Protelação Recursal, Insegurança jurídica e Prisão em 2ª instância: do culto ao processo penal como instrumento de incentivo à impunidade e delinquência criminal.
“A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.” (Min Teori Zavascki, Relator Habeas Corpus n. 126292, julgado em 17 fev 2016)
A catedral da Sagrada Família, em Barcelona, na Catalunha, está em construção. Acredite se quiser, encontra-se neste estágio desde 1883, e ainda não foi acabada. As últimas expectativas sinalizam que o templo será finalizado em 2026, mas tal data já foi adiada inúmeras vezes. Este exemplo serve de interessante metáfora a respeito do ordenamento jurídico brasileiro como um todo – e também ao sistema processual penal brasileiro.
Trata-se de sistema baseado em verdadeiro cipoal infindável de recursos, colaborando assim para uma imagem e cultura de impunidade daqueles que cometem crimes, como bem referido pelo atual Ministro da Justiça, Sérgio Moro. Aliás, agora em 2019, o Conselho Nacional de Justiça emitiu interessante estudo sobre a temática, intitulado Justiça Criminal, Impunidade e Prescrição. Observa o estudo, sobre o instituto da prescrição, que “sua utilização desmesurada como estratégia processual, a partir do recurso a medidas protelatórias da persecução penal, é apta a levar à impunidade dos eventuais responsáveis pela prática delitiva, acarretando questionamento social sobre o próprio conceito de justiça”.
Segue o estudo afirmando que o “maior gargalo para a prescrição identificado nesta pesquisa foi a duração dos processos. Apenas a instrução probatória, etapa que é responsável por aproximadamente 70% da duração total de um caso e é a principal responsável pela alta duração típica dos processos, em alguns tribunais a mediana dos processos chegou à 2.000 dias, aproximadamente 5 anos e meio” (p. 173).
Estes dados comprovam que atualmente existe uma afronta a princípios básicos que também regem o a persecução penal, e não apenas a cível, quais sejam, a duração razoável do processo e a celeridade, claro que balanceados e sopesados com devido processo legal e a ampla defesa. Tal ocorre também nos processos de corrupção. Afirma o estudo, por fim, que “a alta duração dos processos de corrupção acontece, ao que parece, independentemente de fatores intrínsecos aos crimes ou aos atores, tais como o crime praticado, o tempo gasto em recursos etc., mas sim ao próprio funcionamento do judiciário com longas filas de trabalho, alto volume de processos, etc.”
O foro privilegiado é citado como elemento colaborador a esta demora para aplicação do jus puniendi estatal. O estudo (teórico e também empírico, ou seja, baseado em coleta de dados) pode ser acessado em https://static.poder360.com.br/…/levantamento-CNJ-justica-p….Conclui o estudo que o problema está no funcionamento do sistema em si: o Poder Judiciário estaria abarrotado de processos, o que prejudicaria sua performance.
A solução parece, então, simples: ou se contrata mais recursos humanos, ou se maximiza a eficiência da prestação jurisdicional, especialmente por meio de ferramentas digitais, ou se faz ambas as coisas. Aliás, soluções digitais já vêm sendo utilizadas e auxiliando nossos dignos servidores públicos em muitas unidades jurisdicionais, sejam as de 1º grau ou no âmbito dos tribunais e demais cortes superiores.
O que não pode continuar a existir é a protelação e alongamento ad eternum das investigações e respectivos processos criminais, o que serve como incentivo ao cometimento do ato delitivo em si. Isto não é novo e já foi abordado ainda na década de 1970 por Gary Becker, no âmbito de seu artigo Crime and Punishment: an economic approach.
Que o desenho institucional legal influencia o comportamento humano (o cálculo delitivo, ou seja, se o criminoso em potencial externará sua cogitation in menti) é uma conclusão intuitiva. Assim, figuras como i) a quantidade e confusão no que se refere ao oferecimento de embargos de declaração, pedidos de reconsideracão e outros meios recursais; ii) a existência de foro privilegiado para grande número de autoridades; iii) discussões constantes sobre temas prementes do sistema processual penal como o momento de início da pena de prisão (execução provisória) colaboram para insegurança jurídica, descrédito das instituções brasileiras e também incentivam prática delituosa.
É em relação a este último tema que gostaria de focar.
O Supremo Tribunal Federal, a quem cabe uniformizar o entendimento sobre a aplicação da Constituição Federal, mais uma vez sinaliza que vai decidir sobre a possibilidade ou não de prisão após o julgamento de segunda instância. Por breve período (2009, em decisão veiculada no bojo do Habeas Corpus HC 84.078) modificou-se o entendimento tradicional, da possibilidade de execução provisória da pena. Aliás, o CPP foi alterado para registrar este entendimento (Art. 283). Em 2016, tal exceção interpretativa se desfez.
No âmbito do Habeas Corpus 126.292 retornou-se ao entendimento outrora vigente. Como afirmado pelo saudoso Ministro Teori Zavascki “O tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal”.
Segue o ministro: “Realmente, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias”.
Os dois casos pendentes de julgamento são os veículados em duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC), 43 e 44de outubro de 2016, e que podem ser julgados a qualquer momento, podendo, mais uma vez, alterar o entendimento tradicional.
Efetuado este pequeno apanhado sobre a tramitação processual e dos pendentes requerimentos efetuados ao STF, não posso negar que fico boquiaberto, espantado e surpreso com discussões a respeito da possibilidade de prisão apenas em sede de 3ª instância. Em que país estamos? De onde vem esta cultura de idolatria do rito e da burocracia, ao invés do resultado concreto de aplicação da pena? Terá sido a herança processualística ibérica, fecunda desde as pioneiras faculdades de direito aqui existentes? Ou seria o amor ao processo pelo processo, fetiche dos processualistas que o cultuam como se fosse um bezerro de ouro, intocável e onisciente?
Os operadores do direito tupiniquims devem perceber que estamos no seculo XXI; vetustas instituições, salamaleques, lentas perorações, a romantização da prática criminal, rediscussões de temas, – inclusive os que versam sobre direitos fundamentais, já não mais florescem. Parece que estamos em 1800, época de François Geny e seu Código Civil, que queria englobar todo o universo dos negócios jurídicos, como se as atividades (incluídas criminosas) não evoluíssem – parece até que o Código penal de 1940 é o state of the art no que se refere à proteção de bens da vida e qualquer flexibilização (dentro das técnicas interpretativas vigentes e permitidas) é pecado mortal.
Apropriar-se de recursos públicos e desviar bilhões parece algo corriqueiro e quase relativizado, utilizar novos meios de prova ou técnicas de incentivo e colaboração para réus como delação premiada é heresia digna daqueles que se submetiam às hordálias, na época da inquisição; parece que estamos na escola de glosadores de Bologna, em que os clássicos textos romanos do codex justinianus eram interpretados à exaustão, mas jamais rechaçados; parece, inclusive, que estamos na Grécia antiga, sociedade milhares de vezes menos complexa que a atual (penso que muitos “hermeneutas” viajam para o a pólis grega diariamente, em busca de seu mundo utópico escrevendo com vocabulário rebuscado e impenetrável, que nem filósofos alemães ousariam interpretar). Onde estão as discussões sobre política criminal, praticidade, eficácia da pena, alocação ótima de incentivos, dentre outras?
Em relação ao art. 5 LVII, alguns (ultra) positivistas inocentes (ou seriam sofistas, para ser educado) usam interpretação ampla (extensiva) para considerar que apenas com o trânsito em julgado de uma ação penal poderia se considerar alguém culpado. Esquecem-se eles que, em interpretação semiótica, “culpado” teria muito mais carga de etiquetamento social do que significar condição sine qua non para o início do cumprimento da pena. Qual seria a mens legis do legislador pátrio?
Ora, no Brasil, para os legisladores, muitas vezes possuidores de uma cultura de confusão entre o público e o privado (a denominada “velha política”), ser preso seria relevate apenas e única e tão somente após ao apelo (e decisão) do Tribunal da Confederação Espacial da Nebulosa de Magalhães (que aliás está for a da Via Láctea). De qualquer forma, sabemos que a tradição do direito continental europeu sempre teve apego maior a lei, aplicando-a a casos concretos, centrando-se mais no estabelecimento de princípios filosóficos de aplicação geral, no cultivo do ritualismo e no sistema jurídico como algo hermético, autocontido e estanque.
Para meu juízo, sob a luz do Estado Democrático de Direito das sociedades civilizadas, a atual discussão nem discussão é. O óbvio ululante, smj, não se torna questão jurídica, e sim tergiversação, arvoramento, procrastinação, ineficiência e incentivo à impunidade, o que, de certa forma, nada mais é do que a manutenção do “mecanismo” e, em grande parte, um retrato da natureza brasileira, em todos os níveis sociais (procrastinar, retardar, tornar as coisas mais “amistosas”, lembrar dos direitos e esquecer deveres, discutir o sexo dos anjos, etc).
Existe ainda muito caminho pela frente para que possamos nos tornar uma nação mais prática, menos baseada em aparências, com respeito às pessoas independentemente de suas origens e com educação voltada à solução de problemas, mais prática que teórica e mais orientada ao empreendedorismo, à administração e ao pensamento racional, econômico-financeiro e baseado em metas.
Quando começaremos esta virada cultural? Parece que já existem alguns sinais, anda que lentos e gradativos. Talvez, e, em um futuro não tão distante, possamos também gradualmente alterar a percepção e respectiva aplicação do direito (sempre respeitando os direitos fundamentais), afinal o ordenamento jurídico é uma das super estruturas que refletem nossa sociedade.
É sempre bom lembrar: as instituições são reflexo da sociedade que as criou, jamais o contrário.
Autor
Vinicius Vizzotto – Advogado Corporativo, Mestre em Direito Internacional Econômico e LLM em Análise Econômica do Direito.