Adoção de procedimentos prévios de constatação nos processos de recuperação empresarial: Recomendação CNJ nº 57/2019

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Por meio da Recomendação nº 57 de 22/10/2019 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a orientar a adoção de procedimentos prévios no âmbito dos processos de recuperação empresarial.[1]

As diretrizes contidas na Recomendação se assentam no fato de que é preciso aprimorar a eficiência dos procedimentos de recuperação empresarial, notadamente por reconhecer a sua importância para a preservação da atividade empresarial e para o cumprimento da função socioeconômica da empresa.

Nesse sentido, o art. 47 da Lei de Recuperação Empresarial e Falência estipula que:

“A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.” 

A recuperação judicial, portanto, só deve ser empregada se puder, em tese, servir ao alcance dos propósitos assinalados acima.

Em outros termos, a recuperação judicial não pode ser admitida quando houver constatação de que a medida não é o instrumento mais adequado para promover a superação da crise da empresa inviável.

A propósito, o Conselho Nacional de Justiça ressaltou que: “A aplicação ineficaz das ferramentas legais do sistema de insolvência empresarial gera prejuízos sociais gravíssimos, seja pelo encerramento de atividades viáveis, com a perda dos potenciais empregos, tributos e riquezas que poderiam ser gerados, seja pela manutenção artificial do funcionamento de empresas inviáveis e que não produzem benefícios econômicos e sociais, em prejuízo do interesse da sociedade e do adequado funcionamento da economia. ” Além disso, ponderou que “processamento da recuperação empresarial gera consequências extremamente graves, tendo em vista que é a partir de tal decisão que entrará em vigor a proteção do stay period, com impacto relevante no funcionamento da economia, em âmbito geral, e na esfera jurídica dos credores, na medida em que não poderão exercer livremente os seus direitos creditórios contra a devedora. ”

Logo, é preciso que o empresário em situação de crise econômico-financeira insuperável seja, ao menos temporariamente, retirado do mercado e submetido às contingências legais da falência.

A nova redação do art. 75 da Lei de Recuperação Empresarial e Falência demonstra de forma clara os objetivos da falência:

“Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a: I – preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa; II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica[2]“.

“§1º O processo de falência atenderá aos princípios da celeridade e da economia processual, sem prejuízo do contraditório, da ampla defesa e dos demais princípios previstos no CPC.”[3]

“§2º A falência é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia. ” [4]

Levadas em conta essas premissas e tendo em vista a importância do emprego adequado dos instrumentos processuais destinados à superação das crises empresariais, não há duvidas sobre a necessidade de aprimoramento dos critérios de identificação das condições socioeconômicas do empresário que pretende a recuperação judicial, avaliando, entre outros fatores, as dimensões concretas da crise, a viabilidade da obtenção do reequilíbrio econômico-financeiro e as vantagens socioeconômicas decorrentes da preservação da atividade empresarial correspondente.[5]

A avaliação desses fatores, antes do deferimento da recuperação judicial, já vinha sendo realizada por alguns magistrados com pela realização da “perícia prévia”, procedimento cujo objetivo seria a constatação das condições reais do empresário requerente, antes do deferimento do processamento da recuperação judicial.

Considerando que a utilização da constatação prévia (ou perícia prévia) demonstrou-se positiva em diversos casos concretos, o Conselho Nacional de Justiça reconheceu tratar-se de uma boa prática cuja adoção deveria ser recomendada para todos os juízes que atuassem em unidades judiciárias com competência na área da recuperação empresarial.

Nesse sentido, nos termos do art. 1º da Recomendação CNJ nº 57/2020, orientou-se que os magistrados determinassem a constatação das reais condições de funcionamento da sociedade empresária (ou do empresário) requerente, bem como da regularidade da documentação apresentada pela devedora/requerente, antes de se manifestar sobre o deferimento do processamento da recuperação empresarial.

No que se refere a legislação em vigor à época da edição da Recomendação, valem ser destacados os seguintes dispositivos.

Primeiramente, o art. 156 do Código de Processo Civil já previa que o magistrado poderia ser assistido por perito quando a prova do fato dependesse de conhecimento técnico ou científico.

O art. 481, do Código de Processo Civil, por outro lado, também já autorizava que o magistrado, de ofício, em qualquer fase do processo, inspecionasse pessoas ou coisas para esclarecer fato que interessasse à decisão da causa, admitindo-se a assistência por perito.

Na mesma linha, o art. 370 do Código de Processo Civil dispunha que o juiz poderia, mesmo de ofício, determinar as provas necessárias ao julgamento do feito.

Além disso, segundo o art. 330, inciso III, do Código de Processo Civil, deve o juiz indeferir a petição inicial quando constatada a ausência das condições da ação, inclusive a falta de interesse processual, na espécie adequação.

A aplicação desses dispositivos do Código de Processo Civil aos processos de recuperação judicial seria plenamente possível pela disciplina subsidiária indicada no art. 189 da Lei nº 11.101/2005.[6]

Com a recente reforma da Lei de Recuperação Empresarial e Falência, a disciplina da constatação prévia passou a ser feita pelo art. 51-A da Lei nº 11.101/2005.

De todo modo, vejamos as disposições da recomendação, com indicação do teor das novas disposições legais em nota de rodapé.

A propósito do perito colaborador do juízo, conforme previsto na Recomendação, logo após a distribuição do pedido de recuperação empresarial, a elaboração de parecer (laudo de constatação) para subsidiar a apreciação do requerimento pode delegada a pessoa confiança do juízo, nomeada entre os profissionais com capacidade técnica e idoneidade para constatar as reais condições de funcionamento da requerente, avaliar sua regularidade e analisar a  completude da documentação apresentada juntamente com a petição inicial.[7]

Nos termos da Recomendação a constatação a prévia consistirá na apreciação objetiva da capacidade da devedora de gerar os benefícios mencionados no art. 47, além da verificação da presença e regularidade dos requisitos e documentos previstos nos artigos 48 e 51 da Lei nº 11.101/2005.

As novas disposições da Lei nº 11.101/2005 trazem previsões semelhantes.

O Art. 51-A, §5º, da Lei nº 11.101/2005 prevê que:

“A constatação prévia consistirá, objetivamente, na verificação das reais condições de funcionamento da empresa e da regularidade documental, vedado o indeferimento do processamento da recuperação judicial baseado na análise de viabilidade econômica do devedor. ”

Salvo se houver justificativa relevante para prazo maior, nos termos da Recomendação, o laudo de constatação deverá ser apresentado em até cinco dias, contados da nomeação do perito colaborador.

O Art. 51-A, §2º, da Lei nº 11.101/2005 assinala que:

“O juiz deverá conceder o prazo máximo de 5 (cinco) dias para que o profissional nomeado apresente laudo de constatação das reais condições de funcionamento do devedor e da regularidade documental. ”

No que diz respeito à comunicação dos interessados, os novos §§3º e 4º do Art. 51-A, da Lei nº 11.101/2005 preconizam o seguinte:

“§3º A constatação prévia será determinada sem que seja ouvida a outra parte e sem apresentação de quesitos por qualquer das partes, com a possibilidade de o juiz determinar a realização da diligência sem a prévia ciência do devedor, quando entender que ela poderá frustrar os seus objetivos[8].

“§4º O devedor será intimado do resultado da constatação prévia concomitantemente à sua intimação da decisão que deferir ou indeferir o processamento da recuperação judicial, ou que determinar a emenda da petição inicial, e poderá impugná-la mediante interposição do recurso cabível.[9]

Preenchidos os requisitos legais, segundo a Recomendação, não havendo constatação de irregularidades, o pedido poderá ser deferido, independentemente de oitiva das partes.

De outro lado, também nos termos da Recomendação, constatadas eventuais irregularidades, ausência de requisitos legais ou inviabilidade manifesta da recuperação, o juiz poderá indeferir a petição inicial, sem convolação em falência.

Nesse ponto, o a Art. 51-A, §6º, da Lei nº 11.101/2005 ainda estabelece o seguinte:

“Caso a constatação prévia detecte indícios contundentes de utilização fraudulenta da ação de recuperação judicial, o juiz poderá indeferir a petição inicial, sem prejuízo de oficiar ao Ministério Público para tomada das providências criminais eventualmente cabíveis. ”

A Recomendação estipula que se na constatação prévia houver indicação de que o principal estabelecimento da devedora não está situado na área de competência do juízo, o magistrado deve determinar a remessa dos autos, com urgência, ao juízo competente.

O novo Art. 51-A, §7º, da Lei nº 11.101/2005 tem o mesmo teor:

“Caso a constatação prévia demonstre que o principal estabelecimento do devedor não se situa na área de competência do juízo, o juiz deverá determinar a remessa dos autos, com urgência, ao juízo competente. ”

Com relação à remuneração do perito, de acordo com a Recomendação, o juiz só poderia arbitra-la após a apresentação do laudo, considerando, principalmente, a complexidade do trabalho desenvolvido.

O teor do novo Art. 51-A, §1º, da Lei nº 11.101/2005 estabelece regra semelhante:

“A remuneração do profissional de que trata o caput deste artigo deverá ser arbitrada posteriormente à apresentação do laudo e deverá considerar a complexidade do trabalho desenvolvido. ”

Pelo que se viu, a edição da Recomendação CNJ nº 57/2019 aponta a grandeza do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no cenário republicano, ressalta seu protagonismo democrático e demonstra a relevância das providências que assume para garantir a concretização dos direitos, a efetividade do processo e o cumprimento dos princípios correlatos.

[1] Este é o décimo de uma série de outros textos que tratam das orientações normativas do Conselho Nacional de Justiça.

[2] Art. 75, caput. A redação anterior era a seguinte: Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa. Parágrafo único. O processo de falência atenderá aos princípios da celeridade e da economia processual.

[3] Art. 75, §1º.

[4] Art. 75, §2º.

[5] O Conselho Nacional de Justiça realçou que a constatação prévia deve ser aplicada tendo em vista que “a identificação da real condição da empresa em crise é essencial para a correta aplicação do remédio legal e que não se deve aplicar recuperação empresarial para empresas absolutamente inviáveis, cujas atividades não merecem ser preservadas em função da ausência de geração de benefícios em favor do interesse público e social. ”

[6] Com a reforma recente a nova redação do dispositivo passou a ser a seguinte:  Art. 189. Aplica-se, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei, o disposto no Código de Processo Civil, desde que não seja incompatível com os princípios desta Lei. § 1º Para os fins do disposto nesta Lei: I – todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos; e II – as decisões proferidas nos processos a que se refere esta Lei serão passíveis de agravo de instrumento, exceto nas hipóteses em que esta Lei previr de forma diversa. § 2º Para os fins do disposto no art. 190 do Código de Processo Civil, a manifestação de vontade do devedor será expressa e a dos credores será obtida por maioria, na forma prevista no art. 42 desta Lei. Também houve inclusão do novo artigo 189-A, cujo teor é o seguinte: Art. 189-A. Os processos disciplinados nesta Lei e os respectivos recursos, bem como os processos, os procedimentos e a execução dos atos e das diligências judiciais em que figure como parte empresário individual ou sociedade empresária em regime de recuperação judicial ou extrajudicial ou de falência terão prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo o habeas corpus e as prioridades estabelecidas em leis especiais.

[7] O Art. 51-A Lei nº 11.101/2005 tem previsão no mesmo sentido: Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, poderá o juiz, quando reputar necessário, nomear profissional de sua confiança, com capacidade técnica e idoneidade, para promover a constatação exclusivamente das reais condições de funcionamento da requerente e da regularidade e da completude da documentação apresentada com a petição inicial.

[8] Art. 51-A, §3º.

[9] Art. 51-A, §4º.

Antonio Evangelista de Souza Netto
Antonio Evangelista de Souza Netto
Juiz de Direito Titular de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP.

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