“Esse porão, escudado, encorajado e promovido por faces e trejeitos postiços, caçoa da legislação que protege a liberdade de pensamento, expressão e manifestação, ao ferir à faca e escopeta o Artigo 5 da Constituição Federal e o Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
— Eugênio Trivinho
I DEFESA DA DEMOCRACIA
A tarefa de defesa de uma democracia concreta envolve acolhimento progressivo e sistemático de direitos humanos como hábitos cotidianos, no que tange o princípio fundamental do direito a se ter direitos (para evocar Hannah Arendt). Nesse horizonte, é dever da ciência enquanto patrimônio do saber coletivo demonstrar a ameaça que o submundo da cultura digital representa para a democracia, resguardando-a desses agressores — diretos e indiretos, evidentes e ocultos.
Na circunferência deste artigo, o oligopólio cibercultural do submundo configura-se pelo regime de comunhão de três indústrias distintas, abandonadas pelo sistema judiciário global, cada qual com sua lógica própria de funcionamento mercantil em sites de (i) pornografia digital, (ii) webcamming e (iii) venda de conteúdo erótico (packs).
Tratam-se de grandes estruturas de poder, regidas por proprietários ocultos, que operam cuidadosamente em regime de comunhão entre si em prol da organização, da produção e da circulação de performances eróticas hiper-reais, majoritariamente do gênero feminino, produzidas com direções mercadológicas bem delineadas.
Desse modo, a violência implacável contra a mulher (física, simbólica e invisível) é apresentada como mercadoria precificável na rede (em tempo real ou não) para consumo do homem heterossexual.
Entre inúmeros descalabros contra os direitos humanos, o submundo apropria-se dos significantes mais nobres da subjetividade humana para confundir todo o tecido social. Assim, o convite dos sites eróticos para homens e mulheres se dá por meio de desvios semânticos nada inocentes que propositalmente confundem: “interação com o outro” com controle do outro; “empoderamento feminino” com objetificação e desumanização feminina; e “empreendedorismo” com sobrevivência financeira.
Não bastasse, o submundo forjou a sua própria educação, com “coachs“, “mentoras”, e demais personagens em busca de “alunas”. O objetivo é recrutar novas vítimas e condicioná-las a assinatura do único modelo de contrato trabalhista no qual é exigida a renúncia vitalícia dos direitos de imagem da mulher para o proprietário oculto do site adulto.
Tendo em vista que o submundo apresenta um diagrama de ameaça pública contra o Estado de Direito, a presente argumentação objetiva descortinar as principais fake news irradiadas pelos sites adultos, com destaque para a violência contra a mulher.
II REGRESSÃO HISTÓRICA DO CONTRATO TRABALHISTA
De acordo com o contrato trabalhista universal do submundo, a vítima é condicionada à “a autorização, de forma gratuita e sem qualquer ônus, em caráter total, definitivo, irrevogável e irretratável da sua imagem e do seu apelido em websites que contém conteúdo sexual, incluindo conteúdo que a contratante possa considerar obsceno, ofensivo ou de outro modo censurável“. Ainda assim, a vítima, “autoriza de forma expressa o uso da sua imagem e do seu apelido eximindo a empresa, o proprietário e todos os associados não informados no contrato de qualquer responsabilidade sobre qualquer dano moral e patrimonial“.
Em outras palavras, a mulher é condicionada a aceitar violência psíquica, sexual, moral e patrimonial para trabalhar. A violência é inaceitável por ser ilegal, visto que a Lei 13.772/2018 e a Lei Maria da Penha 11.340/2006 referem-se especificamente à garantia dos direitos das mulheres no que tange a proteção contra a violência psicológica, sexual, patrimonial e moral.
O paradoxo desse cenário envolve, necessariamente, o questionamento sobre como é possível que um retrocesso histórico deste porte esteja em vigência no Brasil, tendo em vista que os direitos e garantias fundamentais do indivíduo estão assegurados pela Constituição Federal Brasileira de 1988.
Com base nesses dados, é possível interpretar o contrato trabalhista como uma armadilha muito bem elaborada de aprisionamento das mulheres, visto que não há qualquer possibilidade de alteração e questionamento. Inclusive, é mencionado no contrato que a vítima está de acordo com a autonomia da empresa em alterar o contrato unilateralmente sem aviso prévio e que a assinatura da vítima é vitalícia.
Fora isso, o contrato trabalhista também condiciona as mulheres a não causarem danos diretos e/ou indiretos ao proprietário oculto e aos seus associados independentemente dos danos morais e patrimoniais que elas sofram durante o exercício da atividade profissional na plataforma.
Essa cláusula contratual retroage diretamente no recurso metodológico utilizado para elaboração das pesquisas sobre a temática, pois a tentativa de aplicação de questionário às produtoras de conteúdo adulto para apreensão de dados estatísticos poderia colocá-las em riscos — jurídicos e existenciais — caso as respostas não fossem favoráveis às empresas.
III CAPATAZES EVIDENTES E PROPRIETÁRIOS OCULTOS
Os proprietários das empresas calculam cada passo da perversão do seu modelo de negócios cuidadosamente. Não à toa, eles próprios são invisíveis. Por isso, as empresas procuram por mulheres que aceitem trocar o pensamento crítico por visibilidade mediática em redes (interativas, mistas ou de massa) e remunerá-las financeiramente para “vestir a camisa das empresas” do submundo (literalmente).
O objetivo é conduzir o submundo adulto à superfície da cultura digital. Para tanto, é preciso irradiar confusões no imaginário social, de modo que as manobras perversas do setor passem desapercebidas. Assim, essas mulheres são contratadas para afirmar — na primeira pessoa do singular — que se sentem “empoderadas” ao entregar o direito vitalício das suas imagens aos proprietários invisíveis dos sites adultos, bem como para postar “selfies” com camisetas que tenham o logo do site adulto.
Nesses casos, quanto maior for o vício em “engajamento”, seguidores” e “curtidas” da influenciadora digital, maiores são as chances dessas mulheres nunca se darem conta da manipulação a qual estão sendo submetidas: no caso, de representarem a necrose da sexualidade e do afeto que o submundo causa em todo tecido social em escala planetária.
No rastro deste delírio, o submundo também fabrica “coachs”, isto é, utiliza-se de outros indivíduos do gênero feminino sem qualquer formação acadêmica, que se auto intitulam “mentoras”, “terapeutas recreativas” ou até mesmo “professoras” — em casos ainda mais cínicos — em busca de “alunas”. O objetivo dessa “atividade profissional” consiste em recrutar novas vítimas para os sites adultos. Assim, as vítimas internas aprendem como devem dialogar com os homens, tirar fotos, posar para a câmera e assim por diante, com a finalidade de domesticar o desejo masculino para simulacros eróticos, reprogramando o imaginário masculino.
Aqui, cabe um alerta para a comunidade científica: na era dos dados, perfis nas redes sociais com muitos seguidores são comumente utilizados como referência de métrica para corpus em pesquisas. Todavia, no caso do submundo, esses perfis são patrocinados pelas empresas para reproduzirem a ideologia do proprietário oculto. Tratam-se das capatazes em evidência.
Não há dúvidas de que o submundo desafia a ciência no seu manuseio, pois nem sempre a metodologia tradicional de estudo de caso científico é adequada quando se trata de objetos invisíveis da cibercultura. Sendo assim, as teorias críticas são essenciais para o seu manuseio, de modo que o pesquisador esteja sempre atento aos contrassensos entre o discurso publicitário e o contrato trabalhista, entre capatazes evidentes e proprietários ocultos, entre o que é dito e o que é feito, entre o que é fabricado para ser visto e o que é ocultado do escrutínio público, e assim por diante.
Fora isso, também é fundamental considerar que não há legislação para o submundo. Portanto, todos os crimes cometidos pelos proprietários dos sites adultos e por capatazes são atualmente julgados pelas leis clássicas do Direito. Isto significa que esses indivíduos estão muito à vontade em seu “faroeste digital”, isto é, uma terra-sem-lei, chafurdada pelo cinismo empresarial, imersa no sombrio da alma.
IV CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme demonstrado, a produção, a circulação e a oferta das performances eróticas na rede não se trata de um trabalho mentecapto. Tudo isso perfaz uma mentalidade. Como mentalidade, atua de forma estratégica.
Nessa configuração, proprietários ocultos contratam capatazes em evidência do gênero feminino para propagar a desinformação em meios de comunicação híbridos e interativos e, assim, fabricar uma sexualidade flagelada e domesticável, composta por indivíduos tóxicos e flácidos.
Trata-se, portanto, de uma urgência desvelar a mais implacável de todas as violências do submundo: a necrose da sexualidade por meio da domesticação do imaginário cujo controle está nas mãos deste oligopólio cibercultural desregulamentado do sistema judiciário planetário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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