Priscila Magossi
A essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos.
— Hannah Arendt
A tarefa de defesa de uma democracia concreta envolve acolhimento progressivo e sistemático de direitos humanos como hábitos cotidianos, no que tange o princípio fundamental do direito a se ter direitos (para evocar Hannah Arendt). Nesse horizonte, é dever da ciência enquanto patrimônio do saber coletivo demonstrar a ameaça que o submundo da cultura digital representa para a democracia, resguardando-a desses agressores — diretos e indiretos, evidentes e ocultos. Na circunferência desta argumentação, o submundo é compreendido pelo oligopólio cibercultural de sites de pornografia, webcamming e vendas de “packs” eróticos. Trata-se de uma configuração exploradora e patriarcal da sexualidade na direção da mercadoria, que viola os direitos fundamentais das mulheres, garantidos pela Constituição de 1988, em seu único modelo de contrato trabalhista.
Entre inúmeros descalabros contra os direitos humanos, o submundo apropria-se dos significantes mais nobres da subjetividade humana para confundir todo o tecido social. Assim, o convite dos sites eróticos para homens e mulheres se dá por meio de desvios semânticos nada inocentes que propositalmente confundem “interação com o outro” com controle do outro, bem como confundem “liberdade” e “empoderamento feminino” com sobrevivência financeira. O curto-circuito provocado pelo submundo é bem estruturado a ponto de até mesmo mentalidades de esquerda, que defendem os direitos humanos, e lutam contra a dissuasão neofascista e a necropolítica, acabarem, muitas vezes, caindo na armadilha nefasta das fake news do submundo.
O presente artigo foi elaborado a partir da investigação in loco sobre o submundo da cultura digital associada à reflexão crítica das obras do Prof. Dr. Eugênio Trivinho sobre a defesa da democracia, dissuasão neofascista e necropolítica. Objetiva-se descortinar o retrocesso histórico do submundo da cultura digital contra os direitos humanos, com destaque para a violência contra a mulher. Assim, a proposta da argumentação é desvelar:
Tendo em vista que a democracia está visivelmente desidratada pelo submundo da cultura digital, o Estado Democrático de Direito precisa ser fortalecido e a democracia defendida como valor universal. Mais explicitamente hoje do que nunca.
O submundo – esta categoria aparentemente genérica – é mais que uma metáfora. No imaginário cultural e medieval de Dante, o extenso latíbulo sinistro, referido a palavra diversa – inferno –, tinha camadas concêntricas relativamente definidas. (....)
(...) Por incrível que pareça e guardadas as idiossincrasias de plano, esse “pântano” se metamorfoseia e se totaliza em e como estruturas psicoemocionais subjacentes à personalidade, ao caráter e ao comportamento individuais (e, por tais atalhos, ao perfil de grupos, coletivos e redes) – todos vinculados ao sub-humano: da mera vilania (já amplamente constrangedora) ao assassinato. A mentira, a bazófia e o desprezo representam muito pouco nesse perímetro.
—Eugênio Trivinho
O oligopólio cibercultural do submundo configura-se pelo regime de comunhão de três indústrias distintas, cada qual com sua lógica própria de funcionamento mercantil. As operações mercadológicas diferenciam-se por meio do seguinte mapeamento estrutural em sites de (i) pornografia digital, (ii) webcamming e (iii) venda de conteúdo erótico (packs):
Conforme exposto, as diferenças estruturais entre as três indústrias que compõem o submundo adulto são notáveis. As empresas e os seus respectivos tomadores de decisão possuem diferentes recursos à sua disposição, têm objetivos particulares e seguem estratégias peculiares para atingi-los. Entretanto, o submundo se configura como um oligopólio cibercultural. Por isso, as estratégias gerais dos três mercados são decididas em regime de colaboração por meio de seminários, feiras e conferências, premiações, e revistas compartilhadas. Nesses encontros — restritos e sigilosos — são traçados os rumos da necrose da sexualidade de todo tecido social. Para eficácia do curto-circuito do simbólico em escala planetária, é indispensável que as vítimas trabalhem mediante assinatura de um único modelo de contrato trabalhista, disponível em todos os sites adultos, de toda parte do mundo. Neste mosaico perverso, o contrato trabalhista exige a cessão do uso ilimitado e irrevogável de todo conteúdo produzido pelas vítimas internas, inclusive em suas sessões privadas, para os proprietários ocultos das empresas e para os seus associados invisíveis.
Esse porão, escudado, encorajado e promovido por faces e trejeitos postiços, caçoa da legislação que protege a liberdade de pensamento, expressão e manifestação, ao ferir à faca e escopeta o Artigo 5 da Constituição Federal e o Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A rude galhofa dessa escumalha política e obscura joga no aterro sanitário nortes civilizatórios de República, especialmente o respeito à diferença.
— Eugênio Trivinho
De acordo com o contrato trabalhista universal do submundo, a vítima é condicionada à a autorização, de forma gratuita e sem qualquer ônus, em caráter total, definitivo, irrevogável e irretratável da sua imagem e do seu apelido em websites que contém conteúdo sexual, incluindo conteúdo que a contratante possa considerar obsceno, ofensivo ou de outro modo censurável. Ainda assim, a vítima, autoriza de forma expressa o uso da sua imagem e do seu apelido eximindo a empresa, o proprietário e todos os associados não informados no contrato de qualquer responsabilidade sobre qualquer dano moral e patrimonial.
Em outras palavras, a mulher é condicionada a aceitar violência psíquica, sexual, moral e patrimonial para trabalhar. A violência é inaceitável por ser ilegal, visto que a Lei 13.772/2018 e a Lei Maria da Penha 11.340/2006 referem-se especificamente à garantia dos direitos das mulheres no que tange a proteção contra a violência psicológica, sexual, patrimonial e moral. O paradoxo desse cenário envolve, necessariamente, o questionamento sobre como é possível que um retrocesso histórico deste porte esteja em vigência no Brasil, tendo em vista que os direitos e garantias fundamentais do indivíduo estão assegurados pela Constituição Federal Brasileira de 1988.
Com base nesses dados, é possível interpretar o contrato trabalhista como uma armadilha muito bem elaborada de aprisionamento das mulheres, visto que não há qualquer possibilidade de alteração e questionamento. Inclusive, é mencionado no contrato que a vítima está de acordo com a autonomia da empresa em alterar o contrato unilateralmente sem aviso prévio e que a assinatura da vítima é vitalícia.
Não é de se surpreender que há sites adultos que comercializam as performances eróticas das mulheres na rede por meio da semântica “Prisoners Of Cams” (Prisioneiras da Câmera) e “Girls degraded by Choice” (Garotas degradadas por escolha própria). Elas, efetivamente, são prisioneiras dos sites e estão sendo degradadas — mas não necessariamente por escolha própria, pois não há, de fato, consciência sobre o processo envolvido na reprogramação do imaginário da vítima. Trata-se, portanto, de uma urgência descortinar a mais implacável de todas as violências do submundo: a dominação do imaginário das próprias vítimas para que compreendam o fundo de poço no qual foram arremessadas do qual não há retorno.
Fora isso, o contrato trabalhista também condiciona as mulheres a não causarem danos diretos e/ou indiretos ao proprietário oculto e aos seus associados independentemente dos danos morais e patrimoniais que elas sofram durante o exercício da atividade profissional na plataforma. Essa cláusula contratual retroage diretamente no recurso metodológico utilizado para elaboração das pesquisas sobre a temática, pois a tentativa de aplicação de questionário às produtoras de conteúdo adulto para apreensão de dados estatísticos poderia colocá-las em riscos — jurídicos e existenciais — caso as respostas não fossem favoráveis às empresas. Aqui, cabe um alerta para a comunidade científica: na era dos dados, perfis nas redes sociais com muitos seguidores são comumente utilizados como referência de métrica para corpus em pesquisas. Todavia, no caso do submundo, esses perfis são patrocinados pelas empresas para reproduzirem a ideologia do proprietário oculto. Tratam-se, assim, das capatazes em evidência (tema do próximo tópico deste documento de pesquisa).
Neste cenário soturno, os recursos financeiros majoritários estão ocultados em paraísos fiscais, notadamente em Belize (bancos) e Cyprus, Tel Aviv e Luxemburgo (sede das grandes estruturas operacionais). No que tange a delimitação do público (as vítimas externas), os consumidores são do gênero masculino, heterossexual e estão espalhados por toda parte do globo. A mão-de-obra deste mercado (as vítimas internas), por sua vez, é composto por as profissionais do gênero feminino em situação de hipervulnerabilidade financeira, localizadas em países periféricos do capitalismo, notadamente no Leste Europeu (com destaque para Romênia, Rússia, Ucrânia e República Tcheca) e na América Latina (com destaque para Brasil e Colômbia). Por esta razão, o mercado heterossexual é o único analisado nesta pesquisa.
III CAPATAZES EVIDENTES E PROPRIETÁRIOS OCULTOS
É fundamental saber, no mínimo, onde jogam e qual o lugar de fala (explícito e implícito) dos inimigos (evidentes e ocultos) dos princípios republicano-democráticos e do conjunto de reconhecimentos jurídicos correspondentes, na forma de direitos humanos, civis, políticos, sociais, trabalhistas e previdenciários.Há detalhes banais do vivido que, muitas vezes, emparelham com a cognição mais sofisticada. Os equívocos da ingenuidade, quando despojados continuamente de sua potência educativa e transformadora, competem, em resultado, com a estultícia soberba e perseverante em matéria de sobrevivência: ambos – ingenuidade e estultícia – não acometem somente o presente; entregam o futuro imediato aos deleites de uma corrosão irreversível.
— Eugênio Trivinho
Os proprietários das empresas calculam cada passo da perversão do seu modelo de negócios cuidadosamente. Não à toa, eles próprios são invisíveis. Por isso, as empresas procuram por mulheres que aceitem trocar o pensamento crítico por visibilidade mediática em redes (interativas, mistas ou de massa) e remunerá-las financeiramente para “vestir a camisa das empresas” do submundo (literalmente). O objetivo é conduzir o submundo adulto à superfície da cultura digital. Para tanto, é preciso irradiar confusões no imaginário social, de modo que as manobras perversas do setor passem desapercebidas. Assim, essas mulheres são contratadas para afirmar — na primeira pessoa do singular — que se sentem “empoderadas” ao entregar o direito vitalício das suas imagens aos proprietários invisíveis dos sites adultos, bem como para postar “selfies” com camisetas que tenham o logo do site adulto. Nesses casos, quanto maior for o vício em “engajamento”, seguidores” e “curtidas” da influenciadora digital, maiores são as chances dessas mulheres nunca se darem conta da manipulação a qual estão sendo submetidas: no caso, de representarem a necrose da sexualidade e do afeto que o submundo causa em todo tecido social em escala planetária.
No rastro deste delírio, o submundo também fabrica “coachs”, isto é, utiliza-se de outros indivíduos do gênero feminino sem qualquer formação acadêmica, que se auto intitulam “mentoras”, “terapeutas recreativas” ou até mesmo “professoras” — em casos ainda mais cínicos — em busca de “alunas”. O objetivo dessa “atividade profissional” consiste em recrutar novas vítimas para os sites adultos. Em Budapeste (Hungria), inclusive, há uma “universidade”, fundada por um site adulto, cujo objetivo é ensinar as vítimas internas sobre como efetuar a reprogramação sobre as vítimas externas. Isto é, os “mentores” são financeiramente remunerados pelos sites para ensinarem as produtoras de conteúdo adulto o modo pelo qual devem dialogar com os homens, tirar fotos, posar para a câmera e assim por diante, com a finalidade de domesticar o desejo masculino para simulacros eróticos. Nota-se que o submundo "forjou sua própria ‘educação’ a céu aberto, blindada na cultura de ruas toscas e bastidores iníquos" cuja "regra, sua axiologia (se dela se trata) inclui até zombaria da instituição escolar e do estudo: ‘não têm utilidade’” (TRIVINHO, 2021).
Neste momento, é imprescindível fazer um alerta para a toda a comunidade científica, pois na era dos dados os perfis com muitos seguidores são constantemente utilizados como referências para pesquisas acadêmicas. Todavia, no caso do submundo da cultura digital, todos esses perfis são patrocinados pelo cartel. Essas mulheres não são as verdadeiras vítimas do setor, mas sim, as capatazes. Isto é, indivíduos do gênero feminino financeiramente remuneradas para reproduzir o discurso de uma empresa adulta cujo proprietário é oculto. As vítimas, de fato, estão proibidas, por contrato, de se pronunciarem. Ou seja, caso o cientista caísse no equívoco de considerar o que algum capataz diz em rede social, estaria, na verdade, reproduzindo o discurso do submundo.
Não há dúvidas de que o submundo desafia a ciência no seu manuseio, pois nem sempre a metodologia tradicional de estudo de caso científico é adequada quando se trata de objetos invisíveis da cibercultura. Sendo assim, as teorias críticas são essenciais para o seu manuseio, de modo que o pesquisador esteja sempre atento aos contrassensos entre o discurso publicitário e o contrato trabalhista, entre capatazes evidentes e proprietários ocultos, entre o que é dito e o que é feito, entre o que é fabricado para ser visto e o que é ocultado do escrutínio público, e assim por diante.
Fora isso, também é fundamental considerar que não há legislação para o submundo. Portanto, todos os crimes cometidos pelos proprietários dos sites adultos e por capatazes são atualmente julgados pelas leis clássicas do Direito. Isto significa que esses indivíduos estão muito à vontade em seu “faroeste digital”, isto é, uma terra-sem-lei, chafurdada pelo cinismo empresarial, imersa no sombrio da alma.
O submundo apresenta um diagrama de ameaça pública muito bem delineado. O problema se coloca no âmbito macrohistórico da cultura, pois o oligopólio cibercultural tem expandido os seus tentáculos para a superfície do ciberespaço (Youtube, Podcasts, Instagram, Twitter, TikTok, etc), ameaçando diretamente as bases democráticas. Sendo assim, é crucial desvelar o processo que movimenta as fake news do submundo adulto. Isto é, faz-se necessário identificar qual ideologia recorta o todo, quem as propaga, com qual finalidade circulam, e assim por diante.
A questão assenta importante chave de leitura, tanto para esclarecimento de fatos quanto para cobertura histórica. Há duas décadas, desde o surgimento dos primeiros sites adultos em 1998, um oligopólio cibercultural tem manipulado o imaginário psicoafetivo e sexual da sociedade tecnológica avançada, catalogando as performances eróticas e, assim, direcionando o desejo e o afeto do processo civilizatório de acordo com métricas comerciais.
Ressalta-se que a produção, a circulação e a oferta das performances eróticas na rede não se trata de um trabalho mentecapto. Tudo isso perfaz uma mentalidade. Como mentalidade, atua de forma estratégica. Nessa configuração, proprietários ocultos contratam capatazes em evidência do gênero feminino para propagar a desinformação em meios de comunicação híbridos e interativos e, assim, fabricar uma sexualidade flagelada e domesticável, composta por indivíduos tóxicos e flácidos. Trata-se, portanto, de uma urgência descortinar a mais implacável de todas as violências do submundo: a necrose da sexualidade em escala planetária por meio da domesticação do imaginário social.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
______. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
______. Lei nº. 13.772/2018, 19 de dezembro de 2018 (Registro não autorizado da intimidade sexual).
MAGOSSI, P. G. Reprogramação no ciberespaço: um estudo sobre a gradativa reprogramação psicoafetiva e sexual da civilização tecnológica atual e seus efeitos sociais. In: II Encontro Virtual da ABCiber: Novos Letramentos, apropriação das tecnologias e o ciberespaço como construção coletiva, 2021. Disponível em: https://abciber.org.br/simposios/index.php/virtualabciber/virtual2021/paper/viewFile/1581/757
______. Investigação de campo sobre o submundo da cultura digital (2015-2021): denúncia da violência simbólica e invisível dos sites adultos contra as suas vítimas internas e externas. Registro no C.D.T (1.823) em 04.nov.2021. Disponível em: https://newcammingperspective.com/.
TRIVINHO, E. A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização mediática avançada. São Paulo: Paulus, 2007.
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