Abuso do direito de uso da imagem de pessoa pública

Data:

O Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, no tocante às pessoas públicas, apesar de o grau de resguardo e de tutela da imagem não ter a mesma extensão daquela conferida aos particulares, já que comprometidos com a publicidade, restará configurado o abuso do direito de uso da imagem quando se constatar a vulneração da intimidade ou da vida privada. Jurisprudência em Teses – Edição nº 137

Esse entendimento se demonstra no seguinte julgado:

RESPONSABILIDADE CIVIL. PUBLICAÇÃO DE IMAGEM DE ATRIZ FAMOSA EM REVISTA E SÍTIO ELETRÔNICO DE GRANDE CIRCULAÇÃO. FOTOGRAFIA NA QUAL OS SEIOS, INVOLUNTARIAMENTE, FICARAM À MOSTRA, QUANDO DA GRAVAÇÃO DE CENA RETRATADA EM LOCAL PÚBLICO. ABUSO DO DIREITO. USO INDEVIDO DE IMAGEM. DANOS MATERIAIS E MORAIS CONFIGURADOS. 1. A imagem é forma de exteriorização da personalidade inserida na cláusula geral de tutela da pessoa humana (art. 1°, III, da CF e En. 274 das Jornadas de Direito Civil), com raiz na Constituição Federal e em diversos outros normativos federais, sendo intransmissível e irrenunciável (CC, art. 11), não podendo sofrer limitação voluntária, permitindo-se a disponibilidade relativa (limitada), desde que não seja de forma geral nem permanente (En. 4 das Jornadas de Direito Civil). 2. Em relação especificamente à imagem, há situações em que realmente se verifica alguma forma de mitigação da tutela desse direito. Em princípio, tem-se como presumido o consentimento das publicações voltadas ao interesse geral (fins didáticos, científicos, desportivos) que retratem pessoas famosas ou que exerçam alguma atividade pública; ou, ainda, retiradas em local público. 3. Mesmo nas situações em que há alguma forma de mitigação, não é tolerável o abuso, estando a liberdade de expressar-se, exprimir-se, enfim, de comunicar-se, limitada à condicionante ética do respeito ao próximo e aos direitos da personalidade. 4. No tocante às pessoas notórias, apesar de o grau de resguardo e de tutela da imagem não ter a mesma extensão daquela conferida aos particulares, já que comprometidos com a publicidade, restará configurado o abuso do direito de uso da imagem quando se constatar a vulneração da intimidade, da vida privada ou de qualquer contexto minimamente tolerável. 5. Na hipótese, apesar de se tratar de pessoa famosa e de a fotografia ter sido retirada em local público, verifica-se que a forma em que a atriz foi retratada, tendo-se em conta o veículo de publicação, o contexto utilizado na matéria e o viés econômico, demonstra o abuso do direito da demandada, pois excedido manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (CC, art. 187). 6. A conduta da ré não observou, assim, os deveres assentados, para a atividade de imprensa, pela jurisprudência do STJ, para fins de afastar a ofensa à honra: dever geral de cuidado, dever de pertinência e dever de veracidade (REsp 1.382.680/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 22/11/2013). 7. No presente caso, chegar à conclusão diversa do acórdão recorrido, no tocante à existência de danos materiais e para fins de inadmissão da denunciação da lide, demandaria o revolvimento fático-probatório dos autos e a interpretação de cláusulas contratuais, o que encontra óbice nas súmulas 5 e 7 do STJ. 8. Recurso especial não provido. (REsp 1594865/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20/06/2017, DJe 18/08/2017)

Tradicionalmente a personalidade jurídica é considerada uma aptidão genérica para ser titular de direitos e contrair obrigações na ordem jurídica. Em outros termos, a personalidade seria a qualidade para ser sujeito de direito.

Num primeiro sentido, de acordo com teoria clássica, a personalidade se aproxima da capacidade de direito, correspondente a um atributo jurídico que decorre da condição de ser pessoa.

Noutro sentido, a personalidade assume a condição de valor ético, originado do princípio da dignidade da pessoa humana.

No campo jurídico, aliás, a dignidade da pessoa humana aproxima-se dos direitos individuais, referentes à vida, liberdade, igualdade, segurança, propriedade e privacidade – os direitos fundamentais representam o gênero do qual decorrem os direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade, e direitos políticos.[1]

São destinatários dos direitos e garantias fundamentais todas as pessoas humanas que estiverem no território nacional, inclusive os estrangeiros.

Repare que o artigo 5º, da CF, prevê que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.[2]

Concordamos com Kildare Gonçalves Carvalho quando ressalta que “a dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o sistema dos Direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base nesta é que aqueles devem ser interpretados[3].

No mesmo sentido, reconhecemos que Ingo Wolfgang Sarlet tem razão ao acrescentar que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental, atrai o conteúdo de todos os Direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e a proteção dos Direitos fundamentais de todas as dimensões, vale dizer, sem que se reconheçam à pessoa humana os Direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.

Nesse ponto, também são relevantes as advertências de Sidney Guerra[4] ao mencionar que os Direitos Humanos vivem uma situação contraditória nesta fase de pós-modernidade.

Para Pontes de Miranda os principais direitos da personalidade são os seguintes: i) direito à vida; ii) direito à integridade física; iii) direito à integridade psíquica; iv) direito à liberdade; v) direito à verdade; vi) direito à igualdade formal, ou isonomia; vii) direito à igualdade material, prevista na Constituição; viii) direito de ter nome (inato) e direito ao nome (nato); ix) direito à honra; x) direito autoral de personalidade.[5]

Em todo o caso, Pontes de Miranda ensina que o direito só existe para servir ao homem, como um elemento estabilizador da economia e da política. Nesse sentido é que tem uma função de assegurar permanências. O direito protege sempre o interesse dos homens e de outros entes despersonificados. Não há proteção de poder nem de vontade. Isso porque mesmo aqueles que não tem mais vontades tem interesses protegidos pelo direito. Com relação ao nascituro, Pontes de Miranda esclarece que no suporte fático da regra jurídica Nasciturus pro iam nato habetur, inexiste inversão de elementos pois a eficácia é que se antecipa, vale dizer, antes do suporte fático da pessoa se completar se atribuem efeitos ao que é suporte fático no momento, incompleto para a eficácia da personalização.[6]

Com relação à tutela dos direitos da personalidade na legislação infraconstitucional, convém realçar o disposto no art. 20 do Código Civil.

De acordo com esse dispositivo, salvo se houver autorização, necessidade da administração da justiça ou da manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a requerimento do interessado. Isso sem prejuízo da eventual indenização, caso atinjam a honra, a boa fama, a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.

Nesta perspectiva, Dotti ressaltou que “(…) a evolução dos mecanismos técnicos que tornaram possível o aproveitamento da informática criou no homem uma necessidade de reação contra algo de extraordinário que há bem pouco tempo não passaria de ficção, mas que hoje ameaça gravemente o desenvolvimento natural da personalidade. Não se trata apenas da existência de meios capazes de levar à destruição material da humanidade, mas também, e fundamentalmente, da colocação à disponibilidade de certos órgãos, instrumentos tecnológicos aptos, por si sós, a reduzir o homem à qualidade de simples peça de uma máquina de produção burocrática.”[7]

O art. 21 do Código Civil também indica que a vida privada da pessoa natural é inviolável. Nesse caso, sempre que necessário, o interessado poderá requerer ao Poder Judiciário a adoção de providências para impedir ou fazer cessar violações a esse preceito.

Seguindo essas diretrizes, o enunciado número 279 das Jornadas de Direito Civil do CJF prevê que: “A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”.

Os mencionados artigos 20 e 21 do Código Civil foram objetos da Adin 4815. O Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido da Adin para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, e “em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de  pensamento  e  de  sua expressão, de criação artística, produção  científica,  declarar  inexigível  o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou  de  seus  familiares,  em  caso  de  pessoas  falecidas).

Além disso, é oportuno reafirmar que direito à privacidade, intimamente relacionado à dignidade da pessoa humana, diz respeito à vida particular das pessoas naturais.

O direito à intimidade, decorrente do direito à privacidade, se refere ao direito de estar só, de não ser violado no seu recesso privado. O direito à intimidade é, portanto,  mais restrito e profundo que o direito à privacidade.[8]

A propósito, o enunciado número 405 das Jornadas de Direito Civil do CJF indica que: “As informações genéticas são parte da vida privada e não podem ser utilizadas para fins diversos daqueles que motivaram seu armazenamento, registro ou uso, salvo com autorização do titular”.

Ainda, a despeito da proximidade dos termos, é necessário destacar que imagem retrato e imagem atributo são conceitos distintos.

A imagem retrato corresponde à reprodução dos traços característicos, da forma plástica de uma determinada pessoa, como numa fotografia.

Já a imagem atributo, equivalente à honra objetiva, corresponde à impressão que as demais pessoas da sociedade têm de uma pessoa determinada.

Referências

CARRAZZA, Roque Antonio. Princípio republicano. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. RT, São Paulo, 1980.

GUERRA, Sidney et al. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Mínimo Existencial. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 9 – Dezembro de 2006.

CARVALHO, Kildare Gonçalves Carvalho. Direito Constitucional. 13ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

HIRATA, Alessandro. Direito à privacidade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

LAFER, Celso. Ensaios Sobre a Liberdade. São Paulo: Perspectiva, 1980.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo VII: Direito de personalidade. Direito de família: direito matrimonial (existência e validade do casamento). São Paulo: RT, 2012.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Tomo I: Introdução. Pessoas Físicas e Jurídicas. São Paulo: RT, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

[1] CARRAZA lembra que “[…] numa República todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de condições sociais e pessoais. ” CARRAZZA, Roque Antonio. Princípio republicano. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/93/edicao-1/principio-republicano

[2] Há, contudo, exceções expressamente previstas na própria CF, por exemplo, no caso da ação popular, que só pode ser proposta por cidadão.

[3] CARVALHO, Kildare Gonçalves Carvalho. Direito Constitucional. 13ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 549.

[4] O Autor faz referência às formulações garantisticas e prestacionais do mínimo existencial.  Segundo ele, apesar de se apresentar como uma vertente garantística e prestacional, a proposta de estabelecer um rol de Direitos que comporia o mínimo vital tem por objetivo evitar a total ineficácia jurídica de vários dispositivos sobre Direitos sociais. Contudo, Guerra adverte que a materialidade do princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser confundida com o mínimo existencial, nem reduzida ao Direito de subsistir. Apesar das dificuldades, não se justificaria partir para versões minimalistas abandonando de vez uma visão mais global. Tampouco seria correto definir quais seriam os limites internos de cada Direito social, selecionado como inerente ao mínimo vital sugerido, visto que igualmente as graduações cairiam no mesmo problema da subjetividade de quem as estipulam. GUERRA, Sidney et al. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Mínimo Existencial. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, n. 9, 2006, dez. p. 394-395.

[5] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo VII: Direito de personalidade. Direito de família: direito matrimonial (existência e validade do casamento). São Paulo: RT, 2012, p. 62.

[6] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Tomo I: Introdução. Pessoas Físicas e Jurídicas. São Paulo: RT, 2012, p. 266/267.

[7] DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. RT, São Paulo, 1980, p. 251.

[8] Segundo HIRATA “[…] a intimidade poderia ser considerada no âmbito do exclusivo, referente ao que alguém reserva para si, sem qualquer tipo de repercussão social, nem sequer ao alcance de sua vida privada. Já a vida privada, por mais isolada que possa ser, sempre se caracteriza pelo viver entre outros (por exemplo, em família, no trabalho, no lazer em comum). ” HIRATA, Alessandro. Direito à privacidade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/71/edicao-1/direito-a-privacidade

 

Antonio Evangelista de Souza Netto
Antonio Evangelista de Souza Netto
Juiz de Direito Titular de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP.

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