O Supremo Tribunal Federal (STF), por 8 votos contra 2, em recurso que declarou a repercussão geral da matéria, reconheceu a existência simultânea da filiação socioafetiva e biológica, ou seja, reconheceu a existência da multiparentalidade, o que é louvável, contudo, decidiu que a filiação biológica é preponderante em relação à filiação socioafetiva, o que me parece um infeliz retrocesso.
No caso concreto, objeto deste julgamento, uma adolescente de 16 anos, ao saber da existência de um pai biológico, diferente do até então pai socioafetivo e registral, decidiu mover ação com o propósito de reconhecimento desta paternidade. O pai biológico se opôs à pretensão da menina, sustentando em apertadíssima síntese que ela já possuía um pai registral e socioafetivo e este ostentava a posse do estado de filho, inviabilizando a pretensão de estabelecer a filiação e suas consequências.
O Ministro Edson Fachin, renomado e proêmio jurista no Direito de Família, foi voto vencido. Bem nos ensinou que o vínculo socioafetivo com um pai se impõe juridicamente ao vínculo biológico com o genitor. Ora, a ascendência biológica, ou a coincidência genética, por si só, é perfeitamente capaz de determinar o parentesco, salvo se inexistir, em uma “dimensão relacional”, que a ela deva se sobrepor.
O disposto no artigo 1.603, do Código Civil, dispõe que a filiação se prova pela certidão de nascimento. Ainda, ninguém poderá vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo em caso de erro de falsidade do registro, como dispõe o artigo 1.604. Ou seja, aquele que registra a criança como sendo filho, só altera este registro em caso de vício como erro e falsidade. Contudo, apesar desta disposição rígida, o artigo 1.605 estabelece a possibilidade de provar a filiação por outro meio em direito admitido, em caso de falta ou defeito do termo de nascimento.
A construção doutrinária se faz no sentido de ser possível provar a filiação pela posse do estado de filho, sendo esta a base sociológica da filiação, fundada nos laços de afeto, no sentido verdadeiro de paternidade.
Bem ponderou o Ministro Edson Fachin em seu voto, ao lembrar do tratamento de reprodução humana a partir da técnica de Fertilização in vitro heteróloga. Nesta, pela ausência do gameta masculino ou feminino qualquer que seja a razão, o casal que deseja um filho pode socorrer-se de um gameta (óvulo ou espermatozoide) doado. Nestes casos, o vínculo biológico existente entre a criança e o doador anônimo não gera qualquer efeito jurídico
O acórdão em questão pondera não ser aceitável impedir a vontade da filha em conhecer sua verdadeira ascendência genética, diante da tese em que o registro e a paternidade socioafetiva, iniciada por ignorância da verdade, prevaleceria à biológica. Esta tese parece acertada num primeiro momento, contudo, diante do caso concreto e resguardada a segurança jurídica, a busca pela verdade biológica só poderia ser assistida pelo direito em caso de mero saber desta verdade genética, com o propósito exclusivo de conhecer possíveis doenças hereditárias, mas nunca com o desígnio de gerar os efeitos da filiação, como direitos sucessórios ou pretensões aos alimentos.
Aliás, é de se notar que dificilmente encontra-se ação de reconhecimento de paternidade, desqualificando o pai socioafetivo e registral, com o propósito de fundar laços de afeto com o pai biológico, com o propósito de estabelecer o sentido verdadeiro de paternidade com o pai biológico, tais ações comumente denunciam o propósito meramente econômico, prestando-se a declaração de paternidade como mero instrumento para se legitimar a pretensão de participar na sucessão do pai biológico ou de eventual ação de alimentos.
Como bem ponderou o Ministro Teori Zavascki, a paternidade biológica não gera necessariamente a relação de paternidade do pondo te vista jurídico e com as consequências decorrentes.
Obviamente que esta posição prevalece nos casos concretos em que há a oposição de uma das partes envolvidas, pai socioafetivo, ou pai registral, ou filho, isso porque, como já dito antes, a evolução do direito que consolida o princípio da afetividade das relações familiares reconhece a possibilidade jurídica da multiparentalidade, inclusive com a averbação de ambos os pais (biológico e socioafetivo) no registro de nascimento, desde que haja o afeto, desde que haja o sentido verdadeiro da paternidade na relação de ambos os pais com o filho.