VIGILÂNCIA ALGORÍTMICA DAS REDES INTERATIVAS

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A partir de um certo ponto, a longa história da humanidade deixou de ser real. Sem que se percebesse, a sociedade humana subitamente abandonou a realidade: tudo o que aconteceu então supostamente não foi verdadeiro, mas isto supostamente também não foi percebido. A tarefa contemporânea agora seria encontrar esse ponto, e enquanto ele não for localizado, todos estarão condenados a mergulhar na destruição do próprio presente. (BAUDRILLARD, 2001, p.68)

Com base na apreensão de Baudrillard (por que vivemos uma história que não é mais real e por que aceitamos a destruição do nosso presente sem fazer nada?), o ponto de partida da inquietação deste estudo é a constatação de que um oligopólio de empresas carteliza os principais serviços prestados pela e para a humanidade no ciberespaço.

Por definição técnica, as “Big Techs” são as maiores empresas de tecnologia do mundo (notadamente, Google, Microsoft, Apple, Facebook), cujo desenvolvimento tecnológico retroage diretamente nos fenômenos psicossociais da época em curso.

Isso significa que as “Big Techs” operam em regime de comunhão entre si por meio do mapeamento e do armazenamento de todas as ações e de todos os dados dos seus usuários na rede. Esse processo é feito com a intenção de prever, representar, motivar, organizar e confirmar o modo pelo qual todo e cada indivíduo vai sentir, pensar e agir na sua vida online e, consequentemente, na sua vida off-line também.

De acordo com HILLMAN e VENTURA (1995, p. 96), a síndrome contemporânea é o vício na comunicação, uma vez que é “preciso estar em rede para existir”. Nesse sentido, estar incomunicável do ponto de vista da parafernália eletrônica é sinônimo de estar “sozinho”, “fora do gancho”, “vazio” e “nulo”. Isso porque “não sou encontrado em lugar nenhum. Ninguém chega até mim” (ibidem).

Associar a existência humana ao “estar acessível em rede” significa anular o corpo e aniquilar o espaço e o tempo. Mas não somente. Revela também a estratégia atual de reprodução do capital. Esta dinâmica se dá mediante relações tensionais e cíclicas que com uma mão produzem miséria e melancolia e, com a outra, oferecem soluções capitalizadoras baseadas na comercialização de recompensas instantâneas. Isto indica que tanto o fomento da ansiedade quanto o seu apaziguamento passam a ser articulados no ambiente virtual e são controlados pelas mesmas empresas que dominam este território.

Em outras palavras, quem estimula a doença também administra o antídoto de tal sorte que quanto mais adoecida estiver a sociedade tecnológica atual, mais antídotos serão consumidos. Portanto, quanto maior for o vício em “entretenimento”, “interação” e “diversão” maiores são as chances desses indivíduos nunca se darem da manipulação a qual estão submetidos e, em especial, do tanto de vida que estão entregando a essas empresas.

Posto isso, a argumentação, daqui por diante, irá tratar, especificamente, do oligopólio das redes sociais (Instagram, Twitter, TikTok, Facebook, e assim por diante) e dos seus efeitos  sobre o corpo social em escala planetária.

REDES SOCIAIS E SIMULACRO DO REAL

Em termos operacionais, as redes sociais são reconhecidas como agrupamentos complexos, cuja formação ocorre a partir de interações sociais, apoiadas em tecnologias digitais de comunicação. Contudo, seus efeitos psicossociais se traduzem tanto nas relações quanto nos valores sociais, políticos, culturais e psicoafetivos do sujeito na sua vida cotidiana.

Para tanto, os termos de uso dos serviços das redes interativas condicionam os seus usuários à vigilância algorítmica. Ou seja, cada passo do indivíduo na rede é mapeado, processado e armazenado. A partir desses dados, as empresas que controlam o “oligopólio ciberespacial” das redes sociais produzem um simulacro de realidade. Isto é, uma espécie de “mundo-cópia” no qual os significantes originais são esvaziados.

Esse simulacro do real (BAUDRILLARD, 1991) é fabricado por meio de um dilúvio de imagens, vídeos e stories hiper-reais, e é apresentado por meio de um feed hiper-segmentado de conteúdo de base ideológica pré-definida. Assim, os algoritmos produzem uma noção de realidade completamente turva, banal e distorcida para conduzir afetos, desejos, identidades e mentalidades.

Há objetivos mercadológicos por trás dessa condução programada dos feeds de conteúdo que retroagem no comportamento humano: é preciso favorecer a produção, a concentração e a manutenção da riqueza entre os tomadores de decisão do oligopólio das Big Techs das redes interativas.

Nesse sentido, a dominação ideológica exerce papel fundamental. A lógica em questão é que o controle da produção de sentido da sociedade está estritamente ligado ao controle do consumo da sociedade civil. Para isso, é preciso limitar a potência do imaginário a mera figura decorativa, que apenas reproduza a dominação vigente.

Por isso, a estratégia é a seguinte:

  • rebaixar a consciência crítica da sociedade para que apenas sigam o fluxo das suas respectivas “bolhas”
  • transformar valores sociais e pessoas em mercadorias que geram lucro para o proprietário dessas únicas empresas.

Assim, o algoritmo das redes interativas favorece o engajamento de conteúdo alienatório, investindo a todo instante contra o pensamento crítico. Afinal, é muito mais fácil controlar e domesticar aqueles que aceitaram passivamente trocar a consciência crítica por “seguidores” e “curtidas” do que mentalidades subversivas a esse modus operandi: o da reprogramação do imaginário social (MAGOSSI, 2021).

Nesse sentido, a reprogramação cibercultural do imaginário representa o processo psicossocial individual e coletivo, online e offline, de alteração dramática da identidade, da mentalidade, do comportamento, do afeto, da sexualidade e do valor social propositalmente for/matados pela vigilância algorítmica das redes interativas da época em curso.

Neste modelo de comunicação mediática, o receptor tem a ilusão de participar, mas cada passo é premeditado pelo emissor, que esconde a sua ideologia, de tal sorte que suas motivações econômicas e políticas estejam sempre silenciadas. Assim, o público fantasia uma relação — impossível — de “interação” e “conexão” síncronas entre as partes.

Em outras palavras, fixa-se um modelo de consumo no qual as pessoas são apresentadas como mercadorias perecíveis, descartáveis e precificáveis. Nota-se que o curto-circuito é bem estruturado a ponto do tecido social não se dar conta do direcionamento dos feeds e da sua base ideológica.

Todavia, nada poderia estar mais distante de uma interação embasada no vínculo comunicativo genuíno. Em “A dissolução do Outro na comunicação contemporânea” (2010), Malena Segura Contrera, define o vínculo comunicativo pela conexão psicoafetiva entre as partes envolvidas na ação comunicativa. Não se trata apenas de uma conexão técnica. O vínculo marca a diferença entre comunicação e mera troca de informações (p.101-111).

Sendo o vínculo “a base primeira para a comunicação” (CONTRERA, 2017, p. 354), a interação instrumentalizada guiada pelo oligopólio cibercultural das redes interativas é troca comercial.

CONSIDERAÇÕES FNAIS

Para todo clique dado na rede, há uma consequência. Por trás de cada simulação mediática há uma complexa sistematização de acúmulo de dados. Por meio da vigilância algorítmica, é possível prever o comportamento dos usuários nas redes. Com a previsibilidade, é possível direcionar feeds algorítmicos hiperseguimentados. Esses feeds, por sua vez, reproduzem a ideologia do oligopólio cibercultural das Big Techs. Essas empresas objetivam nada além da produção da riqueza para os seus proprietários. Nesse esquema, os afetos, os valores, e o comportamento da sociedade são des/organizados de acordo com métricas comerciais. O vínculo comunicativo é substituido pela ilusão da interação em tempo real. Inagura-se, assim, a era da reprogramação cibercultural pelo imaginário social.

Referências: 

BAUDRILLARD, J.  Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

______. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

CONTRERA, M.; BAITELLO JR, N. A dissolução do Outro na comunicação contemporânea. 2010. p.101-111. v.4. n.1 In: MATRIZES. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/38278

____. (2017). Mediosfera: meios, imaginários e desencantamento do mundo. 2ª ed. Porto Alegre: Imaginalis.

HILLMAN, J.; VENTURA, Michael. Cem anos de psicoterapia… e o mundo está cada vez pior. São Paulo: Summus, 1995.

MAGOSSI, P. G. Vigilância algorítmica e reprogramação do imaginário social: códigos invisíveis do submundo. In: XIV Simpósio Nacional da ABCIBER: Direitos humanos, políticas identitárias e imaginários de resistência, 2021. Disponível em: https://abciber.org.br/simposios/index.php/abciber/abciber14/paper/view/1708/819

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