A Justiça 4.0 no Brasil 1.0: análise do paradoxo entre transformação digital e promoção do acesso à justiça

Data:

Jurisprudências do TJSC
Créditos: NicoElNino / iStock

O Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”), recentemente, autorizou que os Tribunais instituam “Núcleos de Justiça 4.0” em conformidade com as Resoluções nº 345, 372, 378 e 385. A iniciativa denominada “Juízo 100% Digital” promete ampliar o acesso à justiça, qualificando as demandas de primeira instância e desafogando os Tribunais de serviços respectivos, o que concederá mais celeridade e menos custos.

A iniciativa pretende adotar uma série de ações, como a implementação de balcão virtual para a obtenção de informações e atendimento aos usuários, ampliação do grau de automação do processo judicial por meio do uso de inteligência artificial e implantação de base de dados processuais unificada.

Todos os atos processuais serão praticados exclusivamente por meio digital e remoto, incluindo audiências e sessões de julgamento, devendo os Núcleos darem andamento a todas as demandas especializadas encaminhadas de qualquer local do território sobre o qual os Tribunais possuam jurisdição. A distribuição de ações no Juízo 100% Digital será facultativa, podendo a parte contrária se opore ambas retratarem-se da escolha até a sentença, uma única vez.

Muito embora não se ignore as vantagens da tecnologia, que reduz ou torna inexistente os espaços geográficos, possibilitando, no contexto judicial, a realização de audiência virtuais mais céleres, até mesmo com parte no exterior, não é possível estabelecer uma relação direta entre a transformação digital pretendida e a citada “promoção do acesso à justiça”.

A iniciativa, vista com expressiva euforia, parece desconsiderar os desafios do Brasil, potencializados pela pandemia que acarretou diversos desdobramentos na econômica, na sociedade e nas relações interpessoais, agravados na população de maior vulnerabilidade, com acentuação significativa das desigualdades sociais.

Nesse contexto, indaga-se, há Justiça 4.0 no Brasil 1.0?

Não se pode olvidar que as barreiras de acesso à internet no Brasil são significativas. Conforme dados divulgados, em abril de 2021, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(“IBGE”), 40 milhões de brasileiros ainda não possuíam acesso à internet em 2019. Em áreas rurais, o índice de exclusão digital é ainda maior que nas áreas urbanas, totalizando 44,4%, sendo que o Nordeste é a região com menor percentual de domicílios com acesso à internet.

O percentual dos domicílios que sequer são atendidos pelos serviços de internet é de 17,3%. Esse número, em primeiro plano, pode até parecer baixo, porém, a mesma pesquisa identificou que a diferença de renda entre as famílias com e sem acesso aos serviços de internet é significativa.

A pesquisa divulgada, em agosto de 2021, pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (“CETIC”) apontou que, embora o número de pessoas com acesso à internet tenha aumentado, a desigualdade persiste, predominando-se o acesso por pessoas de classes mais altas, escolarizadas e jovens.

Segundo a pesquisa, 45% das famílias brasileiras com renda de até um salário-mínimo não possuem acesso à internet e em apenas 14% das residências das classes D e E existe um computador, sendo a pandemia um fator de agravamento da desigualdade social e exclusão digital.

O mesmo cenário foi constatado pelas Defensorias Públicas do Brasil. Na Nota Técnica produzida, em agosto de 2020, pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Núcleo de Estudos de Burocracia, 92,6% dos profissionais das Defensorias responderam que o acesso à justiça foi impactado pela pandemia, 47% declararam não conseguir atender o público satisfatoriamente e 19,2% dos profissionais sequer possuíam ou receberam os equipamentos necessários para o trabalho remoto.

Ao codificar as respostas dos motivos pelos quais os profissionais sentem que não estão realizando um atendimento satisfatório, constatou-se o seguinte cenário: (i) boa parte dos assistidos não têm acesso a recursos digitais (celulares ou computadores); (ii) mesmo quando possuem acesso, têm dificuldade de se comunicar e (iii)muitos não possuem letramento digital.

No contexto internacional, o Global Access to Justice Project, em investigação preliminar denominada Impacts of Covid-19 on Justice Systems, publicada em abril de 2020, coletou dados de 51 países, incluindo o Brasil, com o objeto de avaliar o impacto da pandemia sobre os sistemas de justiça e de assistência jurídica.

Nessa investigação, constatou-se uma série de violações aos direitos humanos cometidas sob o pretexto de redução da ameaça do Covid-19 e, no contexto do acesso à justiça propriamente dito, verificou-se que diversas cortes adotaram o uso de tecnologia para evitar o contato pessoal, o que, somados aos recursos limitados e aos soluções improvidas, acabaram por impedir a manutenção de níveis normais de acesso à justiça.

Dos países participantes, 71% declararam a existência de concentração de poder sob a justificativa de restringir a disseminação da Covid-19 e 61% declararam a ocorrência de violações aos direitos humanos sob o mesmo fundamento. Para mitigar o impacto da pandemia nos sistemas judiciais, 92% dos países declararam a adoção de medidas excepcionais, em especial, trabalho remoto (73%), suspensão temporária de audiências judiciais (69%) e suspensão temporária de atendimento presencial (71%). Porém, 78% não adotaram medidas para evitar o acúmulo de casos com longo tempo de espera após a pandemia e 51% declararam não possuir capacidade para manter níveis normais de acesso aos sistemas de justiça e de assistência jurídica.

A ausência de acesso à internet, acesso precário e/ou inexistência de letramento digital são questões desafiadoras em âmbito global, com desdobramentos acentuados no território nacional que já experimentava essa realidade antes da pandemia. As peculiaridades nacionais colocam em xeque a promoção do acesso à justiça por meio da transformação digital.

Não se potencializa a democracia e o acesso à justiça colocando como única escolha à disposição dos vulneráveis a resolução de sua demanda em anos, quando se propaga que a Justiça 4.0, acessível àqueles com privilégio informacional, é capaz de solucioná-la em dias.

Diante do significativo número de pessoas em situação de vulnerabilidade, torna-se incontroverso a inexistência de estrutura suficiente nos Tribunais para atender o parágrafo único do artigo 5º da Resolução nº 345/20 do CNJ e artigo 198 do CPC. A consequência da falta de acesso à internet será o deslocamento de pessoas aos fóruns e, da falta de estrutura, a realização de atos físicos.

Tais circunstâncias contrastam com um dos principais argumentos de implementação da Justiça 4.0: ampliar o acesso à justiça, alcançando pessoas que não conseguem acessar a estrutura física dos fóruns. As pessoas que não conseguem acessar os prédios físicos são, por vezes, as mesmas que não conseguem acessar a internet.

Até porque, mesmo as pessoas com letramento digital encontram diversas barreiras ao exercício pleno do acesso à justiça, em especial quanto à obtenção de informações pelos canais disponíveis e dificuldade de compreensão de termos técnicos e jurídicos. Transladar essa realidade para o ambiente virtual só contribuirá para que mais pessoas sejam excluídas, sobretudo as vulneráveis.

Os fatores destacados são graves e precisam ser analisados e refletidos. A euforia com a transformação digital, no âmbito jurídico, deve guardar correlação com a realidade do país e com a observância das garantias constitucionais.

O emprego de tecnologias, com a criação da Justiça 4.0 no Brasil, pode trazer diversos benefícios para o sistema judicial, todavia, é necessário que se tracem estratégias inclusivas, sob pena de se acentuar ainda mais a desigualdade e surrupiar o caráter democrático do acesso à justiça sob o pretexto da produtividade. A transformação digital, no Brasil 1.0, não potencializa o acesso à justiça.

Por isso, sugere-se que a iniciativa seja pensada também pela ótica da inclusão, adotando-se medidas para a ampliação e qualificação de canais de atendimento aos jurisdicionais (presenciais, como plantão de dúvidas, e virtuais, como serviço telefônico, e-mail e chat na web), criação de designs e arquiteturas de informações acessíveis à população (sistemas inclusivos e cartilhas ilustradas), criação de conjunto principio lógico para direcionar a atuação dos profissionais (como participação informada, segurança, igualdade, justiça e transparência), ampliação da rede de apoio aos grupos vulneráveis (investimentos na Defensoria Pública e demais associações de apoio) e criação de políticas públicas e projetos sociais para o combate à exclusão digital (cursos gratuitos e profissionalizantes de letramento digital e ampliação do acesso à internet por meio de consórcios públicos).

Daniella Carioni de S. Luque é advogada do escritório Ferfoglia Dias Advogados


Fique por dentro de tudo que acontece no mundo jurídico no Portal Juristas, siga nas redes sociais: FacebookTwitterInstagram e Linkedin. Participe de nossos grupos no Telegram e WhatsApp. Adquira sua certificação digital e-CPF e e-CNPJ na com a Juristas Certificação Digital, entre em contato conosco por email ou pelo WhatsApp (83) 9 93826000

Juristas
Juristashttp://juristas.com.br
O Portal Juristas nasceu com o objetivo de integrar uma comunidade jurídica onde os internautas possam compartilhar suas informações, ideias e delegar cada vez mais seu aprendizado em nosso Portal.

Deixe um comentário

Compartilhe

Inscreva-se

Últimas

Recentes
Veja Mais

Comparação de Processos de Registro de Marcas em Diferentes Países

O registro de marcas é uma prática essencial para a proteção da identidade corporativa e dos direitos de propriedade intelectual. No entanto, o processo de registro de marca pode variar significativamente de um país para outro, dependendo das regulamentações locais e dos sistemas legais. Este artigo compara os processos de registro de marcas em alguns dos principais mercados globais, destacando as semelhanças e diferenças.

Proteja Sua Marca: A Vantagem de Contratar um Advogado Especializado em Registro de Marcas

A proteção da marca é uma etapa crucial para qualquer empresa que deseja garantir sua identidade e se destacar no mercado competitivo. Embora o processo de registro de marca possa parecer simples à primeira vista, ele envolve várias nuances legais e administrativas que podem ser desafiadoras. É aqui que a contratação de um advogado especializado em registro de marcas se torna uma vantagem estratégica. Neste artigo, exploramos os benefícios de contar com um profissional especializado para proteger sua marca.

Os Benefícios do Registro da Marca para Empresas e Startups

Os Benefícios do Registro da Marca para Empresas e...

Benefícios Estratégicos do Registro de Marcas para Startups

No mundo altamente competitivo das startups, onde a inovação e a originalidade são a chave para o sucesso, o registro de marcas se destaca como uma estratégia essencial. Registrar a marca de uma startup não é apenas uma questão de proteção legal, mas também uma alavanca estratégica que pode influenciar diretamente o crescimento e a sustentabilidade do negócio. Neste artigo, exploramos os benefícios estratégicos do registro de marcas para startups e como isso pode contribuir para seu sucesso a longo prazo.