Simplificar é fragilizar o Direito

Data:

O debate sobre a simplificação da linguagem no Direito ganha cada vez mais relevância no contexto atual, em que a velocidade da informação e o acesso fácil a conteúdos acabam ditando tendências em várias áreas do conhecimento. No entanto, será que essa busca por tornar o Direito mais compreensível para o público geral não está carregada de riscos que comprometem a essência da ciência jurídica? Essa é uma das questões levantadas pelo professor Lenio Streck (leia aqui), que alerta para os perigos de reduzir a complexidade do Direito em nome da acessibilidade.

Lenio Streck aborda, mais uma vez, com a contundência necessária, um dos debates mais prementes da atualidade jurídica: a simplificação da linguagem e sua relação direta com o empobrecimento do Direito. Concordo integralmente com sua análise e preocupação sobre os impactos da “linguagem simples” como projeto que, em nome da acessibilidade, desvirtua a própria essência do saber jurídico.

A simplificação da linguagem no Direito não se trata apenas de um esforço para tornar o vocabulário mais acessível ao cidadão comum, mas, como Streck bem aponta, carrega consigo o risco de simplificar também o fenômeno jurídico, sua complexidade e substância. O exemplo do TRF da 2ª Região, envolvendo o Homem-Aranha e decisões ilustradas com desenhos, é mais do que um episódio pitoresco: é um sintoma de uma crise profunda que afeta tanto a formação quanto a prática jurídica.

Streck está certo ao correlacionar esse movimento de simplificação com o cenário educacional atual. A transformação do ensino jurídico em um mercado de “facilidades” e conteúdos prêt-à-porter é alarmante. No afã de agradar, cursos, professores e influenciadores reduzem o estudo sério do Direito a pílulas de conhecimento descartáveis, deixando de lado autores fundamentais como Hart, Alexy, Dworkin e Kelsen. O resultado é um cenário no qual profissionais formados sem a devida base teórica se tornam incapazes de lidar com a complexidade das questões jurídicas e, consequentemente, inaptos para defender os direitos fundamentais dos cidadãos.

Esse contexto se agrava com a introdução de tecnologias como a inteligência artificial. Apesar de úteis como ferramentas, sua aplicação sem discernimento e sem o devido suporte teórico reforça a ideia de que o Direito pode ser tratado como uma questão puramente técnica. Tal postura, como Streck aponta, retira do Direito sua profundidade enquanto fenômeno humano, social e cultural.

Ao fazer referência à distopia de Fahrenheit 451, Streck evidencia como a simplificação da linguagem e a perda de significado cultural podem levar à alienação e à redução do pensamento crítico. No Direito, essa perda se traduz na formação de profissionais e decisões judiciais que falham em compreender e proteger os direitos fundamentais, abrindo espaço para arbitrariedades e insegurança jurídica.

Concordo também com Streck que a solução não está em perpetuar a linguagem empolada e o “juridiquês” que aliena o cidadão. No entanto, a simplificação não pode implicar a renúncia à complexidade que é intrínseca ao Direito. Comunicar o Direito de forma clara e acessível é necessário, mas essa comunicação deve preservar a profundidade e a precisão necessárias à ciência jurídica. Como bem coloca Streck, “menos linguagem, menos mundo”.

Por fim, o alerta de Streck não poderia ser mais pertinente: o movimento de simplificação da linguagem no Direito está intimamente ligado a uma onda mais ampla de anti-intelectualismo e superficialidade. Em tempos de desinformação e relativização do conhecimento, é fundamental resistir à tentação de reduzir o Direito à sua forma mais rústica e inofensiva. Preservar a complexidade do Direito é, antes de tudo, preservar a democracia e os direitos dos cidadãos.

A reflexão de Streck é um chamado à responsabilidade para todos os operadores do Direito: precisamos resistir ao fascínio das soluções fáceis e nos comprometer com o estudo sério, a reflexão profunda e o diálogo com as grandes obras que moldaram o pensamento jurídico. Afinal, como ele bem conclui, “o Direito deve – porque é – sofisticado porque cuida dos direitos das pessoas”. E para isso, não há atalhos.

 

Rui Aurélio de Lacerda Badaró
Rui Aurélio de Lacerda Badaró
Doutor em Direito Internacional pela Universidad Católica de Santa Fe. Conselheiro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. Professor de Direito Internacional Público da Universidade Paulista - Campus Sorocaba. Advogado regularmente inscrito na OABSP, OABRS e Conselho Regional de Lisboa da OA/PT.

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente, meu caríssimo amigo e grande Mestre Rui Badaró!!!
    Tomando a liberdade de fazer uma analogia, já ouvi muitas vezes críticas ao Prof. Paulo Reglus Neves Freire por, em determinadas obras ou contextos, se utilizar de vocabulário por demais prolixo.
    Note-se que o que estes críticos classificam de prolixo é, nada mais, termos que desconhecem por simplesmente não integrarem o universo acadêmico dos saberes pedagógicos.
    Esquecem-se que o nosso Patrono da Educação, via de regra, dirige-se não ao público final (alunos), mas aos educadores e, por isso, necessita, até mesmo para simplificar ideias e conceitos, de uma fraseologia técnica e esta não se presta a complicar e sim simplificar esta interação entre os futuros educadores e seus Mestres.
    Muito disso também decorre do menosprezo à figura do docente, não raras vezes, apedrejada e vilipendiada por figuras que, em tese, deveriam dar exemplo.
    Quando vemos um presidente chamar Paulo Freire de Energúmeno como não olhar para este presidente e vê-lo como real proprietário deste adjetivo?
    Bom… derivei um pouco do tema abordado pelo Irmão, mas parabenizo-o pela lucidez das palavras e pela pertinência e solidez dos argumentos na defesa da preservação de nossa linguagem tão rica em seu conjunto e tão necessária na sua aplicação jurídica apesar de minha condição de leigo nesta seara.

Deixe um comentário

Compartilhe

Inscreva-se

Últimas

Recentes
Veja Mais

O ChatGPT e a era dos Agentes de IA

            A empresa estadunidense OpenAI anunciou na última terça-feira (dia 14.01.25)[1] o acréscimo da função “Tasks” (Tarefas, em português)[2] no ChatGPT[3], seu modelo algorítmico baseado em inteligência artificial generativa (IAGen)[4]. A nova capacidade “permite aos usuários agendar ações futuras, lembretes e tarefas recorrentes, expandindo as utilidades do ChatGPT além da resposta em tempo real”[5]. A empresa explica que o “recurso foi desenhado para se assemelhar ao funcionamento de assistentes virtuais como Google Assistant ou Siri, mas com a sofisticação linguística que caracteriza o ChatGPT”[6].

A Chinesa Deepseek Ameaça a Liderança do ChatGPT

           No último final de semana, o mercado de tecnologia foi abalado com a notícia de que um modelo algorítmico desenvolvido pela Deepseek, uma companhia chinesa[1], superou o ChatGPT[2] em alguns testes de eficiência. O DeepSeek-R1, modelo de inteligência artificial generativa[3], atinge desempenho comparável ao GPT-4 o1, segundo divulgado[4]. Bateu recorde em número de downloads, superando o ChatGPT na App Store (loja de aplicativos da Apple) e na Google Play (da Google)[5].

A literatura consagrando a cultura olfativa e gustativa 

O autor alemão Patrick Süskind, no ano de 1985,...

Regras da ANAC, CDC e responsabilidade das companhias aéreas.

Saiba quais são as Regras da ANAC, CDC e responsabilidade das companhias aéreas e seus direitos como passageiro em casos de atrasos, cancelamentos e overbooking