converteram em realidade. Com Jonas é possível afirmar que “a técnica moderna introduziu ações de tal ordem inédita de grandeza, com tais novos objetos e consequências”, que a moldura da visão clássica do mundo não consegue mais explicá-la adequadamente.

Desta forma, Jonas apontou para uma situação ambivalente da modernidade, algo estranho para o ouvido de um adepto da modernidade.

Jonas asseverou sua crítica ao afirmar que, se outrora a técnica gozava de neutralidade, hoje não é mais possível pensar assim, pois seu uso já pode influenciar de forma devastadora na ordem natural do mundo.

Em sua concepção o homem migrou da condição de dominado passou à de dominador e, recentemente o próprio homem se tornou objeto da técnica. Com isso, chegou-se ao grande fosse entre a capacidade de agir e prever os efeitos desta ação a longo prazo.

Diante dessa realidade, a existência de todo o natural e, até mesmo do próprio ser humano encontram-se ameaçados de um fim catastrófico. Assim, o projeto moderno de afastar a humanidade da ambivalência, paradoxalmente, chega-se a uma situação ainda mais ambivalente.

Jonas postulou que é preciso dá ouvidos ao mau prognóstico e nos afastar um pouco da visão utópica da modernidade. Sua proposta fundamenta-se na ideia de que o simples fato do homem tomar sob sua responsabilidade seu projeto existencial, não mais nos garante certeza com relação à efetivação do bem prometido por essa conquista, menos ainda que ela representará algo sumamente positivo.

Na concepção de Jonas, esse contexto de “autonomia”, se mostra ambivalente tão quanto ou até mais, do que o antecedente. Isso pode ser entendido como uma visão realista daquilo que realmente é o saber, ou seja, não se trata de algo absoluto, mas algo sempre parcial e nunca total[15].

 

In litteris: “O fato de tomar o seu desenvolvimento em suas próprias mãos, isto é, de substituir o acaso total, que opera lentamente, por um planejamento consciente de rápida eficácia, fiando-se na razão, longe de oferecer ao homem uma perspectiva mais segura de uma evolução bem-sucedida, produz uma incerteza e um perigo totalmente novo”.

Conforme se vê da citação acima, pode até parecer uma ode ao fatalismo, mas em verdade, é mesmo a defesa de um agir prudencial. Estamos diante da heurística do temor[16], elemento primordial de orientação jonasiana acerca de como devemos no portar diante dos resultados e efeitos do processo moderno de racionalização.

A ideia de temor, ao invés de medo, é a que mais se adéqua para um esclarecimento da proposta em questão, isso porque a palavra “medo” não carrega em si uma qualidade heurística, quando se entende pela capacidade pressentir, temer além do provável.

Nesse sentido, entende-se que a ideia que subjaz na heurística do temor diz respeito a uma necessária prudência no agir.

Resumindo a contribuição filosófica de Jonas alcançamos um poder jamais obtido por outras gerações passadas, pois somos incapazes de elaborar um diagnóstico preciso de consequências do uso desse poder. Para o filósofo alemão, em uma situação como se expõem, logicamente, as possibilidades de erro são infinitamente maiores do que as de acerto.

E, desta forma, podemos concluir que em Jonas há um patente desejo de por em destaque a necessária aceitação da ambivalência. E, assim o faz, por entender que a negação da mesma produziu os horrores da guerra e do holocausto patrocinado pelos campos de concentração. Seria contemporaneamente ao reconhecê-la, no entendimento do filósofo alemão, uma saída absolutamente necessária para a preservação da existência humana e extra-humana.

O conceito de responsabilidade defendido por Hans Jonas assume a tese de que os mandamentos da ética tradicional, embora que ainda válidos, são insuficientes para compreender o agir do homem tecnológico. Se aconteceram realmente as mudanças no espaço de ação e se os impactos provocados pelos efeitos das novas tecnologias modificaram o agir, tornam-se necessárias as mudanças nos princípios da ética para que possam ser adequados à nova realidade.

Os mandamentos da ética tradicional estão direcionados ao agir próximo, poder de colocar em risco a continuidade futura do planeta.  O futuro existiria enquanto eternidade e valeria a pena perder tudo para alcançá-la. Concluiu que a ciência moderna causou inumeráveis transformações e, por meio desta o homem passou a ter poderes ilimitados, desmedidos e onipotentes.

Para Jonas, no entanto, estes devem ser limitados por meio de novos imperativos. E assim recomenda: “Age de tal maneira que os efeitos de tua ação não comprometam ou coloquem em risco a possibilidade de continuidade da vida futura. Não comprometas as condições de continuidade indefinida da humanidade sobre a terra”.

Entende que os excessos tecnológicos, se utilizados por governantes, organizações ou pessoas inescrupulosas podem causar efeitos catastróficos.

Limitar o poder com princípios que sejam capazes de frear às promessas utópicas da técnica, do ideal prometeano, galileano e baconiano e seria combater o niilismo[17] e colocar a vida novamente no seu lugar de honra e primazia.

A “ontologia moral do temor” é um dos aspectos mais originais da ética da responsabilidade, onde o dever de poder e de fazer é enunciado em termos ontológicos.

O medo, a ameaça e a morte, vêm da possibilidade de o homem poder dizer não ao imperativo da existência. O “não” ao “não-ser” significa um “sim” à vida e sua possibilidade de continuidade.

A ética está na esfera do nosso poder cuja exigência está no ser. Nosso poder-querer revestido de moralidade necessita estar atento às conquistas tecnológicas para que não sejam utilizadas contra o fim último da natureza ou do bem substancial que é a vida.

O sentimento ético tem sua efetividade como limitador do poder da tecnologia à medida que o próprio homem tornou-se seu objeto. A ética de responsabilidade está direcionada ao futuro para que continue existindo indefinidamente a possibilidade de vida…

“O futuro do qual somos responsáveis é o autêntico fim de nossa responsabilidade”. Somos responsáveis por tudo e por todos e não somente com a ação passada conforme tenciona o positivismo jurídico.

É importante considerar que em nossa vida, a educação nos abre a possibilidade de superarmos a condição de objetos de responsabilidade para sujeitos dela. Por isso, a ética de responsabilidade tem uma dimensão pedagógica que se desloca em todas as direções do nosso agir.

Bauman e Jonas ofereceram contribuição valiosa para melhor entendimento de principais nuances do processo de racionalização ocidental. De fato, os dois filósofos apontam para os severos riscos e limites produzidos pela racionalidade moderna.

Ambos mediante uma crítica um tanto quanto negativa colocam em relevo a inviabilidade e a falência do projeto moderno de negação absoluta da ambivalência.

Dessa forma, é possível afirmar que existem linhas de convergências sobre a leitura da modernidade de filósofos em questão. Para Bauman a negação sistemática da ambivalência é uma marca característica fundamental da modernidade ocidental. Essa negação se dá mediante a contraposição entre a ordem e o caos, no intuito de estabelecer o reino da primeira em detrimento do segundo.

No entanto, segundo Bauman, o projeto de afastar a humanidade de qualquer realidade ambivalente, sofre uma contradição interna.

Em sua concepção, a ordem buscada em detrimento do caos diz respeito a algo irrealizável, pelo simples fato de que é o caos que possibilita a ideia, ou melhor, o desejo da ordem.

Assim, nota-se uma relação dialética entre essas duas realidades. Nesse sentido, para que uma se efetive, a outra se torna imprescindível, de tal forma que, a inexistência de uma implica na ausência da outra.

Quanto a Jonas, o mesmo apontou a situação limite para a qual nos levou o projeto de superação da ambivalência. De modo particular, Hans Jonas identificou esse processo de racionalização ocidental na associação da técnica com a ciência, evento iminentemente moderno.

Segundo o filósofo alemão, mediante essa associação o homem chegou a um domínio da natureza jamais alcançado antes e, uma fase bem mais recente, o próprio homem se tornou objeto da técnica. Tornou-se cativo do método e sem essência.

Na concepção de Jonas essa situação-limite se mostra paradoxal, pois a mesma nos levou a uma realidade ainda mais ambivalente do que aquela que colocou o projeto moderno em movimento.

Nesse sentido, ficou evidente que tanto no pensamento filosófico de Bauman quanto de Jonas jaz uma crítica negativa ao processo de racionalização ocidental. Ambos postulam que o projeto moderno de negação da ambivalência incorre em contradições.

Enquanto Bauman identificou uma contradição intrínseca (ou interna) que inviabiliza a efetivação da superação da contingência, Jonas colocou em relevo o fato de que a corrida em direção contrária a ambivalência, levou o homem ao encontro de uma situação ainda mais ambivalente.·.

Assim, como a identificação dessa situação paradoxal na qual se colocou a modernidade, os dois filósofos em questão postularam a irrefutabilidade e a necessária aceitação da contingência. Essa aceitação não seria a partir de uma mentalidade fatalista, muito menos de que ela seja um mal necessário, mas mediante uma compreensão de que a ambivalência é parte constitutiva da existência.

A ambivalência irremediável, com chances mitigadas de assimilação social, seja pelo mercado, seja pelas políticas do Estado e/ou enfim, pelas instituições modernas de maneira permanente e socialmente consolidada.

A ambivalência afronta o poder classificatório de separar os objetos e os eventos em classes distintas e mutuamente exclusivas e, desafia a capacidade da linguagem de ordenar o mundo e, acabar com a sensação inquietante advinda da experiência do acaso e da contingência.

Por isso, ao longo de toda a história, em todos os tempos e lugares, as sociedades humanas se empenharam em combater a ambivalência. Porém, nunca essa guerra fora tão implacável e dolorosa como no surgimento e constituição dos tempos modernos.

Na emergência frenética da modernidade, essa guerra foi definida como “luta da ordem contra o caos” e o encargo de seu controle foi atribuído ao Estado, que passou a qualificar essa tarefa como projeto de “construção da ordem”.

O espírito moderno se colocou o seguinte imperativo: era preciso ordenar a sociedade, nada poderia ser deixado ao acaso, nada poderia seguir seu fluxo espontâneo e não-governável.

No entanto, os tempos modernos apresentavam uma novidade central em relação às outras experiências históricas: o impulso de ordenar e classificar o mundo não voltava apenas à natureza, aos seres, às experiências e aos eventos, mas fundamentalmente aos homens[18].

O Estado Nacional com o advento do tumulto moderno se viu diante de um problema novo: a dissolução das antigas formas de apropriação da produção social, bem como das identidades coletivas forjadas nas sociedades pré-modernas criou, de forma desordenada, um espetáculo dramático de desigualdades e de diversidade cultural, deslocando e expondo “gentes” de origens étnicas, culturais e religiosas muito variadas, cujas fronteiras identitárias não podiam mais ser delimitadas com previsão.

A diversidade cultural aparecer, então, tanto quanto a “questão social” das desigualdades, como um problema a ser resolvido, pois trazia os sentidos perigosos da ambivalência.

Tomemos a diversidade como a autêntica fonte geradora de confusão e caos, os Estados-Nações passaram a conceber um sonho de pureza e homogeneidade social em que a construção da ordem deveria eliminar as diferenças.

Nesse projeto de formação de sociedade étnica e culturalmente homogênea, só haveria espaço para sujeitos iguais e mutuamente previsíveis.

Todos aqueles que não se encaixassem ou teimassem em confundir as categorias classificatórias dominantes seriam automaticamente definidos como “estranhos”. Da obsessão em separa a ordem do caos nasceu, então, a separação entre os “normais” e os “estranhos”.

Nesta nova classificação dos sujeitos, os estranhos seriam, por definição, dotados de uma ambivalência imanente. O horror a essa ambivalência própria dos estranhos, a dificuldade de situá-los em algum sistema classificatório, sua mobilidade enervante, aquém e além de categorias divisórias, fez com que os Estados modernos empreendessem uma guerra contra as diferenças.

Nesse conflito, duas estratégias foram desenvolvidas, de forma combinada ou não. E, usando a terminologia emprestada de Lévi-Strauss[19], Bauman denomina a primeira de antropofágica e a segunda de antropoêmica;

Na estratégia antropofágica, os estranhos deveriam ser fadados biologicamente a serem sempre “estranhos”, pois estavam naturalmente impossibilitados de se converter em alguma coisa que não eles mesmos.

Portanto, a única saída possível era excluí-los da sociedade e da cultura nacional em construção, bani-los da vida pública e cívica e, ao limite, destruí-los fisicamente. A isso se chamou racismo.

Na primeira estratégia elimina-se a diferença; na segunda, o diferente. Na primeira, usa-se o argumento da plasticidade da cultura e acreditava-se que os indivíduos podem ser moldáveis; na segunda, utilizava-se o argumento da natureza atávica das identidades e acreditava-se que os indivíduos estavam irremediavelmente presos ao seu destino biológico e suas danações constitutivas.

Bauman estudou duas estratégias na formação dos Estados Nacionais europeus. E, analisando a segunda estratégia, a racista-nacionalista, o autor mostrou como o empreendimento de engenharia social que radicalizou o processo de homogeneização e higienização da sociedade, culminando em fenômenos genocidas de grandes proporções e nos extermínio físico dos indivíduos considerados estranhos, não representava a ressurgência da barbárie de uma pré-modernidade ainda não totalmente vencida – representava, pelo contrário, o sonho de pureza do projeto moderno levado às últimas consequências.

Nessa estratégia, os outros da ordem, os criminosos, estupradores, bêbados, débeis mentais, imbecis, idiotas, lunáticos, drogados, epiléticos, sifilíticos, pervertidos, doentes, degenerados, os de outra raça, outra cor, outra religião; todos aqueles “inadaptáveis”, “incontroláveis”, “incongruentes” e “ambivalentes” foram jogados para fora da cultura, transformados em natureza, na qualidade imutável e irrevogável da raça, “culturalmente não manipulável” e “resistente a todo tratamento”.

Naturalizados e despojados de sua humanidade, os outros da ordem deixaram de ser objeto de avaliação ética, liberando o caminho para a intervenção estritamente científica, burocrática e, por definição, a-moral.

A estratégia liberal não propunha uma solução tão drástica para o problema da diferença. No entanto, suas consequências não formam menos dolorosas. E, quase sempre, representou uma armadilha aos estranhos, principalmente àqueles aspirantes à categoria de nativos da comunidade nacional em construção.

O liberalismo propôs uma oferta assimilatória que, em princípio, estendeu-se a todos os membros ocupantes do território nacional, pois todos podem se tornar nativos e, ainda compartilhar da memória, identidade, missão e destino comum da nação, desde que abandonem suas lealdades locais e particulares e apaguem todos os distintivos traços e resistentes, sendo capazes de denunciar sua inadequação e estranheza.

A solução liberal nasceu da rebelião moderna contra a imputação de identidades como fatalidade do destino e fundou o princípio de que as identidades podem ser construídas segundo o postulado universalista da perfectibilidade humana.

A direção dessa perfectibilidade se encontrava determinada previamente, era o caminho para a humanidade de adesão unilateral aos valores culturais nacionais, deslegitimando, portanto, o modo de vida do estranho como inferior e, considerado como mancha a ser removida, conforme ressaltou Bauman.

Apesar disso, a crença moderna de que todos têm condições de abraçar os mais altos e relevantes valores da civilização e que, portanto, estes se encontram universalmente disponíveis, constitui, na verde, um grande blefe do liberalismo, pois tal aposta não declarada é que nem todos conseguirão sucesso na empreitada, uma vez que a abrangência do êxito descredenciaria a própria superioridade que se postula.

Para que a oferta assimilatória permaneça legítima em seu pressuposto universalista, a culpa pelo fracasso da não-assimilação não pode ser atribuída a contradições imanentes da oferta em si, mas tem que recair sobre o estranho com problemas de assimilação.

E, no caso deste recursar admitir a culpa imputada, o liberalismo deixa de cair sua máscara universalista e recorre ao recurso que, em princípio, nega todo o postulado da perfectibilidade humana[20]: a atribuição do estigma como marca corpórea indelével e irremovível, sinal visível de uma falha moral oculta.

Por detrás da promessa emancipatória da ideologia liberal, reaparece a força discriminatória do racismo. Argumentou Bauman, seja uma das maiores contradições da modernidade. Se, de um lado, o estigma, em sua atribuição naturalizada de inferioridade, fere os princípios da liberdade individual, da igualdade de oportunidades e da perfectibilidade humana, alicerces centrais do orgulho liberal, sendo por isso, em muitos casos, submetido a uma “existência subterrânea”.

De outro lado, torna-se indispensável porque é através do processo de estigmatização que a incongruência própria dos estranhos é recortada e separada do corpo social, que sua estranheza é fisicamente marcada em traços exteriores, visíveis e de fácil identificação.

O estigma traça o limite da oferta universalista do liberalismo, e por este, por sua vez, esconde a abrangência do primeiro sob pena de perder a fonte de sua legitimidade como projeto emancipador.

Apesar da prática velada do estigma, o liberalismo ainda oferece a possibilidade de assimilação como promessa dirigida a todos, indiscriminadamente, obrigando os estranhos a se engajarem num processo de conversão e de aculturação, diligentemente empenhados em apagar os antigos traços e adquirir as maneiras necessárias para o recebimento da credencial de nativos.

No entanto, a promessa revela-se uma armadilha ardilosa, porque o esforço e dedicação por livrar-se da condição de estranho só fazem reafirmar a estranheza; a inquietude e sofreguidão por livrar-se da ambivalência renitente só fazem confirmar uma personalidade errática, neurótica e instável, sinais inequívocos de uma estranheza incurável.

Assim, o projeto liberal fracassa justamente no limite mesmo que pode fracassar, mantendo sua legitimidade inalterável. A culpa não é do projeto em si, é do estranho. A estratégia liberal acaba assim se desdobrando, de forma dissimulada, no resultado e na conclusão que a estratégia racista-nacionalista havia postulado de forma explícita: os estranhos são irremediavelmente estranhos.

Ambas, segundo seus princípios classificatórios e suas categorias divisórias, inventam os estranhos. Ambas, por razões diferentes, tornam inviável o escape da condição inventada.

O combate da era moderna contra a ambivalência e aos estranhos definiu, em muitos sentidos, as contradições, impasses e equívocos das premissas supostamente emancipatórias inauguradas a partir das revoluções modernas, expressas em sua rejeição do modo de vida irracional e estagnado da sociedade feudal e em seu elogio da liberdade e autoconstrução individuais.

A guerra contra a ambivalência e os diferentes não acabou, mas perdeu muito de sua pretensão universalista e totalizante. Na sociedade contemporânea, o Estado deixou de ser o protagonista central dessa guerra, mas a questão da diversidade continua sendo um problema inquietante. São os dilemas da questão dos estranhos e da estranheza na condição atual.

A população brasileira apresentava aos olhos estrangeiros e aos olhos da elite intelectual nacional um espetáculo notoriamente surpreendente de ambivalência generalizada.

O horror que a miscigenação da população brasileira provocava não provinha somente da percepção da feiura e degeneração do povo brasileiro, mas da sensação de desconforto e desordem, advinda do fracasso da capacidade classificatória em dividir as entidades em classes distintas e irredutíveis (branco versus negro, branco versus índio) decorria da ambivalência resultante desse fracasso, da adulteração da pureza e da confusão identitária suscitada pelos mestiços.

Diante do horror da miscigenação e do desafio de criar um projeto de construção da nação para uma sociedade fadada ao fracasso de antemão, os intelectuais da então nascente intelligentsia brasileira conceberam um plano e uma solução: a teoria do branqueamento.

Os teóricos brasileiros apostaram que era possível uma miscigenação com efeitos positivos, evolucionista, portanto, desde que se enfatizasse o elemento branco no cruzamento. Em um século, imaginavam-se, os elementos negros, índios e mestiços teriam sido eliminados e a população seria totalmente branco e, consequentemente, civilizada.

A teoria do branqueamento nos sugere o grotesco de um sonho de pureza radicalmente impossível numa sociedade como a brasileira. É inviável, no Brasil, então, desde o início, a solução racista-nacionalista para o problema dos estranhos. Se fosse levada a cabo, seria necessário, no limite, a exterminar a maior parte da população, pois num certo sentido, somos quase todos estranhos.

Diante disso, o projeto de construção da nação e a afirmação de unidade nacional permaneciam problemas não resolvidos. A resposta veio aparecer os anos 30 do século XX, na época do Estado Novo e do governo Getúlio Vargas, quando se percebeu que não adiantava acabarem com os diferentes nem com as diferenças elas eram por demais abrangentes.

Nesse contexto, a sociedade brasileira vinha intensificando seu processo de urbanização e novos personagens entravam em cena, novos estranhos vinham se somar aos estranhos remanescentes da época colonial e imperial, estranhos agora urbanos; pobres, mendigos, migrantes, desordeiros, arruaceiros, prostitutas, militantes, socialistas, anarquistas e entre outros.

Diante de uma diversidade que vinha só se alargando, a solução encontrada foi a construção de uma identidade coletiva a partir da heterogeneidade, inventar um “Um” a partir do diverso; dizer que nossa história e herança comuns eram justamente temos sido diversos desde o início, não de forma conflituosa e tensa, mas de forma harmoniosa e sintética.

Os costumes, tradições, técnicas, religiosidades e práticas europeias, africanas e indígenas haviam se amalgamado numa síntese cultural em que todos poderiam se reconhecer e afirmar sua identidade, o mestiço tinha virado nacional.

Estava gestado o mito da democracia racional, construído de forma exemplar contido na obra de Gilberto Freyre como interpenetração cultura entre a Casa Grande e a Senzala, entre os senhores e escravos, como troca e síntese simbólica que supera e ultrapassa a desigualdade social.

Nossa identidade nacional, doravante, “era cruzada no sangue e sincrética na cultura”. No Brasil a promessa de assimilação não tece como focos centrais os ideais liberais de autoconstrução individual, da perfectibilidade humana, do desenvolvimento irrefreável da civilização e da cultura e da incorporação dos mais altos valores da identidade nacional.

A promessa de assimilação parecia resumir-se na seguindo fórmula: assuma seu hibridismo, torne-se brasileiro. Em princípio, a referida conversão não requeria muito esforço e a diligência, estava dada de antemão, estava no sangue, na cultural e era primordial.

Os estranhos da sociedade brasileira, dentre eles os negros, índios, mulatos, mamelucos, mestiços e foram se tornando automaticamente nacionais, ninguém os avisou!

Na medida em que os elementos étnicos e culturais particulares, segundo uma política deliberada de Estado, foram se desparticularizando e deshistoricizando como símbolos nacionais, imanentes e primordiais. E, num passe de mágica, todos estavam assimilados!

No contexto histórico atual, denominado por alguns de pós-modernidade, sociedade de risco, modernidade reflexiva, a lógica cultura do capitalismo tardio, ou como preferiu Bauman, modernidade líquida, pode-se admitir que o Estado tornou-se praticamente impossibilitado de cumprir a atribuição de construir uma nação étnica e culturalmente homogênea e o combate à diferença e aos sujeitos diferentes tornou-se uma tarefa despropositada.

Isso significou uma dentre outras coisas, a ausência de ofertas assimilatórias nas modalidades do liberalismo clássico. Por mais que estivessem permeadas de ambiguidades e armadilhas, nelas havia a promessa de pertencer a uma comunidade nacional e filiar-se a uma identidade coletivamente compartilhada.

Com a ausência ou precariedade das ofertas de assimilação, a despeito de políticas públicas ofertas aos diferentes, segundo critérios de classe, gênero, étnicos e outros que são politicamente mobilizados e organizados, muitos estranhos poderão permanecer exatamente como são: estranhos.

Algumas considerações importantes sobre como a condição social pós-moderna vem sendo tematizada nos debates sociológicos contemporâneos. Assim pensadores como Anthony Giddens, Stuart Hall[21], Zygmunt Bauman, ao refletirem sobre a sociedade contemporânea, antes investigam os processos sociais de individualização e formação de identidades inauguradas como o surgimento da modernidade.

Segundo estes, a partir do desencaixe brutal das identidades coletivas da sociedade pré-moderna, promovidas pela emergência do turbilhão moderno, as identidades herdadas seria substituídas por identidades agora autoconstruídas, como responsabilidade do indivíduo.

Porém, as referências da autoconstrução seriam oferecidas de forma coletiva, segundo novas categorias modernas de pertencimento social, como a classe, o trabalho, o bairro, a vizinhança e família. A tarefa individual de construção da biografia era apoiada por referenciais claros e nítidos de identidade, de modo que o projeto de vida individual se ligava ao projeto coletivo de construção da ordem, e ganhava seu sentido como colaborador ativo na realização do último.

O Estado, como o grande protagonista dos planos de fundação da ordem, oferecia possibilidades estáveis de reencaixe aos desencaixados.

A partir da emergência da chamada “modernidade líquida”, o Estado perdeu muitas de suas atribuições, deixando os indivíduos coletivamente desamparados e abandonado à própria sorte, dependendo apenas de si próprios para decidir os rumos a tomar e pagando sozinhos a pena das escolhas erradas e dos empreendimentos fracassados.

Nessa nova configuração volátil da modernidade, argumentou Bauman, os indivíduos se confrontam com a constatação difícil, anunciada pelas políticas neoliberais, de que não existe mais salvação pela sociedade e de que está aberta a temporada de caça de “salve-se quem puder”. Isso se torna ainda mais dramático em sociedades como a brasileira em que as desigualdades sociais e a denegação dos direitos são um problema histórico de longa duração.

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução de Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

_________________. A mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

CÔRTES, Mariana. Modernidade, assimilação e ambivalência no Brasil. A construção social da ambivalência na sociedade brasileira contemporânea. Disponível em: http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Mariana-Cortes.pdf.  Acesso em 05.04.2017.

DOS SANTOS, Robison. Considerações sobre a perfectibilidade humana a partir de Rousseau e Kant. Estudos Kantianos (EK) volume 1, n.2. 2014.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade. Estadual Paulista, 1991.

HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2002.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2011.

_____________. O princípio vida: fundamentos para uma biológica filosófica. Tradução de Carlos Almeida Pereira. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

PEREIRA, Genivaldo do Nascimento; DA SILVA, Everaldo. A contingência necessária: um paralelo entre Bauman e Jonas. Cadernos Zygmunt Bauman, vol. 6, num, 11, 2016.

SCHWARCZ, Lilia M.. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

[1] Hans Jonas (1903-1993) filósofo alemão. É conhecido principalmente devido à sua influente obra intitulada “O Princípio da Responsabilidade” que foi publicada em alemão em 1979 e, em inglês somente em 1984. Concentrou-se nos problemas ético-sociais criados pela tecnologia.

E, sustentou que a sobrevivência humana depende de nossos esforços para cuidar de nosso planeta e seu futuro. Formulou novo característico princípio moral supremo, in litteris: “Atuar de forma que os efeitos de suas ações sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana genuína”.

Sua obra teve o papel de catalisador do movimento ambiental na Alemanha, e em sua obra intitulada “O Fenômeno da Vida” de 1966 formou a espinha dorsal de uma escola de Bioética nos EUA. Foi profundamente influenciado por Heidegger, e tentou sintetizar a filosofia da matéria com a filosofia da mente, produzindo rico entendimento da biologia, em busca de uma natureza humana material e moral.

A biologia filosófica de Jonas tentou proporcionar uma concepção una de homem, e totalmente reconciliada com a ciência biológica contemporânea. Escreveu muito sobre o gnosticismo pelo que é igualmente conhecido, interpretando a religião como ponto de vista existencial filosófico.

[2] Questiona-se por que Hans Jonas poder ser considerado um clássico na filosofia contemporânea?

Todas as éticas clássicas: antigas, modernas e contemporâneas até o momento da publicação de “O Princípio da Responsabilidade” não lidavam diretamente com os seres futuros quanto à possibilidade de termos responsabilidades e deveres para com eles; apenas com aqueles que já existem (proximidade no tempo, embora não no espaço).

Com Jonas inicia-se uma nova perspectiva quanto aos seres futuros exigirem eticamente compromisso daqueles que os gerarão – mesmo que ainda não tenham sido gerados.

Jonas coloca, portanto, uma questão antes em aberto, qual seja: não haveríamos de nos preocupar com quem realmente ainda não existia e quiçá poderia nem vir a existir.

Contudo, Jonas assevera que não é bem assim, pois o futuro não pode ficar refém de atos irresponsáveis para aqueles que eventualmente venham a nascer tornando-o inviável para esses futuros (eventuais) seres.

Em uma abordagem tout court é basicamente isso que torna o filósofo alemão um clássico contemporâneo: o ineditismo de suas reflexões sobre os seres futuros e a nossa responsabilidade para com eles.

Em “O Princípio Responsabilidade” analisam-se as éticas clássicas e modernas e procura demonstrar-se como estas não consegue lidar com a possibilidade ou com o futuro, mas apenas com a proximidade e com o presente. A partir dessa impossibilidade dos sistemas éticos clássicos e modernos, Jonas propõe sua tese: devemos evitar arriscar a vida humana futura, ou seja, diante dos avanços inevitáveis das tecnologias devemos nos perguntar se temos o direito de arriscar a vida futura da humanidade e do planeta. Jonas conclui que não devemos, embora tenhamos o poder tecnológico e a arrogância política, porque não temos o direito de estabelecer o fim da vida humana e planetária como um princípio ético válido, justificável. A fim de evitar a circularidade em seu raciocínio, Jonas toma como exemplo concreto a atitude dos pais diante da possibilidade da vida de seus filhos, evitando colocar seu futuro como ser humano em risco apesar de o filho ou filha ser apenas uma possibilidade eventualmente não concretizável – o bebê pode não vir a nascer. Esse ponto será retomado durante toda a trajetória teórica de Jonas em suas obras posteriores.

[3] O fenômeno denominado “morte de Deus” apresenta-se como um diagnóstico da modernidade. A própria religião sobrevivente tornou-se um produto comercializado das mais diversas maneiras; como nunca, Deus fala através dos seus “porta-vozes” religiosos “vocacionados” e testa a sua fé por meio de uma generosa oferta do dízimo. Concomitantemente, fundamentalistas religiosos consideram-se defensores de uma única postura religiosa possível, inflexível, a verdadeira, segundo cada um deles.

Na outra extremidade, a ciência e a tecnologia acenam com invenções que tocam o limiar da origem da vida. Diante dos avanços tecnológicos e arraigada inflexibilidade de opiniões que desembocam na decadência dos valores morais por tanto tempo preservados, nos perguntamos: Qual parâmetro ético poderia oferecer novos horizontes para a humanidade?  Diante das novas possibilidades tecnológicas, como pensar em uma ética capaz de acenar com um horizonte convergente para um padrão mínimo de comportamento aceitável nas diversas sociedades contemporâneas, respaldadas por diversas culturas e fundamentos antropológicos?

[4] O paradigma da ciência moderna, assentado na razão, na divisão/análise e na máxima “conhecer para controlar” reduziu os problemas e suas respostas a modelos para a ação transformadora sobre a natureza e controladora da sociedade, produzindo conhecimentos disciplinares e com alto nível de especialização. Separar e reduzir têm sido máximas do paradigma moderno.

Entretanto natureza e sociedade nunca deixaram de ser complexas e o mundo atual é a expressão desta complexidade – os problemas que se nos apresentam são multidimensionais e as contradições se avolumam. O ser humano – alienado por suas próprias mãos – da natureza (que não deixa por isso de integrar) passou a ameaçá-la de forma perigosa para sua própria espécie e todas as outras. Os laços de solidariedade humana se fragilizam, desfazem e contradições irredutíveis emergem no cotidiano natural e social.

[5] Karl Mannheim (1893-1947) foi sociólogo judeu nascido na Hungria. Iniciou seus estudos de filosofia e sociologia em Budapeste participando de um grupo de estudos coordenado por Georg Lukács. Estudou também em Berlim — onde ouviu as preleções de Georg Simmel — e Paris. Em Heidelberg, onde Mannheim foi aluno do sociólogo Alfred Weber, irmão de Max Weber, tornou-se privatdozent a partir de 1920. Foi professor extraordinário de sociologia em Frankfurt a partir de 1934. Em 1935, com a ascensão do nazismo Mannheim deixou a Alemanha para tornar-se professor da London School of Economics.

O marxismo exerceu inicialmente uma forte influência sobre o pensamento de Mannheim, mas acabou abandonando-o, em parte por não acreditar que fossem necessários meios revolucionários para atingir uma sociedade melhor. Seu pensamento assemelha-se em certos aspectos aos de Hegel e Comte: acreditava que, no futuro, o homem iria superar o domínio que os processos históricos exercem sobre ele. Foi também muito influenciado pelo historicismo alemão e pelo pragmatismo inglês.

Max Weber e Karl Marx são os principais sociólogos com quem Mannheim dialoga para a construção da sua teoria sociológica a partir de Ideologia e Utopia (1929). Seu primeiro livro de grande envergadura (pois já publicara outros textos desde 1918), Ideologie und Utopia (Ideologia e utopia), de 1929, é também considerado seu mais importante escrito. Nesta obra, Mannheim afirma que todo ato de conhecimento não resulta apenas da consciência puramente teórica (lógica formal ou epistemologia positivista), mas também de inúmeros elementos de natureza não teórica, provenientes da vida social e das influências e vontades a que o indivíduo está sujeito.

Algumas influências de pensadores anteriores são importantes para os conceitos que Mannheim desenvolverá a partir desta obra.

De Nietzsche utilizará o perspectivismo, de Marx o conflito e a dominação e a sua teoria da ideologia, de Max Weber a sua tipologia para análise e o método compreensivo. Como resultado, Ideologia e Utopia é um livro que abarca desde epistemologia e metodologia, até teoria social (sociologia e política), e lança os alicerces da Wissensoziologie (Sociologia das Ideias ou Sociologia do Conhecimento), que já havia sido introduzida, de forma não tão consistente como o fez Mannheim, por Scheler e Veblen. Expande a questão dos intelectuais relativamente desvinculados de classes sociais, utilizando o termo intelligentsia cunhado por Alfred Weber, introduz uma análise do irracionalismo na política (que aprofundará em obras posteriores).

[6] Karl Emil Maximilian Weber (1864-1920) um intelectual, jurista e economista alemão considerado também um dos fundadores da Sociologia. Seu irmão também era célebre, sendo sociólogo e economista Alfred Weber.

Grande parte de seu trabalho como pensador e estudioso foi reservado para o estudo do capitalismo e do chamado processo de racionalização e desencantamento do mundo. Mas seus estudos também deram contribuição importante para a economia.

Sua obra mais famosa são os dois artigos que compõem “A ética protestante” e o “espírito do capitalismo”, com qual começou suas reflexões sobre a sociologia da religião. Weber argumentou que a religião era uma das razões não-exclusivas do porque as culturas do Ocidente e do Oriente se desenvolveram de formas diversas, e salientou a importância de algumas características específicas do protestantismo ascético, que levou ao nascimento do capitalismo, da burocracia e do estado racional e legal nos países ocidentais. Em outro trabalho importante, A política como vocação, Weber definiu o Estado como “uma entidade que reivindica o monopólio do uso legítimo da força física”, uma definição que se tornou central no estudo da moderna ciência política no Ocidente.  Em suas contribuições mais conhecidas são muitas vezes referidas como a “Tese de Weber”.

[7] Marc Halévy foi físico e filósofo francês, especializado em ciências da complexidade como ponto técnico fundamental de vista da perspectiva das suas aplicações na economia e previsão. É autor de mais de cinquenta livros, sobre ciência, espiritualidade e filosofia.

Escreveu sobre Cabala, taoísmo, maçonaria e, sua convergência com os pontos de vista da física moderna. A ele se deve a noção de acumulação de tempo, o tempo não passa, acumula-se, e as teorias derivas panmnésie e homéonésies para explicar o processo de autopoiese.

[8] William James (1842-1910) foi um dos fundadores da psicologia moderna e importante filósofo ligado ao pragmatismo, formado como médico. Escreveu diversas obras conceituadas sobre a então recente ciência psicologia, sendo um dos formuladores da psicologia funcional, também reconhecido como “O pai da psicologia americana”.

Willian James propôs uma teoria das emoções ao mesmo tempo em que o fisiologista dinamarquês Carl Lange. Ambos trabalharam independentemente e, de acordo com esta teoria, conhecida por teoria emocional de James-Lange, os sentimentos, isto é, as sensações subjetivas das emoções são um produto do reconhecimento do cérebro cortical das demais reações fisiológicas e comportamentais desencadeadas no corpo por determinado evento ambiental (o estímulo emocional).

[9] O sistema da negação pode ser um mecanismo psicológico positivo que nos permite recusar a realidade dolorosa, cobrindo as feridas, e assim prosseguir, tendo efeito idêntico a um amortecedor psicológico. Em suma, a negação é a defesa do ego e, segundo Freud a negação é uma qualidade lógica do pensamento que só pode ter sentido no sistema pré-consciente-consciente.

[10] O caos é atualmente o único conceito que ainda admite um conceito geral, ou seja, aquele das interferências de ordens diferentes.

 Somente a eliminação do caos, no interior da noção de caos, permite o uso do caos como conceito. Só como caos determinado o caos pode entrar no discurso científico. Ainda como caos determinado, (o caos pode sofrer uma deformação conceitua) que pode resultar num determinismo novo, perdendo sua força heurística de pensamento além das ordens conhecidas, como consequência da descoberta dos atratores.

A teoria física do caos distingue, até o momento, quatro atratores diferentes: Pontos Fixos, Cyclus Limitados, Torí e os Atratores Estranhos. Atenção maior, entretanto, não deveria ser dada ao atrator em si, mas a sua estranheza e aos fenômenos caóticos que acontecem em seu entorno.

[11] Do conceito pré-socrático de sophia e, através do tratamento que lhe deram Platão e Aristóteles, se chegou, por fim, a uma concepção dicotômica. A polaridade teoria-prática é uma construção tardia no pensamento grego. Surge dentro do contexto de Platão e dos escritos provenientes da Academia. É fácil entender tal questão quando se compara o significado de sophia nos períodos arcaico e clássico da história grega.  A sabedoria arcaica se caracterizava pela universalidade do saber, pela plena união entre o fazer e o pensar.

[12] É evidente que a techné e a phronesis não permitem chegar à verdade, porque ambas tratam com coisas que podem vir a ser de outro modo do que são. E, a episteme só o permite em relação à matemática, porque parte de premissas verdadeiras. Todas as demais áreas do conhecimento teorético são dialéticas, portanto, só podendo chegar as opiniões confiáveis. A techné, episteme e a phronesis têm sido traduzidas como ciência produtiva (ou habilidade técnica), ciência teorética (ou conhecimento científico) e na ciência prática (ou sabedoria prática), respectivamente.

Nous é a inteligência ou o pensamento estável. O ser original inicialmente emana, ou joga pra fora, o nous, que é uma imagem perfeita do Um e o arquétipo de todas as coisas existentes. É simultaneamente o ser e o pensamento, a ideia e o mundo ideal. Como imagem, o nous corresponde perfeitamente a UM, mas como derivado, é totalmente diferente. O nous é o componente mais crítico do idealismo.

[13] A Poética de Aristóteles provavelmente registrada entre os anos 335 antes de Cristo e 323 antes de Cristo, é um conjunto de anotações de aulas de Aristóteles sobre o tema da poesia e da arte em sua época, pertencentes aos seus escritos acromáticos (para serem transmitidos oralmente aos seus alunos) ou esotéricos (textos para iniciados).

Estes cadernos de anotações eram destinados às aulas do Liceu e serviam de guia para o mestre e investigador Aristóteles, anotações esquemáticas destinadas a serem desenvolvidas em suas aulas e não para serem conhecidas através da leitura. Praticamente tudo que se conservou de Aristóteles faz parte das obras acromáticas. É o primeiro escrito conhecido que procura especificamente analisar determinadas formas da arte e da literatura, também um registro limitado de como era a arte grega em seu tempo. A Poética, “não é apenas a primeira teoria do Teatro ocidental; trata-se de um livro que influenciou essa arte ao longo de sua história e que ainda ecoa”.

O historiador Marvin Carlson afirma que “embora a Poética de Aristóteles seja reconhecida por sua importância crítica em toda cultura ocidental, tudo, em cada detalhe deste trabalho levanta opiniões divergentes (Carlson 1993, 16)”. Constitui-se como um pensamento ou “teoria sobre a Tragédia”, como o define Eudoro de Souza.

A Poética passa a ser tratada como um cânone que determinava estilos que deveriam ser seguidos ou combatidos por várias correntes estéticas. Os mais conhecidos são os de inspiração clássica: classicismos e neoclassicismos diversos usaram algumas das análises do professor grego para determinar leis obrigatórias de composição para a arte em seu tempo, como as unidades de tempo, ação e lugar.

Por outro lado, oponentes de algumas destas regras começaram a entender o pensamento do filósofo grego pela via destes leitores. Os textos teóricos de Bertolt Brecht e a teoria pós dramática, por exemplo, fundamentam seus principais argumentos estéticos não nas escritas do autor grego, mas nos cânones levantados através dos séculos por seus leitores. Assim são as criticas ao naturalismo ou ao figurativismo ou a obrigatoriedade das unidades (de tempo, de lugar e de ação) na dramaturgia.

[14] Antígona é uma tragédia grega de Sófocles, composta por volta de 442 a. C. É cronologicamente a terceira peça de uma sequência de três tratando do ciclo tebano, embora tenha sido a primeira a ser escrita. A personagem do título é Antígona, filha de Édipo e, irmã de Etéocles e Polinice.

A história tem início com a morte dos dois filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, que se mataram mutuamente na luta pelo trono de Tebas. Com isso sobe ao poder Creonte, parente próximo da linhagem de Jocasta. Seu primeiro édito dizia respeito ao sepultamento dos irmãos Labdácidas. Ficou estipulado que o corpo de Etéocles receberia todo cerimonial devido aos mortos e aos deuses. Já Polinices teria seu corpo largado a esmo, sem o direito de ser sepultado e deixado para que as aves de rapina e os cães o dilacerassem. Creonte entendia que isso serviria de exemplo para todos os que pretendessem intentar contra o governo de Tebas.

Ao saber do édito, Antígona deixa claro que não deixará o corpo do irmão sem os ritos sagrados, mesmo que tenha que pagar com a própria vida por tal ação. Mostra-se insubmissa às leis humanas por estarem indo de encontro às leis divinas.

Ainda no primeiro episódio, Creonte é informado por um guarda de que o corpo de Polinices havia recebido uma camada de pó e com isso seu édito havia sido desrespeitado, colocando sua autoridade à prova. Ele se enfurece ainda mais quando o coro interroga-se, questionando se não teria sido obra dos próprios deuses.

Entra o primeiro estásimo, quando o coro exalta a capacidade do homem.

No segundo episódio o guarda descobre que o rebelde tratava-se de Antígona e a leva até Creonte. Trava-se então um duelo de ideias e ideais: de um lado a fé, tendo como sua defesa o cumprimento às leis dos deuses, as quais são mais antigas e, segundo ela, superiores às terrenas, e de outro lado o inquisidor, que tenta mostrar que ela agiu errado, explica seus motivos e razões, mas cada um continua impávido em suas crenças. Creonte manda também chamar Ismênia, que mesmo sem ter concordado com o ato da irmã, ainda no prólogo, confessa o crime que não cometeu. Ainda assim não recebe a admiração da irmã, a única e real transgressora. Ambas são condenadas à morte.

O segundo estásimo reflete sobre as maldições que se acumularam sobre os Labdácidas. O diálogo travado entre Creonte e seu filho Hêmon, futuro marido de Antígona, já no terceiro episódio, explicita a honradez do jovem rapaz e sua submissão às ordens paternas. Contudo, não deixa de levar argumentos concretos para a defesa de sua amada, de como o édito está sendo contestado pelo povo nas ruas, e que toda a cidade está de acordo com o feito de Antígona. Nesse ponto o autor mostra que a vaidade e o poder já tomaram conta de Creonte, que acredita ser o único a poder ordenar e governar aquele país (”E a cidade é que vai prescrever-me o que devo ordenar?” – linha 734 e “Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?” – linha 738). O filho ainda tenta trazê-lo à razão na linha 745: “Não tens respeito por ele [seu soberano poder] quando calcas as honras devidas aos deuses”. A discussão se acalora a ponto de Hêmon ameaçar se matar caso o pai não revogue a condenação, mas é entendido como uma ameaça de parricídio. Então o tirano decide tornar mais cruel a pena de Antígona, aprisionando-a em uma caverna escavada na rocha, só com o alimento indispensável, para assim ter um fim lento.

O terceiro estásimo celebra Eros, deus do amor, que geralmente leva as pessoas a ignorarem o bom senso.

O quarto episódio mostra as lamentações de Antígona. Pode-se entender de um lado como sendo uma tentativa de insuflar o povo a se revoltar contra o governo tirano de Creonte, mas também uma autocomiseração, mesmo diante de falas como “sem lágrimas”, “… eu, em muito a mais perversa”. O coro, no quarto estásimo, faz comparações com outras personagens mitológicas que também foram emparedadas.

Quinto episódio: entra Tirésias, adivinho conhecido e respeitado por todos. Ele adverte Creonte do mal que irá se abater em sua vida devido à sua teimosia, e que os deuses estão enfurecidos. Ele mantém-se irredutível, mas após a partida do adivinho é convencido pelo coro a libertar Antígona e sepultar Polinices.

No quinto estásimo o coro recorre a Dionísio, patrono de Tebas, para que ele restaure a cidade. O desfecho trágico apresentado no êxodo é típico sofocliano, com diversas mortes. Mesmo tendo sepultado ele mesmo o sobrinho há muito morto, Creonte terá que viver com o peso da morte de Antígona, que já havia se matado quando ele fora buscá-la, com o suicídio de seu filho Hêmon, ao saber da morte da amada e com o suicídio da própria esposa, Eurídice, ao receber a notícia da morte do filho querido.

[15] Só sei que nada sei é uma famosa frase atribuída ao filósofo grego Sócrates que significa um reconhecimento da própria ignorância da parte do autor.

Alguns pensadores e filósofos contestam que Sócrates disse a frase desta maneira, mas não parece haver dúvida que o conteúdo é associado ao filósofo grego.  Existem, no entanto, pessoas que afirmam que Sócrates não proferiu esta frase, porque ela não se encontra nas obras de Platão (o seu aluno mais conhecido), que contêm os ensinamentos de Sócrates. Podemos afirmar que existe a contraposição de dois tipos de conhecimento: o conhecimento através da certeza e o conhecimento através da crença justificada. Sócrates se considerava ignorante porque não tinha certezas, afirmando também que o conhecimento absoluto ou com certeza, só existia nos deuses.

Assim, muitas vezes esta frase significa que não é possível saber algo com a certeza absoluta e não significa que Sócrates não sabia absolutamente nada.

[16] Um dos conceitos mais interessante e polêmico da lavra de Hans Jonas é a heurística do temor, que fora erroneamente traduzida do alemão como heurística do medo, conforme acentuou o filósofo Jelson Roberto de Oliveira. Trata-se de uma opção ética pelo mau prognóstico, de um antídoto contra a esperança sem sentido que pode afetar a ação humana no mundo. Em vez das probabilidades otimistas e idealistas.

Jonas propôs usar-se o medo como forma de aprendizado e fazer da projeção da possibilidade, da previsão negativa como condição para alterar a atitude do ser humano frente à natureza.

É preciso utilizar as predições e presságios apontados pelos saberes científicos modernos como forma de antecipação de condições nefastas previstas caso o ser humano não altere as suas ações, em sentido de fomentar a responsabilidade.

Trata-se de uma tomada de consciência do perigo, do risco do mal que adviria do uso perigoso do poder da técnica. Como a ameaça ambiental é geralmente imperceptível ou, pelo menos, de difícil acesso para o cidadão comum, a heurística poderia contribuir para revelar a real possibilidade do perigo e serviria de convocação. O temor, afinal, tem um tom antecipador, e é a primazia do mau prognóstico que despertaria no ser humano a responsabilidade. Jonas também fez uma crítica ao marxismo e a Kant.

[17] A expressão “niilismo consumado” foi cunhada por Nietzsche há exatamente um século e foi redefinida em meados do século vinte por Heidegger. Várias são as maneiras pelas quais esses dois filósofos o conceituaram. Vejamos algumas delas, utilizadas por Vattimo como equivalentes. Para Nietzsche o niilismo ocorre na medida em que o homem abandona o centro e se coloca em um ponto x qualquer; quando ocorre a desvalorização dos valores supremos; quando se proclama a morte de Deus; quando o mundo é convertido em fábula e se atribui à fábula a antiga dignidade metafísica do mundo verdadeiro; ou quando a experiência perde a autenticidade e se emancipa de quaisquer valores últimos. (In: CARVALHO, José Jorge. A Antropologia e o Niilismo Filosófico Contemporâneo. Disponível em: www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/…/anuario86_josejorge.pdf Acesso em05. 04.2017).

[18] Para Rousseau, portanto, o homem natural não pode ser reduzido a um mero animal entre outros animais, nem tampouco à sua condição empírica. Já a partir daqui, temos claramente características que também estão presentes no ideário de Kant.  Assim como notaremos em Kant, Rousseau refere-se às capacidades e às faculdades espirituais humanas, como elementos que distinguem o homem e que permitem a ele determinar-se a si mesmo, independentemente dos apelos e necessidades oriundos de sua constituição natural.  Até aqui parece não haver maiores dificuldades em compreendermos o que Rousseau quer dizer sobre a dupla constituição humana, há um tempo física e meta-física, como ele mesmo a definiu. E já aqui há também uma certa semelhança com aquela distinção que Kant mesmo irá estabelecer, a saber sensível e inteligível.

[19] Claude Lévi-Strauss (1908-2009) foi antropólogo, professor e filósofo belga. É considerado fundador da antropologia estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do século XX, porém suas ideias são muito diferentes do pensamento da época em que viveu, rompe com a ideia de que índios são somente índios, não concordava com a divisão em civilizados e selvagens ou a divisão em superiores e inferiores, além do possuir um maior pensar ambientalista radical, por mais que sua teoria seja interpretada com base aos olhares de intelectuais com o pensamento marxista pós-guerra Fria do século XXI, ideias assim só apareceram a partir do final da década de 1960 com o aparecimento da contracultura marxista cultural e ambientalista radical, embora as obras de Lévi-Strauss vejam os índios do Cerrado de forma “eurocêntrica” ou “colonialista” em certo ponto.

Entre 1935 a 1939, Lévi-Strauss lecionou sociologia na recém-criada Universidade de São Paulo, juntamente com os professores integrantes da missão francesa, entre eles: sua mulher Dinah Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Jean Maugüé e Pierre Monbeig. Junto com Dina, Strauss também excursionou por regiões centrais do Brasil, como Goiás, Mato Grosso e Paraná. Publicou o registro dessas expedições no livro Tristes Trópicos (1955), neste livro ele conta inclusive como sua vocação de antropólogo nasceu nessas viagens.

Em uma de suas primeiras viagens, no norte do Paraná, teve seu esperado primeiro contato com os índios, no Rio Tibagi, porém ficou decepcionado ao supor, sem muito conhecimento etnográfico, que “os índios do Tibagi (caingangues) não eram nem verdadeiros índios, nem selvagens”.

[20] ‘O homem é o único animal que pode se aperfeiçoar’: talvez esta definição pudesse se prestar para resumir, se isso fosse possível, o pensamento antropológico de Rousseau e Kant. A pergunta pelo homem, isto é, a pergunta acerca de sua constituição (não somente física ou biológica, mas, sobretudo, cultural, social e espiritual entre outros aspectos), sua posição no mundo (ou sua relação com os outros seres da natureza) e sua destinação (moral) – para mencionar aqui apenas três aspectos possíveis desta pergunta extremamente abrangente, para não dizer incomensurável e, por isso mesmo, difícil de ser respondida – sempre esteve relacionada de certo modo, como elemento catalisador (explícito ou implícito), nas reflexões filosóficas desde os primórdios do pensamento ocidental. Com Rousseau e com Kant isso não foi diferente.

[21] Stuart Hall (1932-2014) foi um teórico cultural e sociólogo jamaicano que viveu e atuou no Reino Unido a partir de 1951. Esteve no Brasil em 2000 para uma série de conferências e teve traduzida a coletânea de ensaios Da diáspora — Identidades e mediações culturais (Editora UFMG, organização de Liv Sovik) e o livro “A identidade cultural na pós-modernidade” (DP&A Editora). Continuou também a ser uma voz ativa na política britânica.

Tornou-se membro da British Academy em 2005, sendo reconhecido pela Academia após uma vasta produção intelectual sobre os diversos conflitos contemporâneos nos diversos meios culturais.

Eric Voegelin (1901-1985) foi filósofo, historiador e cientista político alemão radicado nos EUA. Relatou em sua obra “Reflexões Autobiográficas” induzido pela onda de interesse sobre a Revolução Russa de 1917, estudou a obra “O Capital” de Marx e foi marxista entre agosto a dezembro de 1919. Porém, durante seu curso universitário, ao estudar as disciplinas como a teoria econômica e a história da teoria econômica aprendera o que lhe parecia erradas em Marx. E chegou a afirmar que Marx cometeu grave distorção ao escrever sobre Hegel.

Para Voegelin, ao equivocar-se deliberadamente sobre Hegel, Marx pretendia sustentar uma ideologia que lhe permitisse apoiar a violência contra seres humanos afetando indignação moral e, por isso, Voegelin considera Karl Marx um mistificador deliberado. Afirma que o charlatanismo de Marx reside também na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles. Argumenta que, embora tenha recebido uma excelente formação filosófica, Marx sabia que o problema da etiologia na existência humana era central para uma filosofia do homem e que, se quisesse destruir a humanidade do homem fazendo dele um “homem socialista”, Marx precisava repelir a todo custo o argumento etiológico.

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