Competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento de crimes relativos ao desvio de verbas públicas repassadas pela União aos municípios

Data:

Coautor: Jeffrey Chiquini. Advogado criminalista. Especialista em direito penal e processual penal. Professor de processo penal da Escola da Magistratura Federal do Paraná.

O Superior Tribunal de Justiça definiu que compete à Justiça Federal processar e julgar crimes relativos ao desvio de verbas públicas repassadas pela União aos municípios e sujeitas à prestação de contas perante órgão federal. – Jurisprudência em teses edição nº 72

Esse entendimento consta do seguinte julgado:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PECULATO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. ALEGADA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. DESVIO DE VERBAS REPASSADAS PELA UNIÃO AO ESTADO DE SÃO PAULO. VALORES NÃO INCORPORADOS. PRESTAÇÃO DE CONTAS PERANTE O ÓRGÃO FEDERAL (TCU). INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 208/STJ. INTERESSE DO ENTE FEDERAL. CONEXÃO FÁTICA. SÚMULA N. 122/STJ. RECURSO IMPROVIDO.

  1. Esta Corte Superior tem entendimento pacífico no sentido de que, havendo indícios de desvio de verbas públicas, sujeitas a controle de órgão federal, a competência para julgamento é da Justiça Federal. 2. O ingresso das verbas em conta bancária do ente federativo não desnatura tal fiscalização e, por conseguinte, não afasta o interesse na União no feito. Nestes termos, a Súmula n. 208 do STJ: “Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba pública sujeita a prestação de contas perante órgão federal”.
  2. Havendo o desvio de recursos públicos repassados pela União e que não foram incorporados ao cofre do Estado de São Paulo, por meio de convênio firmado entre o Ministério dos Transportes (por intermédio do DNIT) e o Estado de São Paulo (por intermédio da Secretaria de logística e Transportes, DERSA e DER), faz transparecer o interesse da União no feito, nos termos do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal de 1988.
  3. “Está configurada a conexão probatória ou instrumental (art. 76, III, do Código de Processo Penal – CPP) entre os crimes imputados ao recorrente, haja vista que se inserem no mesmo contexto fático, estando as provas dos delitos interligadas, a atrair a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 76, III, do CPP” (CC 156.215/RS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Terceira Seção, julgado em 10/10/2018, DJe de 22/10/2018).
  4. Na hipótese, aplica-se o Enunciado n. 122 da Súmula desta Corte Superior de Justiça, in verbis: “compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, “a”, do Código de Processo Penal”.
  5. Recurso ordinário em habeas corpus improvido.

(RHC 111.515/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 30/08/2019)

Embora a jurisdição[1] seja una e indivisível, para que possa ser exercida de modo eficiente por todos os integrantes do Poder Judiciário é preciso que seja organizada de maneira racional, conforme os critérios e parâmetros constitucionais. Essa organização racional se concretiza através das normas que definem as competências jurisdicionais.[2]

Em termos gerais, a competência é a medida e o limite da jurisdição[3] exercida por um órgão do Poder Judiciário, é o limite dentro do qual a autoridade judiciária exercerá suas funções.[4]

A competência está intimamente relacionada ao princípio do juiz natural, correspondente à garantia de se conhecer previamente a autoridade responsável pelo julgamento de condutas específicas, de acordo com parâmetros legais objetivos.[5]

O princípio do juiz natural consagra o direito de ser processado e julgado por juízo competente previamente estabelecido pela legislação vigente, nos moldes do art. 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, além da proibição da criação de juízos ou tribunais de exceção, conforme previsto no art. 5º, inc. XXXVII, da Constituição Federal.

Critérios para fixação da competência.

A competência pode ser definida de acordo com diversos critérios, como o local da consumação do delito, a natureza da infração, a função exercida pelo autor do crime etc.

Em algumas hipóteses os critérios do lugar da infração serão afastados para que a competência seja determinada conforme a natureza do delito[6].

A competência em razão da matéria (competência absoluta) é fixada de acordo com a natureza da infração penal. São os casos, por exemplo, de competência da Justiça Eleitoral, do Júri ou da Justiça Militar[7].

Para esses fins, os órgãos serão de jurisdição especial (Justiça Militar, Justiça Eleitoral e Justiça do Trabalho) e de jurisdição comum (Justiça Federal e Justiça Estadual).

Essas competências podem ser definidas na própria Constituição ou nas leis de organização judiciária. Nesse caso, as leis de organização judiciária poderão determinar previamente algumas competências de juízos especializados para o julgamento de delitos de determinadas naturezas.  Apenas os crimes com competência privativa do Tribunal do Júri não poderão sofrer alterações pelas regras de organização judiciária.

A competência da Justiça Federal[8] está definida nos artigos 108 e 109 da Constituição Federal.

Com relação à matéria criminal, a competência dos juízos federais está especificada nos incisos IV e XI do art. 109 da Constituição Federal.

De maneira geral, a competência criminal da Justiça Federal abrange o julgamento de crimes contra bens, serviços ou interesses da União e suas autarquias e empresas públicas.[9]

É relevante destacar que a Justiça Federal não tem competência para o julgamento de crimes praticados em desfavor de Sociedades de Economia Mista.

Por fim, é relevante destacar que, segundo o Superior Tribunal de Justiça, é competência da Justiça Federal o processo e julgamento de crimes praticados com desvio de verbas públicas, sujeitas a controle de órgão federal.

 

 

[1] “Jurisdição é o poder atribuído, constitucionalmente, ao Estado para aplicar a lei ao caso concreto, compondo litígios e resolvendo conflitos.” NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 168.

[2] “Regras da competência: considerando que a jurisdição no processo penal tem uma função diferente daquela realizada no processo civil, o direito fundamental ao juiz natural, com uma competência previamente estabelecida por lei, adquire uma relevância muito maior. Ainda que a competência seja vista como limite ao poder, é também uma garantia fundamental que não pode ser manipulada. No processo penal, podemos seguir trabalhando com a competência em razão da matéria, pessoa e lugar, desde que não se importe inadequadamente a ideia de que a competência em razão do lugar é relativa. Isso é um civilismo inadequado. O CPP nunca disse – e nem poderia, à luz da Constituição – que a competência em razão do lugar era relativa e que somente poderia ser arguida pela parte interessada (passiva) no primeiro momento que falasse no processo sob pena de preclusão. Isso não está recepcionado pelo processo penal e constitui mais um erro de não perceber a dimensão da jurisdição no processo penal.” LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 149.

[3] Conceito de competência: trata-se da delimitação da jurisdição, ou seja, o espaço dentro do qual pode determinada autoridade judiciária aplicar o direito aos litígios que lhe forem apresentados, compondo-os. O Supremo Tribunal Federal tem competência para exercer sua jurisdição em todo o Brasil, embora, quanto à matéria, termine circunscrito a determinados assuntos. Não pode, pois, o Ministro do Pretório Excelso homologar uma separação consensual de casal proveniente de qualquer parte do País, embora possa apreciar um habeas corpus de pessoa presa em qualquer ponto do território brasileiro. O juiz de uma pequena cidade pode tanto homologar a separação consensual de um casal residente no mesmo local, quanto analisar uma prisão ilegal realizada por autoridade policial da sua Comarca. Não pode, no entanto, julgar casos pertinentes à Comarca vizinha. Enfim, jurisdição todo magistrado possui, embora a competência, devidamente fixada em normas constitucionais e através de leis, seja diferenciada.” NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 171.

[4] “Apesar de a jurisdição ser una e indivisível, é humanamente impossível que um só juiz decida todos os litígios ocorridos. Num universo de magistrados, a competência é conceituada como a medida ou delimitação da jurisdição, ou nas palavras de Tourinho Filho, é “o âmbito, legislativamente delimitado, dentro do qual o órgão exerce o seu Poder Jurisdicional”. A competência passa a ser um critério legal de administração eficiente da atividade dos órgãos jurisdicionais, definindo previamente a margem de atuação de cada um, isto é, externando os limites de poder. As bases da competência criminal estão na Constituição Federal. As leis de processo penal complementam a Constituição, concretizando seus comandos e estabelecendo critérios para interpretar o texto bruto do ordenamento jurídico. O conjunto de normas de competência constitui a divisão de tarefas que possibilita conferir funcionalidade à jurisdição. A jurisdição é una, é conceito fundante do sistema. A competência penal é a delimitação da jurisdição, consistindo nos contornos segundo critérios logicamente concatenados, seja de especialidade da Justiça, seja de distribuição territorial, seja mesmo de solução de ausência de critérios prévios.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 387.

“A justiça comum estadual “é a justiça residual por excelência, sendo competente para apreciar, por exclusão, todas as infrações que não sejam da alçada da justiça especializada ou da Justiça comum Federal. Embora se diga que a competência é residual, fato é que a Justiça Estadual processa e julga a maioria dos crimes. Para que haja deslocamento de competência para a Justiça Federal e para Justiça especializada (eleitoral e militar), é preciso que exista elemento de atração que determine a modificação.”  TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 389.

[5] “O princípio do juiz natural deve ser compreendido como o direito que cada cidadão tem de saber, previamente, a autoridade que irá processar e julgá-lo caso venha a praticar uma conduta definida como infração penal pelo ordenamento jurídico. Juiz natural, ou juiz legal, dentre outras denominações, é aquele constituído antes do fato delituoso a ser julgado, mediante regras taxativas de competência estabelecidas pela lei.” LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 330.

[6] “Competência em razão da matéria: por vezes, a lei deixa de considerar principal o critério do lugar da infração ou do domicílio do réu para eleger princípio diverso, que é o da natureza da infração penal. É a competência em razão da matéria (ratione materiae). Vários juízes de um local poderiam ser competentes, mas deixa de haver coincidência quando um deles desponta como apto a cuidar do processo em razão da natureza da infração. Exemplo disso é a existência da Justiça Militar. Quando um crime militar ocorre, segue diretamente o processo para essa Vara, nem havendo necessidade de se fazer outras verificações. Se, porventura, houver mais de uma Vara competente na Comarca ou Região, utiliza-se, então, o critério geral, que é o do lugar da infração ou do domicílio do réu.” NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 185.

[7] “Da leitura do art. 124 da Constituição Federal depreende-se que a competência da Justiça Militar da União está circunscrita ao processo e julgamento dos crimes militares. Competência idêntica possuía a Justiça Militar Estadual, porém circunscrita aos militares dos Estados, tal qual dispunha o art. 125, § 4°, da CF, em sua redação original: “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”. Ocorre que, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/04, a Justiça Militar Estadual teve sua competência ampliada, passando a julgar, além dos crimes militares cometidos pelos militares dos Estados, ações judiciais contra atos disciplinares militares (CF, art. 125, § 4). ”LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 352.

[8] “A Justiça comum federal tem sua competência expressamente contemplada na Constituição Federal, sendo que o art. 108, da Carta Magna, trata da competência dos Tribunais Regionais Federais, e o art. 109 elenca a competência dos juízes federais. Trataremos neste tópico da competência da justiça federal de primeiro grau, reservando· nos a tratar dos aspectos mais relevantes da competência dos TRFs dentro do tema competência ratione personae.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 391.

[9] “A fim de que seja fixada a competência da Justiça Federal, é indispensável que, da conduta delituosa, resulte prejuízo direto a bens, serviços ou interesse de autarquia federal. Não por outro motivo, de acordo com o entendimento pretoriano, compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, quando não ocorrente lesão à autarquia federal (súmula nº 107 do STJ). Logo, ausente lesão a bens, serviços ou interesses de autarquia federal, não há falar em crime da competência da Justiça Federa. Por isso, compete à Justiça Estadual o processo e julgamento de crime de estelionato cometido mediante a contratação fraudulenta de empréstimo consignado em folha de pagamento de proventos do INSS. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 416.

Antonio Evangelista de Souza Netto
Antonio Evangelista de Souza Netto
Juiz de Direito Titular de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP.

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