A mitigação do cram down ante a aferição do voto abusivo

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A flexibilização do cram down em face do voto abusivo dos credores dominantes.

Com o fito de evitar a prevalência de posições individualistas sobre o interesse da coletividade de credores na preservação da empresa, a Lei Recuperacional previu, no § 1º do artigo 58, mecanismo do “cram down”, o qual autoriza ao magistrado a concessão da recuperação judicial, mesmo que contra decisão assemblear, ou seja, consiste na possibilidade de o juiz impor aos credores discordantes o plano apresentado pelo devedor e já aceito por uma maioria. A confirmação de um plano sobre uma classe dissidente é conhecida como “cram down“, porque o plano é “enfiado goela abaixo” da classe dissidente.

Os requisitos para a aprovação são cumulativos e estão elencados nos incisos I ao III do § 1º do art. 58 da LREF. Entretanto, para além, a jurisprudência pátria vem admitindo a flexibilização de um dos requisitos– qual seja a obtenção de um voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores da classe que rejeitou o plano – em situações excepcionais, a fim de evitar o abuso do direito de voto por alguns credores e visando a preservação da empresa.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de precedente1, admitiu a concessão da recuperação na ausência do quórum estabelecido pelo art. 45 da LREF e sem o atendimento simultâneo dos requisitos do artigo 58, § 1º. O entendimento fixado pela Quarta Turma é que o magistrado deve agir com sensibilidade na verificação dos requisitos do cram down, adotando como principal referência o princípio da preservação da empresa, sobretudo quando um credor domina a deliberação da Assembleia Geral de Credores de forma absoluta e se sobrepõe àquilo que parece ser o interesse da coletividade de credores, ponderando-se o direito do devedor de buscar, nesse processo, a superação efetiva da crise econômico-financeira que o acomete.

Trata-se, essencialmente, da hipótese em que o credor holdout tenha 1/3 ou mais de cabeça ou crédito mencionado, situação em que o requisito de aprovação de mais de 1/3 é impossível de ser alcançado. Se o cram down, como quórum alternativo, foi constituído para impedir que um credor específico, por comportamento estratégico, possa vetar a aprovação do plano de recuperação judicial que beneficie todos os demais, não poderia o requisito legal obstar justamente a aprovação do plano e conferir ao referido credor o poder justamente que se tentava evitar. Não poderá referido credor obstar, por comportamento sem justificativa, melhor meio de recuperação dos créditos ou prejudicar a superação da crise econômica em benefício de todos os demais credores.

Em verdade, tenta-se evitar que credores minoritários, que certamente não representam a universalidade das dívidas do devedor, obstem a aprovação de um plano de recuperação judicial. Consoante o voto do Desembargador. Alexandre Marcondes2 “não se pode deixar ao livre arbítrio de uma minoria o destino da empresa em recuperação judicial”.

Na mesma linha, o Des. Joao Marcos Buch em sede doutrinária:

O quórum alternativo foi criado justamente para evitar a figura do credor holdout, ou seja, aquele que pretende se utilizar de sua posição de bloqueio na aprovação do plano de recuperação judicial justamente para negociar maior valor em benefício próprio e em detrimento dos demais credores. Nesses termos, o quórum alternativo pretende evitar que esse credor, por seu voto desfavorável, provoque a decretação da falência da recuperanda em detrimento da vontade da maioria dos demais credores e de suas classes.3

Efetivamente esse é o entendimento do STJ, que orienta que os juízes pautem os seus posicionamentos na apreciação da rejeição do PRJ com prudência e moderação, verificando-se a possibilidade efetiva do soerguimento das empresas, tendo em conta o princípio da preservação das cooperações.

Neste entendimento, os artigos 47 e 58 da Lei nº 11.101/05 devem ser interpretados conjuntamente de acordo com a finalidade da normal legal, que a de permitir a recuperação judicial, e não impor obstáculos a ela. A viabilidade da empresa é verdadeiro pressuposto processual para a recuperação judicial e a existência da atividade empresarial é fundamento lógico desse tipo de processo, visto que sua finalidade é preservar os efeitos socialmente positivos que decorrem justamente do exercício da empresa.

Portanto, correto o entendimento de mitigação dos requisitos do artigo 58, §1º quando identificada a abusividade do credor dominante, para que ocorra a aprovação por “cram down”, de modo a prestigiar o princípio da preservação da empresa.


Notas de fim

1 STJ – REsp: 1337989 SP 2011/0269578-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 08/05/2018, T4 – 59 QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/06/2018

2 Agravo de Instrumento nº 2221901-50.2016.8.26.0000

3 TJ-SC – Agravo de Instrumento: 5036126-18.2023.8.24.0000, Relator: Joao Marcos Buch, Data de Julgamento: 16/06/2023, Segunda Câmara de Direito Comercial

Ana Vitória Crespani
Ana Vitória Crespani
Advogada, graduada em Direito pelo Mackenzie, atuando na área de Recuperação Judicial, Empresarial e Insolvência Cível no escritório Otto Gübel Sociedade de Advogados, membro da Comissão de Estudos de direito falimentar e RJ da OAB Campinas e membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB Campinas

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