A literatura consagrando a cultura olfativa e gustativa 

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A literatura consagrando a cultura olfativa e gustativa  | Juristas
Carolina de Castro Wanderley, advogada, pesquisadora na área de Direito e Literatura, e Fabiano Dalla Bona, professor de Língua e Literatura Italiana no Departamento de Letras Neolatinas e do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ

O autor alemão Patrick Süskind, no ano de 1985, lançou um livro que alcançou grande projeção internacional.  Trata-se de Das parfum: die geschichte eines möders, que no Brasil recebeu o título O perfume:  história de um assassino.  Com uma prosa envolvente, a narrativa traz a história de um homem que nasce sem cheiro característico, mas que possui um olfato altamente sensível, capaz de reconhecer o mundo todo somente através dos odores. 

 Não queremos aqui revelar o encadeamento da obra literária, roubando a chance das pessoas que agora nos leem de conhecer o livro, altamente recomendável.  Ou, caso queiram, de assistir ao filme, que também é interessante.  Mas somos obrigados a dizer que Jean-Baptiste Grenouille, este peculiar personagem inodoro, traça sua saga a partir da Paris do século XVIII, passando então por Auvergne, Montpellier e Grasse.  Em sua jornada, desenvolve ainda mais seu dom olfativo e aprende técnicas de fixação de aromas para produção de perfumes.  Além das técnicas conhecidas então, ele desenvolve métodos de extração dos odores das pessoas, quando se desenrola o conflito da narrativa. 

Pois bem.  Grasse, cidade localizada ao sul da França, é conhecida como capital mundial do perfume.  Possui extensas plantações de oliveiras e de flores variadas, que fornecem matéria prima para os mais finos aromas da indústria de perfumaria mundial.  O jasmim de Grasse, por exemplo, é um dos principais ingredientes do perfume Chanel nº 5.   

Além disso, desde 2018, Grasse faz parte da Lista Representativa do Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco por suas técnicas relacionadas à produção de perfumes:  o cultivo de plantas aromáticas, seu processamento, extração e destilação de essências e o preparo dos perfumes propriamente ditos.  São saberes e fazeres de uma população que, por séculos, vem exercendo esta atividade econômica, mas também social e cultural.   

O modo de fazer um perfume é passível de proteção como Patrimônio Cultural, como vemos, ainda que os aromas não sejam protegíveis como patrimônio intelectual, assim como não o são os sabores e os pratos culinários. Como o olfato e o paladar são dos sentidos os mais irracionais, os menos controláveis e os que não podem ser codificados, ou seja, como eles não possuem uma linguagem própria para seu registro, não há como proteger os inventos aromáticos ou gustativos.  Os livros usam a escrita.  A música, a notação musical. As artes visuais, as tintas, cores e linhas.    

Mas as práticas coletivas de produção de perfumes e alimentos, estas sim podem ser reconhecidas como patrimônio cultural coletivo, ou seja, não de uma pessoa ou empresa, mas de uma comunidade determinada.  Aqui no Brasil, as técnicas de preparo de alimentos como o Queijo Minas, em Minas Gerais, ou a Cajuína, bebida de caju do Piauí, são bens culturais imateriais registrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.  Em outras palavras, sabores e aromas não podem ser monopólio de uma pessoa ou de uma empresa oficialmente, somente de coletividades.  Quem quiser conservar para si uma receita, que a guarde em segredo – assim diziam nossas avós.   

Voltando, contudo, ao livro, de Patrick Süskind que abriu este artigo:  a literatura tem sido há muito tempo instrumento de registro de práticas, saberes e fazeres coletivos, não só de aromas, como Grasse, no romance O perfume:  história de um assassino, mas também de conhecimentos coletivos culinários.  Quem não lembra das deliciosas descrições da comida baiana através da caneta do autor Jorge Amado?  Acarajé, feijoada, moqueca!   

Sabores e aromas podem ser o tema principal de tramas literárias, ou podem ilustrar as práticas culturais de um lugar ou de um grupo.  Um exemplo célebre na literatura brasileira: o tacacá de Belém do Pará descrito por Dalcídio Jurandir em Belém do Grão-Pará 

“Sentada sobre um comum, diante de uma mesa velha e tosca, forrada com uma toalhinha branca, tendo ao lado, num caixote, um fogareiro a carvão e sobre o fogareiro, a panela com tucupi e camarão, e, sobre a mesa, a panela de goma e a cuia de pimenta murupi, e dois ou três montinhos de cuias negras, para servir à freguesia, vive a mulher do tacacá, desde as 15 horas até, em regra, às seis e meia da tarde, e às vezes até tarde da noite distribuindo cuias e cuias de tacacá aos seus fregueses infalíveis.” (Araújo, 2003, p. 393). 

Em 2013, a tacacazeira foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial do município de Belém, por meio da Lei n° 8.979/2013.  

Não se pode negligenciar o fato de que a cozinha popular é uma arte que requer um notável aprendizado e uma constante prática, tanto que a habilidade e o talento das mulheres ao tratar e preparar os alimentos, o saber fazer comida, por muito tempo foi considerado uma espécie de dote, e teve um papel importante na mobilidade social. As mulheres é que preparavam, diretamente ou como coadjuvantes, as refeições dos “senhores” e, de certa forma, tornavam-se também elas um patrimônio popular. Transmitiam o seu saber culinário que, tantas vezes, produzia resultados muito mais saborosos do que a melhor das cozinhas dos “abastados”.  

Em todos estes momentos, a literatura registra e consagra conhecimentos coletivos e auxilia o registro destas práticas de produção coletiva de alimentos e aromas como retratos de culturas e povos.  Confluindo linguagens, torna-se uma forma de arte que carinha e reverencia outras manifestações artísticas.  Como isso é rico, não? 

Referências: 

ARAÚJO, A. V. Introdução à sociologia da Amazônia. 2. ed. Manaus: Editora Valer: Governo do Estado do Amazonas: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2003. 

BENS culturais imateriais registrados.  IPHAN, s/d.  Acessada em 31.12.2024 em https://bcr.iphan.gov.br/bensculturais/?view_mode=table&perpage=12&paged=1&order=ASC&orderby=date&fetch_only=thumbnail&fetch_only_meta=65736%2C65773 

SÜSKIND, Patrick.  O perfume:  história de um assassino.  Trad. Flávio R. Kothe.  Guarulhos, Record, 1988.  

THE SKILLS related to perfume in Pays de Grasse:  the cultivation of perfume plants, the knowledge and processing of natural raw materials, and the art of perfume composition. UNESCO, s/d.  Acessada em 31.12.2024 em https://ich.unesco.org/en/RL/the-skills-related-to-perfume-in-pays-de-grasse-the-cultivation-of-perfume-plants-the-knowledge-and-processing-of-natural-raw-materials-and-the-art-of-perfume-composition-01207/ 

Carolina de Castro Wanderley, advogada, editora literária, doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela UFRJ, pesquisadora na área de Direito e Literatura, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: contato@carolinawanderley.com.br 

Fabiano Dalla Bona, professor de Língua e Literatura Italiana no Departamento de Letras Neolatinas e do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, e do Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura italianas da USP. Licenciado em Educação Artística, Mestre em Letras, Doutor em Letras Neolatinas. Autor dos livros Literatura e gastronomia: um casamento perfeito,  Fama à mesa,  O céu na boca e O prazer gastronômico no Reino das Duas Sicílias:  entre o sagrado e o profano na representação literária.  E-mail: fdbona@letras.ufrj.br   

 

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Carolina Castro Wanderley
Carolina Castro Wanderley
Advogada, editora literária, doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela UFRJ, pesquisadora na área de Direito e Literatura, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

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