A interlocução entre Direito e Literatura ganhou mais um ponto de convergência. Iniciativa do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, via Academia Judicial, promoveu a fala do Professor José Calvo González[1], na sexta-feira, dia 10 de fevereiro de 2017. O Curso de Estudos Avançados de Direito e Literatura foi bastante disputado entre magistrados, servidores, mestrandos, doutorandos, bem assim a comunidade, interessados em saber do poder das metáforas na compreensão do real do Direito. Descortinou-se um universo capaz de fornecer ao juiz e ao operador do direito novos mecanismos de compreensão da realidade jurídica, ampliando os recursos no trato com as demandas que se lhes apresentam, a cada um em seus lugares de atuação, respectivamente.
Daí que tanto o servidor quanto o magistrado podem enriquecer sua atuação a partir da visão que une direito e literatura. Inúmeros reflexos à prestação do serviço público podem ser apontados, a exemplo de maior civilidade, de respeito à condição humana, de uma confrontação da visão de mundo trivial como fatores de maior amplitude de pensamento e sensibilidade, com inúmeras repercussões no âmbito da criatividade na solução de problemas. Quando, porém, conceitos como sensibilidade e intuição são mencionados como consequências de uma formação cultural, não se quer cair no senso comum, a que normalmente se opõe o que se entende por Direito. Claro que, como diz o professor Calvo González[2], o jurista necessariamente haverá de se endurecer, pois suporta os antagonismos próprios do sistema e com eles deverá conviver. Mas a literatura, bem como a arte em geral, pode proporcionar bons locais para que acomodemos as incongruências do direito (e da vida).
Afinal, especialmente na cena do processo penal, essa sensibilidade é essencial àqueles que lidarão em nível tão drástico com os destinos de outros, e reclama permanente atualização. O drama que se estabelece é o das penas não escritas do sistema, mas que acompanham o processo; aquelas pequenas subtrações cotidianas da dignidade de alguém que, de objeto constante de transferências negativas termina nocauteado, incorporando os olhares da sociedade, e perde/desqualifica o senso de eu, a subjetividade. Sem sensibilidade não se empreende sequer o esforço de imaginar que lascas de carne e de alma são arrancadas durante o processo, prisão e pena. O juiz, o servidor, não estiveram nesse lugar, nem se imaginam como tal; trata-se do lugar do outro estigmatizado, até que a fantasia da esfera que habitam[3] (Peter Sloterdijk), rompe-se por influência de um parente, de um amigo, de alguém próximo, cuja história é similiar à daqueles sujeitos cujas vidas e dramas estão (ou não) estampados nos autos. Entretanto, como pressuposto de humanidade, devem se colocar nesse lugar. Do contrário, facilmente recai-se em projeções, confortáveis, verdadeiras válvulas de escape da manutenção de satisfação pulsional. Porquanto esse o outro, o acusado, é o diferente, é aquele que atuou. Muitas vezes pode se dar por ser aquele que se permitiu o “prazer do crime” – prazer a que eu não me dou o Direito. Daí o liame projetivo que pode se instaurar entre acusado e juiz, acusado e vítima, acusado e testemunha – na figura do bode expiatório[4] (René Girard), a que todos impunham as mãos, transferindo-lhe simbolicamente a culpa, e o sacrificavam/baniam.
Eis aí o peso adicional que lhe recai aos ombros. Daí a necessidade de se ter, no mínimo, consciência e abertura mental (e emocional) a esses processos. E isso não é da ordem do abstrato; antes, opera desde descortesia no trato, “pequenos sadismos”, pequenas punições que lhe aumentam a pena real e que não estão previstas, mas são, por assim dizer, invisíveis, ou, quando visíveis, toleradas/incentivadas. Transformamo-nos no censor, no substituto do pai e mãe, que deve punir, além do processo, o acusado. Culminarão, os atos descorteses, até uma postura cognitiva arraigada de presunção de culpa. Inverte-se a lógica: presume-se a culpa, gerando armadilha cognitiva de difícil superação, cujo mecanismo de dissonância cognitiva[5] pode evitar tudo que não se confirme com as crenças imaginariamente pressupostas.
Assim, a palestra abordou o que se pode chamar de uma mentalidade da presunção de inocência, e aqui se defende que a presunção de inocência, apesar de escrita, deve fazer parte do aparato do juiz e do servidor: é, pois, um percurso cognitivo – mapa mental –, com todas as conexões (heurísticas) que caracterizam um comportamento condicionado. Assim, à leitura de palavras como “elemento”, “21h”, “zona de tráfico”, “bucha de cocaína” diversos percursos são acionados, e, normalmente, ali se formou a convicção contra o acusado, ou o “já vi tudo” (dissonância cognitiva). A literatura pode, em muito, contribuir para modificar essas conexões automáticas ao provocar reflexões, de modo que, quando o outro fale, eu possa compreendê-lo como ser humano e não reduzi-lo ao objeto de projeção – ele é o criminoso, eu, o juiz, o servidor, aquele que não erra. Afinal, o outro me é estranho na medida em que com ele não me identifico, nem procuro identificar-me. Assim é que a literatura pode ampliar percursos mentais – pode agregar mais teorias, mais suspeitas, mais perguntas a respeito da realidade –, todas elas nos vão tornando mais passíveis de alteridade. Conforme o professor Calvo afirma em sua palestra, a que se pode nominar de uma mentalidade da presunção de inocência, a operação mental seria da seguinte ordem: – a tese é a da Defesa: é inocente, da qual se deve partir; a hipótese: de que seja culpado. Estabelecer o contrário é presumir a culpa. Portanto, quem faz o controle dessa volátil operação? Daí a necessidade de fundamentação, de explicitação das razões de decidir.
Com efeito, na posição de juiz, ou mesmo, de servidor, relatos e narrativas nos são apresentados, e o pano de fundo são conflitos humanos, cuja linguagem é incapaz, por definição, de dizer o todo. Pode-se ir até um nível último, e dizer que se trata de comunicação frustrada, em vários níveis – cultural, social, familiar, negocial, etc. –, em que expectativas de comportamento, de reconhecimento, foram de insucesso (imaginário ou não). Cada uma das partes terá, portanto, seu ponto de vista a respeito da dissonância nessa relação, utilizando-se, não raro, as ações/atitudes do oponente para confirmar sua certeza lancinante e pressuposta. E isso é comunicado ao Judiciário mediante um relato, normalmente intermediado por um terceiro (Ministério Público e/ou advogado). Esse relato deverá, igualmente, ser instrumentalizado mediante o que a lei processual vigente estipula – isso para dar igualdade no trâmite de todos os reclamos que assomam ao Judiciário –, as regras do jogo são iguais para todos, com variantes, claro, aptas a sempre manter um equilíbrio de tensão (prazos diferenciados, inversão do ônus da prova, etc). A metáfora do jogo processual[6] é viável para ilustrar mais níveis da dinâmica que permeia a interação processual – trata-se de guerra, e processo é guerra, em que o prêmio é a fixação da sua versão, do seu relato, ou daquele que seja, à parte, o mais favorável possível.
Assim, a guerra no palco e segundo as regras do processo se dá pelas armas da palavra e da narração, conforme afirma Cover[7], citado por Calvo na oportunidade – violência pela palavra mediante a destruição brutal, via processo, pelo relato da realidade que se cria, ou seja, dessa interação, o juiz fixará o que ocorreu, como parâmetro possível e consensual como forma de se fixar responsabilidades. Ou: a verdade é inapreensível, já que a prova não prova a realidade como tal. No dizer do professor Calvo González “a prova ensaia razões para considerar algo provado” – e, a verdade é a sombra do verossímil, dado que os fatos estão perdidos, deles não se pode ter testemunho exato, ainda que o tenhamos presenciado, pois sempre o fazemos de um ponto de vista, sob certas condições pessoais e mentais, a partir de um standard probatório. Logo, no processo, o palco do embate é o do discurso, da narração, que é a interação de linguagem e fatos, sob o signo da ficção. Daí os pontos de aproximação entre Direito e Literatura. Os fatos não existem como tais, mas assumirão certas facetas ao serem (re)vestidos pela linguagem, que lhe estabelecerá limites, um local em que pisar – até aqui e ali posso defini-los – mas nunca é preciso, nem corresponde ao “objeto”. A literatura, pois, dá essa roupagem simbólica, oferece uma pretensão de sentido, e aqui se tem uma intersecção possível com a neurociência. Afinal, nosso instrumento, cérebro, memória, faculdades mentais e de raciocínio fazem interposição entre o eu e o fato, o acontecido, o fenômeno, o que, naturalmente, quebrará qualquer pretensão de neutralidade, de objetividade, de verdade ou certeza como o discurso da modernidade propugna. E isso por conta, sempre e também, das naturais incapacidades cognitivas que nos constituem, a todos, em graus variados.
O mito glamoroso que cerca o ato do julgar se esfacela, em cada caco um pedaço da onipotência a que se deve abdicar, e cada um refletindo uma fração de pena que não cominamos, mas que respingam naqueles de carne e osso que se recomendam à prisão: não somos deuses, mas mandamos homens para o inferno. A literatura, portanto, proporciona metáfora à aridez da realidade entendida como a fusão de limites simbólicos de cada um daqueles que intervêm no cenário jurídico e do processo. Renovam-se as possibilidades de metáfora, de sentido, à espera de um herói ou vilão que dê satisfação pulsional por uma boa história.
Notas e Referências:
[1] Consultar: CALVO GONZÁLEZ, José. Direito Curvo. Trad. André Karam Trindade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013; CALVO GONZÁLEZ, José. Occasio iuris. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012; CALVO GONZALEZ, José. El discurso de los hechos. Madrid: Tecnos, 1998.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=6umAZRK4764. Acesso em 11.02.2017
[3] SLOTERDIJK, Peter. Esferas, I: Bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
[4] GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
[5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Dissonância cognitiva no interrogatório malicioso: não era pergunta, era cilada. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/limite-penal-efeito-dissonancia-cognitiva-interrogatorio-malicioso. Acesso em 22.02.2017
[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[7] COVER, Robert M., Violence and the Word (1986). Faculty Scholarship Series. Paper 2708. Disponível em http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/2708. Acesso em 16.02.2017.
*Artigo escrito em conjunto com Fernanda Becker, que é Mestranda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Direito Público (FURB/FFM/AMC/ESMESC). Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Atualmente é analista jurídico do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina.