Atuação judicial de ofício para concessão do benefício da gratuidade processual

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O ativismo judicial, em linhas gerais, corresponde ao protagonismo ativo do Poder Judiciário na efetivação de direitos, sobretudo relacionados a políticas públicas, cidadania e dignidade da pessoa humana[1].

O ativismo judicial decorre da ampliação do papel ativo do Poder Judiciário na efetivação dos direitos, a partir de iniciativas concretas que impõem ao Poder Público a realização de determinadas medidas em favor dos indivíduos e da sociedade. Como lembra Luis Roberto Barroso, essa é a tendência do Poder Judiciário desde a Constituição Federal de 1988. O oposto ao fenômeno do ativismo judicial é o que se denomina autocontenção, ou seja, uma postura mais conservadora e reservada do Poder Judiciário, cuja atuação se dá, preponderantemente, mediante provocação dos interessados. Era esse o perfil do Poder Judiciário, antes da Constituição Federal de 1988. Pelo ativismo judicial o Poder Judiciário toma decisões substancialmente políticas, porém juridicamente fundamentadas.

Sobre esse ponto, Luis Roberto Barroso esclarece que “A judicialização, como demonstrado acima, é um fato, uma circunstância do desenho institucional brasileiro. Já o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, ele se instala – e este é o caso do Brasil – em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir mais espaço à atuação dos Poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte deferência em relação às ações e omissões desses últimos.” [2]

Das muitas providencias tomadas pelo Poder Judiciário no campo do ativismo judicial, podem ser mencionadas a declaração de constitucionalidade das uniões homoafetivas e descriminalização do aborto de fetos anencéfalos.

O ativismo judicial no campo dos direitos fundamentais é uma das marcas do constitucionalismo dos dias atuais. A bordagem dos direitos fundamentais, inclusive do acesso à justiça[3], deve ser desenvolvida conforme os parâmetros do constitucionalismo contemporâneo, cujas principais características são as seguintes: i) preponderância dos princípios sobre as regras; ii) preponderância da ponderação com relação à subsunção; iii) presença marcante da Constituição em todos os campos jurídicos; iv) maior protagonismo do Poder Judiciário e menor autonomia legislativa; v) pluralidade axiológica[4].

Embora o acesso à justiça[5] seja uma garantia fundamental e o direito à gratuidade deva ser concedido sempre que presentes os pressupostos legais, a atuação do juiz, nesse ponto, segue a regra geral da inércia. Vale dizer, mesmo que a garantia da assistência judiciária gratuita desfrute de natureza constitucional fundamental, seu reconhecimento judicial dependerá de provocação. Assim, como já foi afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, o benefício da assistência judiciária gratuita depende de expresso pedido da parte, sendo vedada sua concessão de ofício pelo juiz[6].

Esse posicionamento foi adotado no seguinte julgado: “[...]  1. O STJ orienta-se no sentido de que o benefício da justiça gratuita, consonante o artigo 99 do CPC/2015, pode ser formulado na própria petição inicial, na contestação, na petição de ingresso de terceiro no processo ou em recurso, exigindo-se, contudo, requerimento expresso da parte interessada, sendo vedado sua concessão de ofício. 2. Ressalta-se que, embora a parte interessada possa, a qualquer tempo, formular pedido de concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita, eventual deferimento pelo Juiz ou Tribunal somente produzirá efeitos quanto aos atos processuais relacionados ao momento do pedido ou aos posteriores a ele, não sendo admitida, portanto, sua retroatividade. 3. Por fim, saliente que o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento de que rever decisão do Tribunal de origem que defere pedido de revisão do benefício à justiça gratuita implica reexaminar questões fáticas e probatórias, o que é expressamente vedado pela Súmula 7 do STJ. 4. Agravo conhecido para negar provimento ao Recurso Especial. [...][7].”

*A assistência jurídica integral e gratuita, prevista no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal é gênero que compreende as espécies assistência judiciária e justiça gratuita. A assistência judiciária gratuita corresponde ao direito de representação em juízo por procurador com capacidade postulatória, integrante ou não dos quadros da Defensoria Pública. A justiça gratuita (ou gratuidade judicial), por outro lado, corresponde à dispensa do pagamento de todas as despesas, em sentido amplo, do processo. Não obstante essa classificação, neste texto as expressões assistência judiciária, assistência jurídica, gratuidade  da justiça etc. são utilizadas de maneira metonímica, sem a correspondente precisão semântica.

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[1] “A garantia de acesso aos Tribunais torna o Poder Judiciário instituição central na tutela dos direitos fundamentais. [...] Empenha, assim, o Poder Judiciário um importante papel na construção de um novo conceito de cidadania, consistente na consciência do pertencimento à sociedade estatal, já que titular de direitos fundamentais, da dignidade como pessoa humana, da integração participativa no processo do poder com a igual consciência de que essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à dignidade do outro, de contribuir para o aperfeiçoamento de todos. [...] Assim, podemos concluir que o direito fundamental de acesso à justiça significa a popularização da Justiça não só na garantia de meios informais e baratos, mas também de garantir que discussões complexas referentes aos direitos fundamentais sejam pauta do processo judicial estruturado, recebendo a mesma atenção das autoridades judiciais que temas já consolidados.”ROQUE, Nathaly Campitelli. Acesso à Justiça. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/105/edicao-1/acesso-a-justica.

[2] BARROSO, Luis Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no brasil contemporâneo. Trabalho foi realizada na Universidade de Harvard – na Faculdade de Direito e na Kennedy School of Government. 2010. Acesso no dia 15.05/2020, às 21’19’’pelo endereço: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/constituicao_democracia_e_supremacia_judicial.pdf.

[3] “A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao proclamar em seu art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, tornou o direito e garantia de acesso à justiça em um direito fundamental, de maneira que se pressupõe que todos, indistintamente, possuem o direito de postular, perante os órgãos do Poder Judiciário, a tutela jurisdicional adequada e efetiva, respeitando-se, por óbvio, as garantias do devido processo legal e, principalmente, o seu consectário, o princípio do contraditório e da ampla defesa e, ainda, as normas de ordem processual aplicáveis à espécie.” RUIZ, Ivan Aparecido. Princípio do acesso justiça. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/201/edicao-1/principio-do-acesso-justica.

[4] SANCHIS, Luis Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial, in CARBONELL, Miguel.  Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 131.

[5] Sobre acesso à justiça confira: CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

[6] Jurisprudência em Teses – Edição nº 149

[7] AREsp 1516810/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/09/2019, DJe 11/10/2019.

Antonio Evangelista de Souza Netto
Antonio Evangelista de Souza Netto
Juiz de Direito Titular de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP.

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