Por Douglas Lima Goulart* e Rinaldo Pignatari Lagonegro Jr*
Tema recorrente nas colunas de direito criminal, o Pacote Anti-Crime do Ministério da Justiça, encabeçado por Sérgio Moro, tem sido objeto de acalorados debates por juristas de elevado gabarito.
Muito (e bem) se disse sobre as precipitações, incorreções e mesmo sobre o non sense de diversos pontos do pacote, dentre os quais destaco a previsão de escusa absolutória para a hipótese de homicídio praticado no âmbito da violenta emoção, a disseminação da ideia da advocacia como profissão de fomento ao crime pela autorização de gravação de atendimentos perpetrados em parlatório entre ditos profissionais e seus clientes, sem falar no vexame dos holofotes conferidos a organizações criminosas como o PCC e Família do Norte, ao nomeá-las expressamente no projeto de lei ora comentado.
Sem prejuízo dos bons artigos escritos até aqui sobre o tema, pretendemos lançar luz sobre o que não foi dito, o que foi olvidado e que se apresenta como objeto de silêncio, e o silêncio tem som de escândalo.
Este vazio, este vácuo propositivo diz respeito à ausência de qualquer proposta (ainda que sob o cunho de ensaio) voltada à melhoria do tratamento (ou enfrentamento?) do fenômeno da criminalidade culposa.
Esta modalidade delitiva, também conhecida como crime de azar, remete às hipóteses em que um resultado penalmente relevante vem a ocorrer por quebra dos deveres objetivos de cuidado próprios a quem lhe deu causa.
São três as manifestações: imprudência, negligência e imperícia, esta última como uma espécie de culpa acentuada pela expertise esperada do agente culposo.
Pois bem.
Pode soar estranho, mas em tempos em que se propagandeia a corrupção e o tráfico de drogas como os grandes responsáveis pela nossa derrota cotidiana como nação, cresce nos telejornais a grita pelo recrudescimento do tratamento da criminalidade de índole eminentemente culposa, a qual cobra um alto preço em vidas humanas, como as tragédias de Brumadinho e do CT do Clube de Regatas Flamengo, sem esquecer a necessidade de análise de eventual culpa da parte dos responsáveis pela manutenção do helicóptero do jornalista Ricardo Boechat.
Fossem os eventos acima um casuísmo no sentido estrito do termo, fatos isolados e distantes da nossa realidade, cremos que seria absurdo lançá-los na prateleira das chagas sociais para as quais se faz necessário melhor análise. No entanto, parece haver no Brasil um estranho mecanismo de repetição de condutas impróprias, um desamor qualificado a protocolos de ação, tudo a estabelecer uma rotina de acidentes, um determinismo fatal que faz de Brumadinho a continuação de Mariana, do incêndio do Flamengo o retrato do inferno promovido na Boate Kiss, ao passo que a queda do helicóptero de Boechat parece ser o eco da queda de outro helicóptero, que também não possuía autorização para transportar passageiros e que vitimou, dentre outros, uma noiva que se dirigia a seu casamento.
Contrariando as expectativas, não pretendemos advogar aqui pelo endurecimento das penas ou alargamento das hipóteses de autoria, mas apenas promover um alerta para a necessidade de abertura dos debates em âmbito estatal, visando, com isso, uma concentração de esforços na busca de soluções (não necessariamente penais) para que o crime culposo deixe de ser retratado como uma mania (ou paixão) nacional.
Em tempos em que sobra criatividade para inovar na nomeação expressa de organizações criminosas em projeto de lei, não custa pedir soluções criativas para a solução da criminalidade culposa, mormente porque hoje, lamentavelmente, o acaso se apresenta como forte candidato a inimigo público número um.
*Douglas Lima Goulart é advogado criminal e sócio do escritório Lima Goulart & Lagonegro advocacia criminal.
*Rinaldo Pignatari Lagonegro Jr é advogado criminal, sócio do escritório Lima Goulart & Lagonegro advocacia criminal.