O Direito Humanitário como filtro epistemológico do ato jurídico

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O Direito Humanitário como filtro epistemológico do ato jurídico | JuristasAntes de adentrar ao cerne da hipótese acadêmica vislumbrada, imperiosas fazem-se algumas definições, justamente para que a conceitualidade da temática não se esvaia. Nesse viés, é importante discorrer sobre Direitos Humanos, sobre a ideia de filtro epistemológico e, como consequência, sobre a implicação teleológica no conceito de ato, o qual também merece reflexão.

No que diz respeito aos Direitos Humanos, optamos doravante pela terminologia “Direito Humanitário”. Regressando às origens do termo, dentro dos alfarrábios do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, é possível encontrar eco no sentido de que o Direito Internacional Humanitário (DIH) volta-se para disciplinar, estudar e regrar os direitos e deveres dos Estados em tempos de conflitos armados. Quando do conceito é extraída a expressão “internacional”, deflui a definição mais ampla da disciplina, abarcando não apenas tempos de guerra, mas também tempos de paz. Portanto, entendemos mais elástica e contemplativa a terminologia Direito Humanitário, como título adequado e, portanto, eleito para nomear a ciência que estuda e disciplina o direito de ser humano, o mais natural e primário de todos os direitos.

Superada a definição de Direito Humanitário, dentro do propósito deste artigo, passa-se ao que se espera, dentro da hipótese lançada, da definição de filtro epistemológico, culminando no ato jurídico, sempre à luz da Hermenêutica. Partindo-se do princípio que cabe à hermenêutica a interpretação da legislação, sempre tomada dentro do panorama global do Direito, um filtro epistemológico é uma lente imprescindível dentro de determinado sistema, justamente para que se possa adequar, de forma satisfatória, um microssistema ao macrossistema. Então, torna-se possível o mergulho no tema, à luz dos conceitos ventilados, os quais se pretende adotar como premissas desse estudo.

Vertendo-se os olhares para o Brasil, mister se faz contextualizar o discurso dentro da contemporaneidade, especialmente delimitada pela Constituição Federal de 1988. Dentro desse contexto, prima facie, deve-se trazer o conceito de Estado Humanitário de Direito, como uma evolução doutrinária do literal Estado Democrático de Direito, o qual já restou efetivamente positivado no corpo da Carta Constitucional.

Dentro desse sentido, é importante extrair-se que o constituinte atribuiu ao art. 5º do contrato social republicano o revestimento de cláusula pétrea, nos termos de seu art. 60, §4º, quando protege os direitos e garantias individuais. E esta proteção está em pari passu com demais dispositivos que asseguram a gênese do Estado, traduzidos pela forma federativa de Estado, a separação dos poderes e o voto, em remissiva a um direito de cunho humanitário. Dentro do mesmo estudo, de cunho positivista, urge mencionar o importante §3º do art. 5º da Constituição Federal, o qual faz equiparar os tratados internacionais sobre Direito Humanitário dos quais o Brasil é signatário e foram devidamente ratificados, ao patamar kelsiniano de emenda constitucional.

Por tudo isso, à minha interpretação resta cristalino que há uma evolução do Estado Democrático de Direito para o Estado Humanitário de Direito, por meio da qual o respeito ao ser humano é o primeiro pilar essencial de sua constituição. E é exatamente por isso que qualquer ato administrativo – independentemente da natureza – deverá submeter-se ao filtro principiológico humanitário, como requisito de validade e eficácia jurídico-normativa. Outrossim, só há que se falar em atos administrativos perfeitos, os quais chegarem aos seus resultados naturalísticos por meio do filtro principiológico humanitário, sob pena de nulidade absoluta por inconstitucionalidade.

Ato contínuo, faz-se importante o estudo do ato, como movimentação ativa de natureza humana, notadamente qualificada por algum tipo de consequência. Peculiarmente neste momento, em que se mira o ato jurídico, tem-se como tal aquela atitude vinda de um ser humano, com consequências na esfera jurídica.

De toda sorte, a inserção de um ato humano no universo jurídico – até mesmo por sua complexidade – deve estabelecer um alinhamento à área em que se insere, na visão conceitual do ato em si, bem como das consequências jurídicas que ele carrega. Nesse sentido, podemos diferenciar três grandes momentos, separados pela legalidade presente na conduta ensejadora do ato estudado. São eles: o ato lícito, o ilícito e o crime.

Dentro desse panorama, é crível que o ato em alinhamento com o Direito deva ser considerado o ato lícito, restando aos demais uma mitigação de valor social, à exata proporção do quanto se afasta dos valores morais positivados no grande ecossistema que denominamos ordenamento jurídico. Assim, o ato ilícito paira em órbita externa ao Direito, mas limitada às claras fronteiras do universo cível. Já o crime adentra ao universo do crime, reconhecido como ultima ratio. Em outras palavras, o último e mais difícil contorno que um ato jurídico pode apresentar, sendo imprescindíveis a intenção livre e voluntária de seu agente para nesta seara ingressar.

Assim, não se torna uma tarefa difícil estabelecer a diferença entre um ilícito que apenas viola o universo cível de outro que resvala na seara criminal. Não apenas pelo desiderato que lhe move, mas, também, pela positivação penal que descreve diversas condutas – tanto no Código Penal quanto na legislação extravagante – devidamente seguidas pelo desvalor que o Estado lhes atribui, concretamente traduzidas por uma pena. Essa facilidade, todavia, não é observada no liame subjetivo entre o ato lícito e o ilícito cível, o qual suporta diversas análises cuja hermenêutica independe apenas de elementos objetivos como na diferenciação da primeira.

Adentrando a essa região limítrofe, tendo em vista a interpretação teleológica, sugerimos acrescentar o Direito Humanitário como filtro epistemológico a ser observado quando da consideração de um ato como lícito. Afinal, entendemos ser incompatível com o label de lícito qualquer ato que, mesmo em levante mínimo, viole algum direito ou, até mesmo, princípio de natureza humanitária. Seria viciar com a mácula da inconstitucionalidade, in re ipsa, uma conduta que jamais, portanto, poderia adentrar ao universo da licitude.

Dessa forma, ao analisar a hipótese de forma sistemática, temos que o contrato social do Estado Brasileiro, que se última na Magna Carta de 1988, estabelece o Direito Humanitário como um dos seus pilares mais caros. Prova disso é a promulgação da Emenda Constitucional n. 45, a qual equiparou os tratados sobre Direitos Humanos com as normas constitucionais, conforme já mencionado anteriormente. Nesse sentido, um ato jurídico que não atenda a satisfação humanitária que, certamente, nele deve encerrar-se não pode ser considerado como ato lícito, estando à margem da licitude, na ilegalidade, portanto, ainda que ostente aparência de não antijuridicidade.

Dentro dessa lógica, é perfeitamente explicável o fenômeno da função social atribuído pela Constituição Federal e legislação posterior a diversos elementos antes unicamente cíveis, como a propriedade e os contratos, exemplificando. Nesse viés, a função social da propriedade obrigado ao seu proprietário uma postura muito mais ativa e presente quanto ao seu imóvel do que o estado de direito da constituição anterior, que não dispunha dessa exigência de natureza humanitária. Manter a propriedade produtiva, respeitando a legislação ambiental, entre outros, são atitudes que encaminham esse direito para a seara da legalidade, sob as lentes de conceitos humanitários, como a função social. Da mesma forma os contratos que devem guardar a boa-fé objetiva das partes contratantes, sob pena de causarem severos prejuízos a uma das partes envolvidas, desequilibrando, assim, o ideal de isonomia humana que se idealizou para as partes.

À evidência, espera-se que muito se concretize dessa forma como os exemplos citados acima, justamente porque o filtro humanitário deve ser aplicado a absolutamente todos os atos jurídicos, como condição para que sejam considerados válidos e, portanto, lícitos. Notadamente, trata-se de uma profunda discussão hermenêutica geradora de discussões acaloradas, as quais tem fomentado severas divisões de opiniões, naturalmente quando se desvia do ambiente da técnica jurídica, o que desaconselhamos profundamente. Ao contrário, a expectativa é que essa temática ganhe as discussões e, dentro da marcha observada nos alfarrábios dos estudiosos do Direito, seja possível o manejo de ferramentas já disponíveis para a construção de um país melhor, no mínimo, mais justo e humanizado.


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Marcelo Henrique
Marcelo Henrique
Jurista, Jornalista, Professor e Escritor Escreve para o Mental Health Affairs, de Nova York - EUA, para o Psychreg, de Londres - UK, para o Intelectualidade.online, para o Brasil Agora Online, para o portal Direito e Negócios e portal Juristas Eleito escritor mais influente dos últimos seis anos no Mental Health Affairs.

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