Combate à violência física contra a mulher no submundo: instrumentos de tortura “interativos”

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“Ninguém poderá prever as revoluções que se aproximam. Entretanto, a evolução da técnica decorrerá cada vez mais rapidamente e não será possível detê-la em parte alguma.” — Heidegger

Entre as práticas mais violentas do submundo da cultura digital contra a mulher estão os “vibradores interativos” (vibe toys) e as “máquinas de penetração interativas” (fucking machines). Tratam-se de objetos mecânicos que ficam inseridos no corpo das mulheres que trabalham na indústria adulta digital (as vítimas internas), por diversas horas, durante o seu expediente de trabalho, à espera do controle dos usuários (as vítimas externas).

É possível associar esses instrumentos de tortura e as condições insalubres de trabalho do submundo à catástrofe inescapável à qual Zygmunt Bauman se refere em sua obra O medo líquido (2008), considerando que não há mais controle em relação ao modo como a tecnologia é usada pelos sites adultos.

Não há dúvidas de que essas empresas deglutinaram os direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988, bem como pisotearam sobre todos os limites da ética. Sendo assim, é uma urgência conter a ameaça deste oligopólio cartelizado de empresas que opera a partir de um conjunto de imperativos cuja a premissa básica é a violência contra a mulher celebrada como espetáculo distópico em tempo real.

I CINISMO PUBLICITÁRIO 

Uma das principais estratégias do oligopólio cibercultural do submundo adulto é convencer as mulheres em situação de hipervulnerabilidade financeira a seguirem as sugestões dos capatazes ocultos (funcionários dos sites). A manobra é feita por meio de publicações nas redes sociais (notadamente Twitter, Telegram e TikTok). O discurso, por sua vez, é uma narrativa infantilizada e boçal baseada na lógica banal da chantagem: as mulheres que estão com a “nova ferramenta” de trabalho instalada em seus corpos e ligadas, prontas para receber comandos transmitidos por bluetooth, são aquelas que recebem mais visibilidade na rede pelas empresas.

Nesse contexto, receber maior visibilidade significa receber maior volume de tráfego de usuários em suas salas de videochat, condição necessária para receber gorjetas (“tip”/“token”) que ativam o instrumento. Em termos operacionais, isso significa que as mulheres que “voluntariamente” se sujeitam a esta tortura ficam “na frente” daquelas que escolhem preservar a saúde física dos seus corpos.

A publicidade dos sites eróticos estimula, também, diferentes níveis de violência: vibrações “brutais” (“monster vibe”) e penetrações mais potentes (“ultra-high”) custam mais caro. Aqui, portanto, os sites jogam novamente com a liberdade de enganar os usuários, dizendo-lhes que paguem mais caro para produzir vibrações ou penetrações mais intensas e, assim, machurarem mais a mulher. Não bastasse, o contrassenso publicitário também associa este porão da tortura física ao “prazer” feminino.

É crucial ressaltar que os tomadores de decisão nesses departamentos não são assessorados por cientistas sociais, tampouco por profissionais da saúde, tais como psicólogos e psiquiatras. Ou seja, as decisões são tomadas sem que haja necessariamente um nível mínimo de integridade e ética profissional. O objetivo é a produção de riqueza para o proprietário oculto. Custe o que custar.

II MELANCOLIA DO ÚNICO E VISIBILIDADE MEDIÁTICA

É importante mencionar que a mulher é encarregada de comprar o seu próprio instrumento de tortura, os quais não custam menos de R$ 2.000,00 e são desenvolvidos por apenas algumas marcas que, não por acaso, trabalham em parceria com os sites adultos. Assim, todos os sites que promovem essas ferramentas possuem parcerias com os fabricantes e lucram duplamente com essa forma de violência física contra a mulher. Com essa “jogada comercial” as empresas de criaram um enorme mercado para esses equipamentos que, de outra forma, nunca sequer existiria.

Neste momento, vale evidenciar que as mulheres recebem apenas uma parte menor do valor das gorjetas enviadas pelos usuários. Em geral, de 50% a 88% do valor enviado pelo usuário fica com o site adulto.

Ainda na lógica perversa de convencer as vítimas internas (as mulheres) e as vítimas externas (os homens) de que tudo isso é razoável e muito prazeroso para todos, os sites adultos transformam a crueldade em um espetáculo distópico, elegendo as mulheres que tiveram a “melhor performance interativa” (“best vibe performer”). Isto é, recebe um prêmio da empresa quem tiver suportado essas torturas físicas e psíquicas por mais tempo.

No rastro dessa perversidade, há uma plataforma no Brasil que, inclusive, realiza “batalha” entre os diferentes modelos de instrumentos mecânicos. Ou seja, as mulheres são incentivadas pelas empresas a competirem entre si (melancolia do único) pelo centro da cena mediática (visibilidade mediática), alienando-se sobre o que, de fato, está sendo feito com os seus próprios corpos e quais as consequências desta violência física e invisível.

No arco de caracterização da violência invisível, a melancolia do único é definida como um procedimento de defesa antecipada, resultante do desejo do único, que contém, em seu âmago, a ânsia pelo ofuscamento da alteridade por medo do ofuscamento do si-próprio da cena mediática (TRIVINHO, 2010, p.10). Já a visibilidade mediática configura o imperativo comunicacional da necessidade em aproximar-se do foco mediático a partir da encenação do si próprio e dos pertences e interesses comuns (TRIVINHO, 2009, p. 3).

 

III VIOLÊNCIA DA TÉCNICA

Como quase tudo no Capitalismo, esta forma de dominação — opressão de gênero e exploração econômica — é apresentada ao público como sendo “o futuro e a inovação” do setor e associam a destruição do corpo feminino à “diversão e prazer”.

Dessa forma, naturalizar a objetificação e a desumanização das mulheres como uma ritualidade cotidiana tende a instigar o imaginário dos homens para a criação de cenários cada vez mais perversos e sádicos, os quais, ali, na rede, poderão ser realizados anonimamente, sem qualquer vergonha ou reprovação social.

Conclui-se, portanto, que, para o submundo, a violência da técnica é apreendida como violência concreta propriamente dita, e não mais caracterizada apenas como violência simbólica e/ou invisível.

Nessa linha, a violência acoplada aos avanços tecnológicos representa vetores que desorganizam relações e valores sociais, reescalonando — de modo permanente — a produção de sentido na sociedade vigente (TRIVINHO, 2007, 69).

Conforme demonstrado, poucas vezes a teoria se deu conta formalmente da gravidade histórica desta situação. Portanto, situar posicionamento contra o submundo significar responder a um chamado de cidadania. Encoraja-se, assim, a investigação sobre as condições (insalubres e violentas) de trabalho no submundo adulto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Z. O medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

HEIDEGGER, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

MAGOSSI, P. G.  Reprogramação no ciberespaço: um estudo sobre a gradativa reprogramação psicoafetiva e sexual da civilização tecnológica atual e seus efeitos sociais. In: II Encontro Virtual da ABCiber: Novos Letramentos, apropriação das tecnologias e o ciberespaço como construção coletiva, 2021. Disponível em: https://abciber.org.br/simposios/index.php/virtualabciber/virtual2021/paper/viewFile/1581/757

TRIVINHO, E. A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização mediática avançada. São Paulo: Paulus, 2007.

__________. Espaço público, visibilidade mediática e cibercultura: obliteração estrutural da esfera pública no cyberspace. São Paulo: cópia reprográfica e digital, 2009.

__________. Visibilidade mediática, melancolia do único e violência invisível na cibercultura: significação social-histórica de um substrato cultural regressivo da sociabilidade em tempo real na civilização mediática avançada. In: XIX Encontro Nacional da COMPÓS, 2010. Disponível em: http://www.compos.org.br/data/biblioteca_287.pdf

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