Possibilidade de condenação de beneficiário de gratuidade da justiça ao pagamento de custas processuais

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O Princípio da Inafastabilidade, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, expressa a garantia de que não haverá lesão ou ameaça a direito que não possa ser levada à apreciação do Poder Judiciário. A mencionada garantia é reafirmada no artigo 3º do Código de Processo Civil, ao assegurar que não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. Esse princípio reafirma a garantia de acesso à justiça.

O art. 217, §1º, da Constituição Federal, ao tratar da Justiça Desportiva, de certa forma, representa uma relativização ao princípio da inafastabilidade.  A jurisprudência já decidiu que ser legítima a exigência de prévio requerimento administrativo, por exemplo de concessão de benefício previdenciário[1], para demonstrar o interesse de agir. Assim, segundo a jurisprudência, é possível que o processo seja extinto sem apreciação do mérito em virtude de carência de ação, por falta de interesse de agir, consistente na falta de prévio requerimento administrativo.  Também já foi reconhecida a constitucionalidade de normas genericamente limitativas da concessão de medidas de urgência pelo Poder Judiciário[2], desde que assegurada a análise da necessidade concreta da medida. Além disso, o Supremo Tribunal Federal decidiu que arbitragem não representa violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, considerando que ela sempre é condicionada à livre iniciativa das partes, nos termos do art. 3º do Código de Processo Civil.

A gratuidade da justiça é uma das maneiras de efetivar a garantia do acesso à justiça[3]. Prevista no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, ela assegura a prestação de assistência jurídica integral e gratuita a todos que comprovem insuficiência de recursos[4].

No plano infraconstituicional, a gratuidade está disciplinada na Lei nº 1.060/1950 e no Código de Processo Civil.

O benefício da gratuidade abrange todas as despesas, em sentido amplo, inclusive no âmbito recursal. O § 7º, do art. 98, do CPC, aliás, prevê que que se o benefício for pretendido em grau de recurso, o recorrente estará dispensado de comprovar o recolhimento do preparo.

De acordo com o art. 98,  §1º, do Código de Processo Civil, a gratuidade abrange: i) as taxas ou as custas judiciais; ii) os selos postais; iii) as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; iv) a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse; v) as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais; vi) os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; viii) o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; ix) os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; e x) os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.

A despeito dos benefícios indicados acima, o §2, do art. 98, do Código de Processo Civil, prevê que a concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência. No Processo Penal, a sentença ou o acórdão, que julgar a ação, qualquer incidente ou recurso, condenará nas custas o vencido, conforme previsto no art. 804 do Código de Processo Penal.

A exigibilidade dessas despesas e honorários, contudo, ficará suspensa por determinado período. Logo, vencido o beneficiário, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão com a exigibilidade suspensa, até que cessem as causas que justificaram a concessão do benefício. Cessadas essas causas, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão concessiva do benefício, o credor poderá pretender a cobrança dos mencionados valores, provando a cessação da condição de pobreza. Esgotado o prazo de 5 (cinco) anos, contudo, serão extintas definitivamente as obrigações do beneficiário (§3º, do art. 98, do Código de Processo Civil).

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a concessão do benefício de gratuidade da justiça não exclui a possibilidade de condenação do acusado ao pagamento de custas processuais. Nesse caso, há apenas a suspensão de sua exigibilidade pelo prazo de cinco anos. (Jurisprudência em Teses – Edição nº 148)

Essa orientação foi adotada no seguinte julgado: “[...] 1. Rever os fundamentos utilizados pela Corte a quo, para concluir pela absolvição dos acusados e a inexistência de qualquer potencial lesivo à vida ou patrimônio indeterminado de pessoas, desclassificando a conduta de crime de incêndio qualificado para o delito de dano qualificado, como requer a parte recorrente, importa revolvimento de matéria fático-probatória, vedado em recurso especial, segundo óbice da Súmula n. 7/STJ. 2. A concessão do benefício da gratuidade da justiça não exclui a condenação do Acusado ao pagamento das custas processuais, mas tão somente a suspensão da sua exigibilidade pelo prazo de cinco anos. Ademais, a análise da miserabilidade do Condenado, visando à inexigibilidade do pagamento das custas, deve ser feita pelo Juízo das Execuções (AgRg no AREsp n. 1371623/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Sexta Turma, julgado em 11/4/2019, DJe 30/4/2019). 3. Não é possível em recurso especial analisar o pedido de justiça gratuita que visa suspender, desde já, a exigibilidade do pagamento das despesas processuais, uma vez que o momento adequado de verificação da miserabilidade do condenado, para tal finalidade, é na fase de execução, diante da possibilidade de alteração financeira do apenado entre a data da condenação e a execução do decreto condenatório (AgRg no REsp 1699679/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 6/0/2019, DJe 13/8/2019). 4. Agravo regimental não provido. [...][5].”

[1] Confira o julgamento em Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal: RE nº 631.240.

[2] Confira o julgamento da Adin nº 223 do DF, pelo Supremo Tribunal Federal.

[3] Confira CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

[4] A expressão acesso à justiça é polissêmica, ampla e de difícil conceituação. “Isso porque a temática, atualmente, não é só analisada por aqueles que labutam no âmbito do Direito e do Poder Judiciário, mas, também, por economistas, cientistas políticos, psicólogos, sociólogos, dentre outros. Outras áreas do conhecimento também estão trabalhando com esse assunto. No entanto, é de se perguntar: essa leitura, por outras áreas, será que é benéfica e salutar? Deve-se aceitar essa interferência? Como interpretar essas opiniões de outras áreas? Entende-se que essa interferência é benéfica e não pode ser afastada, pois o Direito não pode mais ser analisado, como uma área do conhecimento, isoladamente. Afinal, está se tratando de um tema extremamente sensível as todas pessoas, físicas e jurídicas, e a toda a sociedade.” RUIZ, Ivan Aparecido. Princípio do acesso justiça. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/201/edicao-1/principio-do-acesso-justica.

[5] AgRg no AREsp 1601324/TO, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 18/02/2020, DJe 28/02/2020.

 

Antonio Evangelista de Souza Netto
Antonio Evangelista de Souza Netto
Juiz de Direito Titular de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP.

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