A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que, no contexto da guerra fiscal entre os Estados, não é possível imputar a prática de crime contra a ordem tributária ao contribuinte que, além de não ter empregado artifícios fraudulentos para reduzir ou suprimir o pagamento dos tributos, recolheu o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) conforme as diretrizes do princípio da não-cumulatividade.[1]
Nesse sentido, confira a seguinte ementa:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 1º, I, DA LEI N. 8.137/1990). GUERRA FISCAL. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. ALEGAÇÃO DA OCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. IMPOSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO DO LAPSO PRESCRICIONAL, POIS NÃO HOUVE A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. SÚMULA VINCULANTE 24. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE DE SÓCIO. NECESSÁRIO REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ELEITA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA O PROSSEGUIMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. CREDITAMENTO DO ICMS, EM RAZÃO DA DIFERENÇA DE ALÍQUOTA ENTRE OS ESTADOS DA FEDERAÇÃO. OPERAÇÃO QUE, POR SI SÓ, É INCAPAZ DE CONFIGURAR CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA NO ÂMBITO DO STF (RE N. 628.075/RS). CONFIGURAÇÃO DE, NO MÁXIMO, DÉBITO TRIBUTÁRIO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECONHECIMENTO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
- Busca o recurso: (i) o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal em relação a um dos sócios; (ii) a exclusão do polo passivo da investigação referente a outro sócio; (iii) o trancamento do inquérito policial; ou, subsidiariamente, (iv) a suspensão das investigações policiais até o julgamento de mérito do RE nº 628.075.
- Não há como analisar a prescrição alegada, em razão da ausência de informações de eventual constituição do crédito tributário e do teor do enunciado na Súmula Vinculante 24: não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.
- Em relação à ilegitimidade do sócio para figurar como investigado, a via eleita não permite o profundo revolvimento dos fatos e das provas da ação penal, sob pena de desvirtuamento de sua função constitucional. Ademais, a aferição da legitimidade ou não de se figurar o polo passivo da ação penal é resultado intrínseco da instrução criminal, que se vier a findar e desaguar na exordial acusatória, indicará fundamentadamente os responsáveis pelo delito imputado.
- É assente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o trancamento de ação penal ou de inquérito policial, na via eleita, constitui medida excepcional, somente admitida quando restar demonstrado, sem a necessidade de exame do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade ou a ausência de indícios suficientes da autoria ou prova da materialidade.
- No caso, consta dos autos que os recorrentes estão sendo investigados pela suposta prática do delito tipificado no art. 1°, I, da Lei n. 8.137/1993, quando teriam sido autuados em 30/11/2009, pela empresa Cambuci, em razão de supostos créditos indevidos de ICMS, nos meses de novembro e de dezembro de 2004, em decorrência da não apresentação das notas fiscais emitidas pelo estabelecimento filial situado em Brasília/DF e escrituradas no livro de registro de entradas.
- Como é cediço, o crime previsto no art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/1990 exige o elemento subjetivo doloso para a sua configuração, consistente na efetiva vontade de fraudar o fisco, mediante omissão ou declaração falsa às autoridades fazendárias, com o fim de suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social.
- A hipótese dos autos retrata a situação da chamada “guerra fiscal” entre os entes federados, em que a concessão de benefício fiscal por um ente federativo ocorre sem amparo em convênio entre os Estados e o Distrito Federal, no âmbito do CONFAZ.
- Nesse contexto, o creditamento de ICMS realizado pelo contribuinte, com base em benefício fiscal previsto em lei vigente, utilizando-se de lançamentos exatos, afasta o dolo necessário para a configuração do ilícito previsto no art. 1º, inciso I, da Lei n. 8.137/1990, pois, nessa hipótese, não há falar em meio fraudulento para reduzir ou suprimir tributos. Precedentes.
- Em casos tais, embora os fatos possam ensejar a condenação na esfera tributária e a imposição do pagamento de tributo, não se configura nenhum crime contra a ordem tributária, já que ausente o dolo do agente, que deixou de pagar o tributo com fundamento em benefício fiscal cuja legalidade deve ser resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, que, inclusive, já reconheceu a repercussão geral da matéria.
- Assim, as operações supostamente realizadas não são capazes, por si sós, de configurar a prática de crime contra a ordem tributária, uma vez que, além de não se amoldarem à infração penal prevista no art. 1º, I, da Lei n. 8.137/1990, inexiste previsão legal de crime contra a ordem tributária que abranja a operação em questão, configurando, no máximo, a ocorrência de um débito tributário.
- Recurso em habeas corpus provido para, reconhecendo a ausência de justa causa, trancar o andamento do Inquérito Policial n. 0044671-41.2012.8.26.0050.
(RHC 93.168/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 05/03/2020, DJe 12/03/2020)
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Crimes Contra a Ordem Tributária. Saraiva Educação SA, 2017.