Marcelo Godke é amplamente reconhecido como um dos mais destacados advogados em direito societário, mercado de capitais e governança corporativa no Brasil. É sócio do renomado escritório Godke Advogados e sua atuação engloba também falência, recuperação judicial e arbitragem. Godke é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), mestre pela Universiteit Leiden e pela Columbia Law School, e doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Sua expertise acadêmica e profissional o levou a ser professor em algumas das instituições mais prestigiadas do país, como Insper, CEU Law School e Faculdade Belavista. Nesta entrevista exclusiva para o Portal Juristas, ele nos oferece uma visão profunda sobre um tema crucial do direito societário: a business judgment rule.
Portal Juristas: Seu livro “A Business Judgment Rule no Direito Brasileiro” é fruto de sua tese de doutorado na USP. Poderia explicar de maneira resumida o que é a business judgment rule e qual sua relevância para o Direito?
Marcelo Godke: A business judgment rule é um dos pilares do direito societário americano, e embora seja amplamente estudada, ainda gera confusão e permanece controversa. Ela surgiu de um processo evolutivo na jurisprudência inglesa, e hoje faz parte da tradição do common law. A regra desempenha duas funções principais: primeiro, protege a autoridade dos administradores, permitindo que eles tomem decisões empresariais sem interferência constante de acionistas ou do Poder Judiciário. Em segundo lugar, ela protege os próprios administradores, criando uma presunção de que suas decisões foram informadas e que cumpriram seus deveres fiduciários de diligência e lealdade. Isso evita que assumam responsabilidade pessoal por suas decisões, desde que atuem dentro desses parâmetros.
Portal Juristas: Quais as origens e a evolução da business judgment rule?
Marcelo Godke: A origem dessa regra está no common law inglês, especialmente em casos que envolviam a responsabilidade de trustees na administração de patrimônios. Com o tempo, a discussão se ampliou para abranger administradores de empresas. Os tribunais ingleses, e posteriormente os americanos, sempre foram relutantes em responsabilizar administradores, exceto em casos de violação dos deveres fiduciários. No contexto americano, apesar de a regra ter sido bastante aplicada em vários tribunais estaduais e federais, ganhou muita força e a sua forma atual no Estado de Delaware, principalmente a partir da década de 1980, durante um período de muitas aquisições hostis. Foram centenas e centenas de casos. Por isso, Delaware se tornou o “lar” da business judgment rule, e hoje existem milhares de casos discutindo sua aplicação.
Portal Juristas: Podemos dizer, então, que a business judgment rule não é uma norma codificada no direito societário americano?
Marcelo Godke: Exatamente. A business judgment rule não é uma norma positivada; ela deriva da jurisprudência. Nos sistemas de common law, como o dos Estados Unidos, os precedentes têm força vinculante, ou seja, são obrigatórios para julgamentos posteriores. Ao longo dos séculos, a regra evoluiu e foi sendo aplicada a casos envolvendo a responsabilidade de administradores. Suas origens remontam a 1723 na Inglaterra, e até hoje seus efeitos reverberam em tribunais americanos quando se discute a responsabilidade de administradores de sociedades empresárias.
Portal Juristas: Há algum caso jurisprudencial que seja especialmente relevante na evolução dessa regra?
Marcelo Godke: Sim, há vários, mas um dos mais emblemáticos é o caso Smith v. Van Gorkom, de 1985. Nesse caso, o tribunal de Delaware decidiu que os conselheiros de administração não estavam protegidos pela business judgment rule porque falharam em cumprir seu dever de diligência. Outro caso fundamental é Unocal Corp. v. Mesa Petroleum, que estabeleceu que as decisões dos administradores, em defesa contra aquisições hostis, são válidas se forem proporcionais à ameaça. Além disso, o caso Moran v. Household International validou o uso da “poison pill”, um mecanismo de defesa contra aquisições hostis, protegendo-o pela business judgment rule.
Portal Juristas: Como a business judgment rule afeta o direito societário brasileiro? Podemos dizer que ela é aplicável aqui?
Marcelo Godke: Sem dúvida. A business judgment rule pode ser aplicada no Brasil, mesmo que ainda seja um tema pouco explorado. A Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/76) traz dispositivos que permitem a aplicação dessa regra. O artigo 158, por exemplo, consagra a proteção das decisões dos administradores, desde que tomadas com a devida diligência e observância aos deveres fiduciários. No meu livro, discuto detalhadamente como a business judgment rule pode ser usada para proteger administradores no Brasil, de forma semelhante ao que acontece nos Estados Unidos.
Portal Juristas: E quanto a outros países de tradição civil law, como Portugal, Alemanha e Itália? A business judgment rule pode ser aplicada nesses sistemas?
Marcelo Godke: Sim, inclusive, no meu livro, eu analiso a aplicação da business judgment rule nesses três países, que têm grande influência no direito brasileiro. Em Portugal e na Alemanha, a regra foi formalmente adotada pela legislação. Já na Itália, ela foi desenvolvida pela jurisprudência, como nos Estados Unidos. A aplicação da regra nesses países mostra que, mesmo em sistemas de civil law, há espaço para esse tipo de proteção aos administradores, o que pode servir de exemplo para o Brasil.
Portal Juristas: No Brasil, temos muitas empresas estatais. A business judgment rule também se aplica a essas empresas?
Marcelo Godke: Sim, aplica-se. Embora as estatais brasileiras sigam certas especificidades, a legislação brasileira estabelece que elas estão sujeitas ao regime jurídico das empresas privadas. Isso significa que, em termos de governança e responsabilidade dos administradores, as regras são similares. A Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) trouxe algumas peculiaridades, mas as normas da Lei das Sociedades por Ações, incluindo a business judgment rule, são amplamente aplicáveis. Empresas como Petrobras e Banco do Brasil, por exemplo, devem seguir essas diretrizes, garantindo que seus administradores sejam protegidos ao tomar decisões empresariais, desde que observem seus deveres fiduciários.
Como a utilização e aplicação correta da business judgment rule pode melhorar a administração das empresas no Brasil?
Marcelo Godke: Infelizmente, no Brasil, há, ainda, muita interpretação equivocada sobre quem tem poder de mando nas sociedades empresárias. A business judgment rule resolve tal assunto de maneira definitiva. É importante lembrar que, não obstante ser bastante aplicada nas discussões acerca da responsabilidade dos administradores, a partir da década de 1980 nos Estados Unidos, a business judgment rule passou também a ser muito utilizada para proteger as próprias decisões dos administradores. Trocando em miúdos, não são os acionistas, o Poder Judiciário ou qualquer terceiro que pode administrar a sociedade. É, de fato, o administrador. A partir de tal ideia, cria-se maior segurança jurídica, evitando-se que ações judiciais frívolas – em que se tenta enfraquecer ou retirar o poder dos administradores – sejam julgadas procedentes, afastando-se interferências indevidas por parte de acionistas descontentes com uma ou outra resolução de diretores ou conselheiros.
Portal Juristas: Como isso vem influenciando seu trabalho, enquanto advogado e especialista em questões voltadas ao direito societário e à governança corporativa?
Marcelo Godke: A business judgment rule, corretamente aplicada, cria verdadeiro norte e apresenta um caminho mais claro a ser seguido quando presto serviços jurídicos. Posso afirmar com maior clareza e precisão quais as consequências das decisões tomadas por administradores. Espero que os leitores passem a entender mais claramente o assunto e que isso sirva para orientá-los também. A segurança jurídica é essencial para a condução dos negócios e é isso que eu espero que tenha atingido com a preparação do livro.
Portal Juristas: Para concluir, qual a importância de aprofundar a discussão sobre a business judgment rule no Brasil?
Marcelo Godke: Acredito que a business judgment rule é um instrumento fundamental para fortalecer a governança corporativa no Brasil. Ela oferece uma proteção adicional aos administradores, incentivando a tomada de decisões estratégicas sem o medo de responsabilidade pessoal injustificada. Em um cenário econômico cada vez mais dinâmico, garantir essa segurança jurídica pode aumentar a confiança no mercado e atrair mais investimentos. Discutir e aplicar essa regra de forma mais sistemática no Brasil é, sem dúvida, um passo importante para a modernização e o aprimoramento do nosso direito societário.