Uma análise jurídica sobre o tema da Repercussão Geral do STF nº 671

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Uma análise jurídica sobre o tema da Repercussão Geral do STF nº 671 | Juristas
Eduardo Tesserolli
Advogado e Assessor Jurídico da Administração Superior da DPE/PR

Imagine a seguinte situação: servidores públicos que não foram nomeados em concurso público, mesmo aprovados, por inércia da administração pública, decidem pedir indenização por danos materiais, compatível com os efeitos patrimoniais decorrentes de ato omissivo ilegal.

Antes de ajuizar o pedido indenizatório, é importante que se saiba, esses servidores públicos receberam tutela jurisdicional favorável ao seu direito à nomeação e foram empossados definitivamente em seus cargos respectivos.

Por isso, entendem que a referida arbitrariedade originou o direito de (i) receberem indenização, para reparação de danos materiais, em montante equivalente às diferenças remuneratórias não pagas, por causa do ato arbitrário praticado, referente ao período entre a data que deveriam ter sido investidos oficiosamente e a data atual; e (ii) de movimentação nas respectivas carreiras – progressão e promoção – desde a data que deveriam ter sido legalmente investidos.

Ajuizado os pedidos judiciais, ocorre julgamento definitivo.

O Poder Judiciário concluiu que se aplica a tese firmada em repercussão geral, Tema 671: “Na hipótese de posse em cargo público determinada por decisão judicial, o servidor não faz jus a indenização, sob fundamento de que deveria ter sido investido em momento anterior, salvo situação de arbitrariedade flagrante”. Esses servidores públicos não receberam indenização.

Agora, a pergunta que surge é a seguinte: qual é definição jurídica para arbitrariedade flagrante? Como crítica, tenta-se responder que não pode ser a mesma firmada na tese do Tema 671 do STF.

Percebe-se que o acórdão que originou o julgamento do leading case, Recurso Extraordinário 724347, descreveu algumas situações fáticas que podem ser reputadas arbitrariedades flagrantes: descumprimento de decisões judiciais, litigância procrastinatória, má-fé, que significam atividades em desprezo ou malbaratamento das instituições.

Defende-se que não há sentido jurídico em qualificar a arbitrariedade, como definido no Tema 671, porque se criou um momento de subjetividade antes inexistente na apreciação da responsabilidade civil do Estado, determinada no §6º do art. 37 da CRFB/88. Se a função administrativa está atrelada à realização de uma finalidade legal, como ensina Rui Cirne Lima: “À relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente, chama-se relação de administração”, essa relação, pode-se depreender que o comportamento que implique em “falta de conformidade com a lei em sentido material” será classificado como “ilegalidade do acto administrativo”.

O exercício da função administrativa não é tão simples quanto apenas cumprir a lei, como se estivesse a ler um “manual de instruções”, e a qualidade da competência administrativa nos demonstra isso. Historicamente, o poder (dever, segundo leitura contemporânea) discricionário era intangível e o administrador público agia com liberdade para atender à finalidade que preferisse, fosse ela pública ou particular; o arbítrio era insindicável. A mudança dos tempos e as revoluções fizeram surgir o Estado de Direito, o qual exige subsunção do Estado à lei, e o arbítrio passou a ser reprovado pelo direito. Assim, ou o agir administrativo está pré-determinado pela lei, como no caso das licenças para construir – denotando-se a vinculação da competência administrativa – ou está previsto em lei com atribuição de “uma certa margem de liberdade reconhecida ao administrador no seu cumprimento”.

Conhecer a qualidade da competência administrativa – se vinculada ou discricionária – é útil ao caso, pois auxilia a identificação da arbitrariedade apontada pelo Supremo Tribunal Federal. Resta verificar se esta ilegalidade se trata de arbitrariedade.

Juan Carlos Cassagne define arbitrariedade como “o ato contrário à razão, produto da mera vontade ou capricho do agente público, que é o sentido mais comum no mundo jurídico. O conceito de ‘arbitrariedade’ (tal como define o

Diccionario de la Real Academia) corresponde ao de ‘ato ou proceder contrário à justiça, à razão ou às leis, ditado só pela vontade ou capricho’. Em tal sentido, resulta evidente que a discricionariedade não pode se confundir com a arbitrariedade, antigamente conhecida na Espanha como ‘ley del encaje’, cuja tradução figura em antigos dicionários franceses como ‘a resolução que o juiz toma pelo que o convenceu por ser o mais bem ajustado'”.

Cassagne analisa a arbitrariedade e a diferencia da discricionariedade a partir do significado da palavra em seu idioma. Então, para ele, o significado jurídico coincide com o atribuído pela convenção da língua, inscrita num conceito linguístico dicionarizado. O mesmo ocorre no direito brasileiro. Veja-se o conceito de De Plácido E Silva, no seu monumental Vocabulário Jurídico: “Assim se diz do ato ou procedimento caprichoso, que se executa ou se formula, contrariamente ao que está instituído na lei. Assim, também, se diz do ato manifestamente inconstitucional ou ilegal, oriundo de autoridade constituída, que venha ameaçar ou violar direito alheio, certo e incontestável”.

A noção de arbitrariedade dicionarizada por De Plácido e Silva está em conformidade com a definição de Cassagne, e dá sinais de que esse raciocínio é comum no direito público brasileiro.

O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento nesse sentido, que demonstra a consolidação de como pode ser aplicada a tese firmada no Tema 671. No julgamento do AgRg no RE nos EDcl no AgRg nos EREsp 1032653/DF, definiu que há patente arbitrariedade quando um candidato, que “participou de certame para provimento do cargo de Agente da Polícia Civil do Distrito Federal, tendo sido aprovado em todas as fases, inclusive no curso de formação, mas deixou de ser nomeado exclusivamente por ostentar condição sub judice (liminar concedida em relação ao exame psicotécnico), só vindo a ser empossado mais de 8 anos após sua aprovação e após o trânsito em julgado da decisão que concedeu a ordem no mandado de segurança por ele impetrado, tendo a própria administração reconhecido a sua preterição, conferindo-lhe todos os efeitos funcionais (exceto os financeiros) desde o momento em que deveria ter sido originariamente nomeado”.
O aresto do AgRg no RE nos EDcl no AgRg nos EREsp 1032653/DF está em perfeita sincronicidade com a tese do Tema 671.

Tudo indica que o STF pretendeu convencer os jurisdicionados acerca da existência de graus de arbitrariedade, como se fosse possível afirmar que há ilegalidade maior ou menor em dado comportamento da Administração Pública. Provoca-se: existe grau de mortalidade, como sugeriu João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina? Em Direito, pode-se afirmar a existência de diferença entre “morte morrida” e “morte matada”? A “morte morrida” estaria capitulada em artigo diferente do 121, do Código Penal? Seria a “morte matada” mais grave? A resposta para todas essas perguntas é a mesma: o direito à vida é tutelado pela tipificação do homicídio como crime e, quando um ser humano morre, ele não morre nem menos e nem mais comparado a outro ser humano. Segundo o dicionário Houaiss, a morte é a “interrupção definitiva da vida de um organismo” e “fim da vida humana”.

Portanto, a expressão cunhada pelo STF servirá, apenas, como fundamento para sua competência jurisdicional, a qual deverá ser exercida com desapego aos neologismos e, sim, com a tradição da doutrina de direito administrativo supracitada, a qual consolidou o conteúdo de arbitrariedade em consonância com a teoria do ato administrativo e de seus vícios.


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Eduardo Tesserolli
Eduardo Tesserolli
Advogado e Assessor Jurídico da Administração Superior da DPE/PR Doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (PPGD UNIBRASIL). Professor de Direito Administrativo.

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