Resumo:
Refletir sobre os múltiplos aspectos da confissão envolve severa atenção aos dispositivos legais e morais que devem estar presentes no requerimento da atenuante da confissão espontânea. E, a partir de caso contemporâneo e através de farto material jurisprudencial destaca-se que na confissão o seu caráter objetivo, bastando a espontaneidade para seu reconhecimento.
Palavras-chave: Confissão. Direito Processual Penal. Meio de Prova. Delação. Confissão espontânea. Atenuante.
A já tão anunciada confissão de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência da República, sobre o caso de joias, doravante defendido pelo criminalista Cezar Bitencourt trouxe novas atribulações. O defensor que é um reconhecido criminalista e respeitado doutrinador de direito penal afirmou que seu cliente irá confessar que recebeu ordens. E, que dentro da ótica da hierarquia cega militar, as ordens foram cumpridas.
Inclusive valendo-se da conta corrente do seu pai, para transferir dinheiro que fora entregue em espécie ao então presidente da república. O impacto bombástico das declarações de Bitencourt já começou verter manobras de recuo.
Apesar de Bitencourt ter negado ter sofrido ameaça, mas afirmou temer pela segurança da família de Mauro Cid por conta de todo contexto. A confissão parece já acenar para uma futura delação premiada apesar de ter ficado em silêncio sobre as joias e a possível falsificação de cartões de vacina, o que resultou em sua prisão em maio do corrente ano.
Bitencourt ainda afirmou que conversará com o Ministro Alexandre de Moraes do STF, no sentido de mitigar a punição ao seu cliente. Cumpre avisar que o Código Penal brasileiro vigente prevê redução da pena quando o crime for cometido por ordem de autoridade superior.
Ressalte-se que há entendimento pacífico mesmo entre os militares que ordem ilegal não deve ser cumprida. Funda-se numa interpretação da legislação penal comum, a qual impõe ao subordinado a responsabilidade pelo crime cometido em obediência à ordem de seu superior hierárquico, quando esta for manifestamente ilegal (art. 22, Código Penal).
Portanto, argumenta-se que o militar deve recusar-se a obedecer a ordem ilegal de seu superior, porque, cumprindo-a, estaria sujeitando-se a responder a processo–crime juntamente com o emissor da ordem, caso tal atendimento resulte em prática de ilícito penal.
Mas, lembremos quem está detido é Mauro Cid e, não, o emissor da ordem. Há não apenas um único ilícito, mas, sim, vários, que vai desde falsificação de cadernetas vacinais, venda de presentes dados ao presidente da República, entre outros, como portar altos valores em moeda estrangeira sem declará-los às autoridades competentes constitui indício de crime contra o sistema financeiro nacional.
O Estatuto dos Militares (Lei Federal nº 6.880, de 09.12.1980), ao cuidar de definir hierarquia, anota, em seu artigo 14, § 1º, que “a hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. […]
O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade”. De igual forma, o mesmo diploma legal, no texto do artigo 14, § 2º, anota que disciplina: “[…] é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo”.
O instituto da obediência hierárquica é tratado, no artigo 22 do Código Penal comum, dentre as normas que cuidam das causas excludentes de culpabilidade.
Com o advento da Lei n. 13.344/2016, a figura da obediência hierárquica, descrita no art. 22 do CP como causa legal de inexigibilidade de conduta diversa, passa a abarcar situações nas quais se identifica (concretamente) a relação de hierarquia, não só na esfera de relações de Direito Público, mas igualmente no âmbito de vínculos empregatícios.
O Exército do Brasil informou que não vai abrir procedimento administrativo para apurar o suposto envolvimento em crimes do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL).
Zafaroni e Pierangeli (2011) ao tratarem dos requisitos para o reconhecimento da obediência hierárquica, apontam que:
“Em princípio, deve tratar-se de uma ordem que emane de um superior hierárquico, isto é, de quem se encontra em condições legais de comunicá-la, e estar num plano superior de relação hierárquica pública, não sendo admissíveis a hierarquia decorrente da relação privada, como a comercial, a trabalhista privada, de ordens religiosas, familiar etc.”.
É lógico que o superior hierárquico deve ser competente para expedir a ordem. O conteúdo dessa ordem deve estar de acordo com a natureza da atividade de que se trate, isto é, que o sujeito deve estar habilitado a cumpri-la. A ordem não deve ser manifestamente ilegal.
Significando que, dentro das atribuições de revisão e das possibilidades de conhecimento do subordinado acerca da sua legalidade (e que, em cada caso, dependerão da natureza da atividade, da função que cumpre o subordinado, de sua preparação técnica e do acesso à informação necessária que a função possibilite), a ordem não lhe pareça ilegal.
Por último, o cumprimento da ordem deve ser “estrito”, no sentido de que o subordinado se limite a cumpri-la, sem exceder, em nada, o seu conteúdo.
Cabe diferenciar as espécies de ordem quanto à sua legalidade e discriminam com precisão os efeitos que a sua obediência acarreta. Anotam os doutrinadores que a ordem do superior pode ser legal ou ilegal.
O cumprimento de ordem legal está, para os doutrinadores dentro da normalidade jurídica, não sendo seu cumprimento reprovável sob qualquer aspecto.
No entanto, no que “concerne à ordem ilegal, é preciso distinguir: (a) ordem manifestamente ilegal e (b) ordem não manifestamente ilegal. Quando manifestamente ilegal a ordem, desde logo fica eliminada qualquer hipótese de absolvição, seja do superior, seja do inferior hierárquico (salvo eventual erro de proibição)”.
A ordem será manifestamente ilegal, nos dizeres de Fragoso (1987): a) quando é dada por autoridade incompetente; b) quando sua execução não se enquadre nas atribuições legais de quem a recebe; c) quando não se reveste de forma legal; d) quando evidentemente constitui crime.
Em complemento, segundo Aníbal Bruno (1967), que “a expressão ordem manifestamente ilegal deve ser entendida segundo as circunstâncias concretas do fato e as condições de inteligência e cultura do subordinado”.
Se o agente supõe ser lícita a ordem (não manifestamente ilegal), há também erro de proibição (erro sobre a ilicitude), que aqui se afirma ser relevante. Todavia, o verdadeiro fundamento da exclusão da culpa nos casos de obediência hierárquica é a inexigibilidade de conduta diversa, e não o erro, pois este pode não existir. A ordem não manifestamente ilegal, portanto, é aquela que, embora ilegal, parece, ao subordinado, revestida de legalidade.
Relevante destacar que a possibilidade de o inferior hierárquico avaliar a ordem do superior não é uma regra, mesmo no campo do direito penal comum.
A ordem ilegal apresenta vício em qualquer um de seus elementos (competência, finalidade, forma, motivo, objeto), ao passo que na ordem manifestamente ilegal o vício é patente, visível, facilmente detectável por qualquer pessoa.
Na ordem manifestamente criminosa, por sua vez, o vício concentra-se unicamente no seu objeto, que é a prática de um ilícito penal.
Importante também é diferenciar confissão de delação. Pois, na confissão há um prêmio que seria a mitigação de pena, embora o Código Penal Brasileiro não tenha critério fixo. Em torno de um sexto da pena.
A confissão é o resultado de um ato pelo qual a parte assume como verdadeiro um fato relevante e controvertido que fora alegado pelo adversário e que lhe é prejudicial.
A confissão poderá ser judicial ou extrajudicial. A primeira é feita, naturalmente, em juízo, ao passo que a segundo é realizada fora do processo, porém, com o fito de registrar a veracidade de um fato e, posteriormente, ser usada em um determinado processo.
A confissão judicial poderá ainda ser espontânea ou provocada quando de comparecimento da parte, que teve como consequência a confissão, deu-se ou por pedido da parte adversária (depoimento pessoal) ou por determinação judicial.
Positivou o artigo 200 do Código Processual Penal brasileiro que: “A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto”. A confissão é divisível porque o juiz considerá-la apenas parcialmente, não no seu todo. É corolário lógico do princípio do livre convencimento do juiz (artigo 157).
De acordo com a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal brasileiro (Item VII) desmente-se que a confissão seja a “rainha das provas” (regina probatorum), assim não existe hierarquia, possuindo junto as demais espécies de provas o mesmo valor probante.
Questiona-se: na sentença, a confissão retratada pode ser utilizada pelo magistrado como a atenuante de que trata o art. 65, III, d do CP?
A Súmula 545 do STJ pacifica a questão, no sentido de admitir a possibilidade, desde que o magistrado tenha usado a confissão, mesmo que retratada, como elemento de convencimento.
Já a delação implica também em confissão, mas além de confessar há a entrega da participação de outras pessoas além de provas, e, portanto, o prêmio é sobejamente maior.
Curiosamente, a defesa de Mauro Cid após o depoimento do hacker Walter Delgatti Netto à CPI dos atos golpistas de 8 de janeiro, resolveu seguir essa linha defensiva de confissão sobre a venda da joia. Mauro Cid é alvo de oito investigações por parte do Poder Judiciário, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Jurisprudencialmente, há os seguintes entendimentos a respeito da confissão:
STF
“A confissão espontânea, ainda que parcial, é circunstância que sempre atenua a pena, ex vi do artigo 65, III, d, do Código Penal, o qual não faz qualquer ressalva no tocante à maneira como o agente a pronunciou. Nesta parte, merece reforma a decisão condenatória.”
“A atenuante genérica prevista pelo artigo 65, III, d, do Código Penal refere-se tão-somente à confissão espontânea manifestada perante a autoridade, seja policial ou judiciária.
STJ
“A confissão espontânea configura-se tão-somente pelo reconhecimento do acusado em juízo da autoria do delito, pouco importando se o conjunto probatório é suficiente para demonstrá-la ou que o réu tenha se arrependido da infração que praticou. Precedentes dessa Corte Superior.”
“A confissão espontânea, perante a autoridade, da autoria do crime, é circunstância que atenua a pena, nos termos do art. 65, inciso I, alínea “d”, do CP. Writ concedido.”
“Não se exige que a autoria do crime seja desconhecida, nem que o réu demonstre arrependimento pelo cometimento do delito, para a incidência da atenuante da confissão espontânea.”
“Caracterizada a confissão espontânea, a incidência da atenuante de que cuida o artigo 65, inciso III, alínea “d”, do Código Penal é de imposição, em razão do seu caráter objetivo.”
Depois da publicação da possível confissão na Revista Veja, o atual advogado de Mauro Cid indica recuo e afirma que a confissão não irá tratar de joias. Portanto, em menos de um dia, depois de todas as notícias veiculadas na imprensa, o indiciado que iria apontar o ex-Presidente da República tido como mandante de esquema que desviou presentes milionários recebidos pela Presidência da República, o advogado e doutrinador Cezar Bitencourt recuou e afirmou não ter cogitado sobre transações envolvendo joias. Mas apenas de um relógio que é uma joia. Apontou que foi erro da Veja.
Infelizmente, estariam envolvidos no desvio de joias o pai do indiciado, o segundo tenente Osmar Crivelatti e o advogado Frederick Wassef. Estima-se que o referido esquema teria angariado cerca de um milhão de reais.
Após todas essas revelações, a pedido da Polícia Federal, o Ministro Alexandre de Moraes do STF autorizou a quebra de sigilo bancário e fiscal do ex-presidente da República e da ex-primeira dama. A investigação também já fez buscas contra aliados de primeira hora do ex-presidente como o general Mauro César Lourena Cid, o criminalista Frederick Wassef, advogado do ex-presidente e o tenente Osmar Crivelatti.
De qualquer forma, com ou sem confissão a situação do indiciado é bastante complicada e, com provas já recolhidas pela Polícia Federal, a tendência é sua situação agravar.
Referências
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