Submundo e violĂȘncia neuronal

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De porte interdisciplinar, os artigos propostos nesta coluna concentram seus esforços na defesa do Estado de DemocrĂĄtico de Direito e no combate Ă  violĂȘncia contra a mulher. O foco debruça-se sobre as circunstĂąncias violentas e inconstitucionais, que permeiam as condiçÔes de trabalho e de vida da vĂ­tima do submundo adulto (sites erĂłticos). Nesse cenĂĄrio, os meios de comunicação sĂŁo cĂșmplices da barbĂĄrie: abraçam os porĂ”es da tortura e da regressĂŁo histĂłrica, confundem violĂȘncia contra a mulher com empoderamento da mulher, provocando uma devastação “nĂŁo acomete somente o presente; entrega o futuro imediato aos deleites de uma corrosĂŁo irreversĂ­vel” (TRIVINHO, 2021).

I – SOCIEDADE DO CANSAÇO E POSITIVIDADE TÓXICA

A “Sociedade do Cansaço” (2015), nomeada pelo filĂłsofo coreano Byung-Chui Han, Ă© compreendida pelo cansaço oriundo do esvaziamento da vida em prol da cultura do desempenho. De acordo com o autor, as mĂ©tricas comerciais (avaliaçÔes, seguidores, curtidas, visualizaçÔes, e assim por diante) correspondem a um novo sistema de punição institucional, que objetiva definir hierarquias e combater o concorrente. Nesta cultura da alta performance, os indivĂ­duos sĂŁo sugestionados a se verem como empresĂĄrios de si mesmos, a cobrarem a prĂłpria produtividade e eficiĂȘncia, tornando-se vigilantes e carrascos de suas prĂłprias açÔes:

Quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho, em vez de questionar o sistema, considera a si mesmo como responsåvel e se envergonha. No regime neoliberal de autoexploração, a agressão é dirigida contra nós. Ela transforma os explorados em depressivos (HAN, 2018, p.16)

Nesse contexto, as empresas transformam seus colaboradores em robĂŽs que desconhecem seus limites humanos, e trabalham com a imposição de metas cada vez mais desumanas. Os efeitos colaterais desse discurso motivacional Ă© a violĂȘncia neuronal, que se dĂĄ por meio da “positividade tĂłxica” do estĂ­mulo, eficiĂȘncia e reconhecimento social pela superação das prĂłprias limitaçÔes. Essa sistemĂĄtica traz como sintoma o esgotamento fĂ­sico e psĂ­quico, a depressĂŁo e a ansiedade como complementos bĂĄsicos do abandono dos prĂłprios limites emocionais.

II – O SUBMUNDO DOS SINTOMAS

De acordo com Marilena ChauĂ­ (2023), a mulher Ă© ilusoriamente apresentada como empresĂĄria de si prĂłpria, mas subordinada Ă  uberização do trabalho. Assim, o salĂĄrio Ă© substituĂ­do pela renda individual. Nessa perspectiva, a tragĂ©dia estĂĄ no fato de que nĂŁo se trata somente de uma trabalhadora pobre, mas de uma mulher cuja psique Ă© alimentada pelo medo, pela perda da autoestima, e pela ilusĂŁo da meritocracia da culpa, da competição. Nesse esquema draconiano, a mulher Ă© encorajada a seguir mĂ©tricas comerciais perversas. Assim, Ă© destinada Ă  concorrĂȘncia mortal entre os pares, o que destrĂłi a possibilidade de sororidade.

No caso do submundo erĂłtico, as vĂ­timas tambĂ©m estĂŁo submetidas Ă  tirania do desempenho mĂĄximo, da positividade tĂłxica e da violĂȘncia neuronal. Entre as principais metas comerciais de uma produtora de conteĂșdo erĂłtico na rede Ă© possĂ­vel citar:

  • As performances, os diĂĄlogos, as fotos e atĂ© mesmo os sorrisos das mulheres nos sites adultos sĂŁo refĂ©m de diretrizes comerciais que objetivam a reprogramação algorĂ­tmica da sexualidade.
  • O trĂĄfego de usuĂĄrios dos sites adultos Ă© redirecionado com base nos algoritmos e feeds hipersegmentados que visam atingir mĂ©tricas comerciais das empresas.
  • As mulheres precisam aprender o que fazer para subir o engajamento,
  • Conquistarem seguidores e fidelizĂĄ-los para monetizĂĄ-los;
  • Adaptarem-se Ă  rotina das publicaçÔes das fotos e vĂ­deos com poses especĂ­ficas,
  • Aprenderem a produzir stories diĂĄrios, agendarem mĂ­dias, e assim por diante.

 Conforme demonstrado, a produção, circulação e oferta das performances eróticas na rede é um trabalho meticuloso. Portanto, é o oposto do exercício livre da sexualidade feminina.

NĂŁo sem motivos, os casos de depressĂŁo, transtornos afetivos de humor e burnout nas vĂ­timas comprovam que hĂĄ algo de desumano nesta violĂȘncia neuronal (HAN, 2015). Entre os principais agravantes patolĂłgicos destacam-se: Transtornos EspecĂ­ficos da Personalidade (CID10XF60), com casos majoritĂĄrios de Transtorno de Personalidade HistriĂŽnica (CID10xF60.4) e Transtorno de Personalidade Borderline (CID10xF60.3); Transtorno Afetivo Bipolar (CID10xF31); Transtornos Ansiosos (CID10XF41), com ĂȘnfase para casos de Transtorno de PĂąnico (CID 10xF41.0), Ansiedade Generalizada (CID10xF41.1), Transtorno Misto Ansioso e Depressivo (CID 10xF41.2); Transtornos Depressivos (CID10XF33); Transtornos de Alimentação (CID10x F50).

Assim, as vĂ­timas sĂŁo engolidas pela positividade tĂłxica do sistema. Com isso, as mulheres sĂŁo esvaziadas dos seus afetos e desconhecem os seus limites. Como consequĂȘncia de mĂ©tricas comerciais cada vez mais desumanas, “o indivĂ­duo se explora e acredita que isso Ă© realização” (HAN, 2015).

III – INFANTILIZAÇÃO DO SUBMUNDO DA CIBERCULTURA

Entretanto, para camuflar a existĂȘncia de uma classe trabalhadora submetida a condiçÔes insalubres — e inconstitucionais —, todos os anĂșncios publicitĂĄrios enquadram-se no arco da “Fetichização imagĂ©tica e idiotização tecnocultural”. O autor EugĂȘnio Trivinho (2021) caracteretiza o fenĂŽmeno como franja da infantilização pĂłs-industrializada da cultura:

O conjunto envolve, especificamente, imagens editadas ou retrabalhadas, nĂŁo raro com função de meme, peça digital de violĂȘncia simbĂłlica desferida (e obliterada) sob a capa de chiste pretensamente inofensivo e que se irradia atravĂ©s de redes interativas. Sob colagem de fatores figurativos, sonoros e/ou textuais, extĂĄticos ou em movimento (vĂ­deos e gifs), esse mosaico implica menos os emojis, alfabeto icĂŽnico japonĂȘs para representar sentimentos particulares em correspondĂȘncia digital (ibidem).

Ainda de acordo com Trivinho o objetivo de todos esses signos Ă© cultivar “laços de afeto sob relativa garantia de empatia imediata, reação alegre e conforto emocional”. Para o autor, trata-se de uma fetichização imagĂ©tica, relativamente padronizada que calcifica emoçÔes em rota estĂ©tica e reducionista. Do ponto de vista psicoemocional e da relação com a existĂȘncia, Trivinho associa Ă  “queda irrefletida de um pĂĄtio intelectual inteiro – mais um –, em ladeira subcultural conhecida: desafortunadamente, essa oferta imagĂ©tica nĂŁo deixa de (re)fomentar atĂ© mesmo uma idiotização tecnocultural tardia, egressa desde, pelo menos, a segunda metade do sĂ©culo 20”.

Na obra, “A Sociedade do EspetĂĄculo” (1997), Debord define o espetĂĄculo mediĂĄtico como construção artificial e comercial de signos autoritĂĄrios que mentem quanto ao valor do que representam. Para o autor, o palco mediĂĄtico Ă© uma ferramenta extremamente atrativa e imperativa para substituir valores e identidades, e, em seu lugar, implantar desejos e estereĂłtipos de consumo com base em ideologias pautadas em diretrizes comerciais. Nessa Ăłrbita de fatores, observa-se o quanto o submundo reduz a potĂȘncia do vĂ­nculo comunicativo a simples ideia de trocas de informação.

A palavra conexĂŁo vem do latim connectƍ, composto pelas raĂ­zes con– +‎ nectƍ que querem dizer “vincular-se com”.  No texto “Corpo e imagem: comunicação, ambientes, vĂ­nculos”, Baitello Jr. (2008, p. 100) esclarece que a comunicação Ă© “uma atividade vinculadora entre duas instĂąncias vivas”, e nĂŁo mera troca de informaçÔes. Sobre a temĂĄtica, Ciro Marcondes Filho (2014, p. 590) reflete sobre os vĂ­nculos comunicativos em contexto mediĂĄtico:

Nesse sentido tambĂ©m podemos considerar a contribuição do estudo dos vĂ­nculos comunicativos para um alargamento da compreensĂŁo sobre os meios de comunicação, entendendo-os como espaços (fĂ­sicos ou simbĂłlicos) nos quais essa rede de vinculação deve operar numa escala socialmente maior do que a da comunicação interpessoal, e refletindo sobre se esses meios tĂȘm ou nĂŁo, de fato, desempenhado esse papel, ou se se tornaram meros espaços funcionais por onde transitam informaçÔes assĂ©pticas e vazias de sentido, apenas quantitativa e mercadologicamente consideradas.

Em continuidade ao pensamento de Ciro Marcondes Filho, a autora Malena Segura Contrera (2014) alerta sobre a diferenciação entre trocas comunicativas e relaçÔes comerciais:

É importante que façamos uma ressalva acerca do fato de que Ă© a desconsideração do papel do vĂ­nculo para a comunicação que colabora na manutenção de uma visĂŁo empobrecida sobre o processo comunicativo, muitas vezes conferindo Ă s trocas de informação seu aspecto central (…) Ao considerarmos os processos de vinculação, lançamos um novo sentido Ă s relaçÔes comunicativas, evitando uma concepção de que trocas comunicativas se assemelham a meras relaçÔes comerciais e instrumentais, e chamando a atenção para a importĂąncia dos processos de significação constituĂ­dos nessas relaçÔes (ibidem, p. 354)

A citação da autora deixa claro que trocas de informação precificadas, tais como essas que ocorrem entre as vĂ­timas internas e externas do submundo, nĂŁo sĂŁo prĂĄticas humanas de vinculação com o outro, mas de controle do outro. AlĂ©m disso, é preciso esclarecer que nĂŁo Ă© possĂ­vel pagar uma pessoa para fazer sexo “com conexĂŁo” com outra, pois o afeto nĂŁo Ă© uma mercadoria precificĂĄvel, mas um sentimento genuĂ­no.

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste horizonte epocal, as tecnologias da comunicação estĂŁo intimamente conectadas ao mercado de tal sorte que as grandes empresas e seus investidores sĂŁo os financiadores do desenvolvimento tecnolĂłgico. Com repertĂłrio cultural crĂ­tico Ă© possĂ­vel apreender que as empresas fabricam produtos a partir da captura de carĂȘncias e necessidades humanas, seguida da sua transformação em mercadorias precificĂĄveis. Entretanto, os meios de comunicação ocultam tanto sua ideologia quanto seus produtores, fabricando a ilusĂŁo de que nĂŁo existe ninguĂ©m por trĂĄs da comunicação. Trata-se do princĂ­pio da hipnogenia, conceituado por Baitello Jr. (2008, p.97).

Ouça-se o lastro de humor grotesco no encorajamento das prĂĄticas de violĂȘncia neuronal (HAN, 2015): o equĂ­voco da Ă©poca em curso consome sem reflexĂŁo crĂ­tica as performances hiper-reais do submundo adulto sem sequer cogitar que hĂĄ um dilĂșvio de mĂ©tricas comerciais, algoritmos e diretrizes publicitĂĄrias envolvidas naquelas supostas “produçÔes amadoras” para “interaçÔes genuĂ­nas”.

Neste cenĂĄrio, hĂĄ uma sociedade imersa numa condição alagadora de insatisfação pessoal, repleta de sujeitos neurĂłticos e carentes de afeto, buscando a realização de seus desejos na rede. Assim, a reprogramação do imaginĂĄrio fabricada pelo submundo nĂŁo se trata de alienação total, mas de entregar ao sujeito o que ele procura no confronto com o vazio de si. Em outras palavras, o sujeito nĂŁo estĂĄ consciente da estrutura macro que o envolve, isto Ă©, nĂŁo entende sobre a engrenagem do submundo (nĂŁo sabe como funciona o direcionamento do trĂĄfego dos usuĂĄrios para cada perfil de produtora de conteĂșdo, tampouco como funcionam os contratos de prestação de serviços, agendamento de mĂ­dia, comissĂŁo de plataformas, e assim por diante). Entretanto, nĂŁo estĂĄ totalmente alienado sobre o que faz na rede (existe satisfação momentĂąnea). Sendo assim, a manipulação Ă© do ponto de vista das forças macrossociais, mas individualmente, o sujeito estĂĄ relativamente consciente da sua ação.

Entretanto, o adoecimento fĂ­sico e psĂ­quico das vĂ­timas Ă© uma resposta sintomĂĄtica do corpo e do psiquismo da mulher que determina que hĂĄ violĂȘncia no submundo. Sobre o tema, James Hillman (1984) afirma que “o sintoma Ă© o primeiro escudo da psique que desperta e que nĂŁo quer mais tolerar nenhum abuso”.

Frente ao adoecimento, Ă© possĂ­vel desenvolver estratĂ©gias que minimizem o poder simbĂłlico da reprogramação sobre as vĂ­timas. Afinal, conforme defende Malena Segura Contrera (2021), “o imaginĂĄrio nĂŁo Ă© um arquivo-morto de imagens”, visto que a imagem Ă© um trabalho da psique, que envolve a consciĂȘncia. Nesse sentido, a consciĂȘncia crĂ­tica Ă© a chave para o despertar das vĂ­timas, aliviando-as dos sintomas da reprogramação ideolĂłgica do imaginĂĄrio propositalmente provocada pelas pulsĂ”es perversas do submundo.

REFERÊNCIAS

BAITELLO, JR. Corpo e imagem: Comunicação, ambientes, vínculos. In: RODRIGUES, D. Os valores e as atividades corporais. São Paulo: Summus, 2008. p. 95-112.

CHAUÍ, M.  AULA MAGNA “O que Ă© ideologia? Entenda a origem, os mecanismos, os fins e os efeitos sociais, econĂŽmicos e polĂ­ticos deste mascaramento da realidade social”. TransmissĂŁo no dia 07 de abril de 2023. DisponĂ­vel em: https://event.webinarjam.com/t/click/m193lanzu2w9u03xprs9yvz5c6v79xc465hg

Contrera, M. S.  Impactos persistentes da cultura de massas na comunicação: a crise da empatia e o rebaixamento cognitivo. São Paulo: Revista da Intercom 44. 2021.

DEBORD, G. A sociedade do espetĂĄculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Editora Vozes. 2015.

HILLMAN, J. Uma Busca Interior em Psicologia e ReligiĂŁo. SĂŁo Paulo: Paulus, 1984.

MAGOSSI, P.G. Tentáculos do submundo sobre a superfície. In: Portal Juristas — ISSN: 1808-8074. Publicado em 10 de julho de 2023. p. 1-4. Disponível em: https://juristas.com.br/2023/07/10/tentaculos-algoritmicos-do-submundo-sobre-a-superficie/

MAGOSSI, P.G. Reprogramação algorítmica da sexualidade. In: Portal Juristas — ISSN: 1808-8074. Publicado em 03 de junho de 2023. p.1-5. Disponível em:https://juristas.com.br/2023/06/03/reprogramacao-algoritmica-da-sexualidade/

MAGOSSI, P.G. Vigilñncia algorítmica das redes interativas. In: Portal Juristas — ISSN: 1808-8074. Publicado em 25 de maio de 2023. p. 1-6. Disponível em: https://juristas.com.br/2023/05/25/vigilancia-algoritmica-das-redes-interativas/

MAGOSSI, P.G. Combate Ă  violĂȘncia fĂ­sica contra a mulher: instrumentos de tortura “interativos”. In: Revista Juristas — ISSN: 1808-8074. p.1-5. Publicado em 19 de março de 2023. p. 1-4. DisponĂ­vel em: https://juristas.com.br/2023/03/19/combate-a-violencia-fisica-contra-a-mulher/?swcfpc=1

MAGOSSI, P.G. Fake news do submundo da cultura digital. In: Revista Juristas — ISSN: 1808-8074. Publicado em 11 de março de 2023. p.1-7. Disponível em: https://juristas.com.br/2023/03/11/fake-news-do-submundo-da-cultura-digital-2/?swcfpc=1

TRIVINHO, E. A pĂłs-indĂșstria da infantilização digital. Ppublicado na Revista Cult em 18.out.2021, disponĂ­vel pelo link: https://revistacult.uol.com.br/home/industria-infantilizacao/.

 

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