A efetiva paridade de armas no processo penal como condição imprescindível para a satisfação do Direito Fundamental da Igualdade e do Princípio do Devido Processo Legal

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A efetiva paridade de armas no processo penal como condição imprescindível para a satisfação do Direito Fundamental da Igualdade e do Princípio do Devido Processo Legal | Juristas
Prof.Dr. Marcelo Henrique

O cenário de toda ação judicial contenciosa, em essência, reflete a pretensão de uma parte que é resistida pela outra. Trata-se da famosa lide, cujo desiderato estatal, por meio do Poder Judiciário, é estabelecer a paz social e, por meio do Direito, regressar as partes ao estágio mais próximo do status quo ante observado antes do objeto da discussão.

Esse sistema, em geral moderno, de solução de conflitos é a denominada Heterocomposição, por meio do qual um magistrado estranho às partes e ao objeto da demanda em concreto, estabelece uma solução, tendo como norte o Princípio da Persuasão Racional do Julgador. Esse princípio impede a valoração pré-determinada de provas, como na geração das Ordálias, conferindo liberdade ao juiz quando da formação de sua convicção.

Todavia, em homenagem ao também válido Princípio dos Checks and Balances, essa liberdade está mitigada pelos deveres de imparcialidade, probidade e isenção, e, delimitada pelo Due Process of Law, o Devido Processo Legal, que é o imperativo da Democracia aplicada ao Poder Judiciário. E essa previsão é recorrente no Ordenamento Jurídico Brasileiro, especialmente no art. 5º, LIV e LV; no Código de Processo Civil, em seu art. 10º; bem como no art. 3º-B do Código de Processo Penal, e vasta jurisprudência.

Quando se trata de matéria penal, sabe-se que além desses e outros princípios, vige o escrutínio pela chamada verdade real. Em apertada síntese, enquanto o convencimento na seara cível satisfaz-se com a verdade formal (aquela obtida por meio da análise do conjunto probatório circunscrito aos autos), no âmbito penal prescrute-se a exatidão dos fatos concretos, aqueles, de fato ocorridos no interregno do intercriminis, sendo os autos mero instrumento para materializar a persecução penal. Tudo isso pela gravidade humana do processo criminal, que ameaça a o Direito Fundamental da Liberdade de uma pessoa. E, justamente nessa linha, é a última camada de atuação do Direito, a última ratio, aplicável em último caso.

Diante dessa seriedade, salvo pontuais exceções, o Estado evocou para si o direito de processar o indivíduo, em nome da sociedade, além do direito de punir, já ostentado pelo Poder Judiciário. E para a árdua tarefa de acionar criminalmente o cidadão, quis o legislador que o legitimado ativo para tal fosse, não à toa, o Ministério Público, materializado em seus órgãos, os Promotores e Promotoras de Justiça atuantes nas promotorias criminais. E é exatamente neste ponto que se instaura uma importante celeuma que merece intenso debate e esclarecimento.

O Ministério Público, por inerência de sua instituição, guarda para si o munus de fiscal da lei, de custus legis. Trata-se de um dever inerente à sua própria função constitucional, que deve ser exercido em todas as esferas do Direito. Na seara criminal, sobretudo, é-lhe atribuída a função de advogado da sociedade, justamente por ser o titular da Ação Penal. Como se sabe, todo crime gera uma vítima imediata e reflete uma vítima mediata, que é a sociedade que está sendo vilipendiada pelas condutas nefastas de um delinquente.

Todavia, todos fazemos parte da sociedade defendida pelo Ministério Público. Desde os mais exemplares cidadãos até toda a população carcerária deve ser representada pelo Parquet quando o mesmo está advogando em favor da coletividade, ao titularizar a persecutio criminis. E é exatamente por isso que o Promotor de Justiça deve ser imparcial, estando sujeito aos mesmos impedimentos e suspeições aplicáveis aos magistrados. Na mesma linha, receberam os membros do Ministério Público as mesmas garantias dos magistrados, especialmente para lhes assegurar o direito de agir de acordo com a consciência, de forma transparente, escorreita. Exatamente nesse sentido discorrem os doutrinadores Lenio Streck e Eduardo Newton:

Por que será que o MP recebeu as garantias da magistratura? Para agir estrategicamente ou para se portar como 'um magistrado'? As garantias são para não se apresentar como um teimoso e irascível acusador. O agir por princípios é o que (deveria) pauta(r) o agente imparcial; porém, diante dessa fragilidade do tipo ideal do promotor de Justiça, o que se verifica é a atuação pautada pelo agir estratégico, ou seja, um comportamento próprio de quem possui interesse no desfecho do processo. Em verdade, o comportamento de assistente de acusação.

A discussão proposta pelos autores vai exatamente ao encontro da tese que estamos propondo, passando – essencialmente – pela atuação ministerial pautada pela isenção e pela imparcialidade. Isenção no que diz respeito aos elementos temáticos dos autos, quanto ao mérito da demanda e imparcialidade, ainda que na posição de advogado da sociedade. Afinal, o Parquet também representa, como advogado, o investigado e sua família, devendo para com este o mesmo respeito que deve dispensar à vítima. Como devidamente incrustrado em seu nome funcional, é seu dever promover a Justiça e não a condenação. Caso contrário, o Ministério Público, em sua atuação criminal seria dividido em promotorias de condenação.

E essa celeuma adentrou até mesmo dentro do Parquet, o que se observa
pelo ajuizamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 758, movida em 2020 pela Associação Nacional de Membros do Ministério Público. O órgão insurgiu-se contra o Habeas Corpus Coletivo, bastante utilizado nos tempos da Pandemia do Covid-19, principalmente na defesa dos hipossuficientes, sem condições de recorrer aos advogados particulares de forma individual (1).

Nesta ocasião, fora negado seguimento à mencionada ação constitucional por meio da histórica decisão o eminente Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o qual aproveitou a oportunidade para delimitar o verdadeiro papel do Ministério Público tracejado na Constituição Federal de 1988. Verbis:

A instituição [MP] foi arquitetada, portanto, para atuar desinteressadamente no arrimo dos valores mais encarecidos da ordem constitucional, razão pela qual o legislador conferiu inclusive a atribuição para impetrar habeas corpus em favor de pessoas submetidas a restrições indevidas em sua liberdade de locomoção (artigo 654 do CPP)

Vasto é o posicionamento doutrinário no mesmo sentido, o que fez ecoar até mesmo para a tramitação de um Projeto de Lei no Senado Federal (P.L. 5.852/2019), de autoria do Senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), que estabelece a obrigatoriedade do Ministério Público buscar a verdade dos fatos. Pode até parecer um projeto desnecessário, prolixo, entretanto é uma válida e judiciosa maneira de tentar fazer valer, na prática, o que já preceitua o já mencionado princípio da busca da verdade real, inerente ao Processo Penal.

Nessa linha de raciocínio, quando o próprio órgão acusador é um Promotor de Justiça que, por dever institucional, deve ser isento e imparcial, decorre-se, por óbvio, que a paridade de armas dentro da ação penal é cenário exigível. Em outras palavras, o Ministério Público conta com todo o aparato estatal e uma estrutura de lide, ab initio, desproporcional à Defesa. E é exatamente por isso que todo excesso de acusação deve ser substituído por uma ideal compensação entre as partes, jamais se olvidando que incumbe a quem acusa o ônus probatório.

Dessa forma, espera-se que o juiz exerça uma constante vigilância dos processos sob sua presidência, justamente para que as partes sejam tratadas à luz da paridade de armas, franqueando à Defesa o que, efetivamente, preceitua o Due Process of Law. Não há contraditório adequado, por exemplo, quando o Ministério Público é o último a emitir sua manifestação. Entendemos que “falar por último” é uma das prerrogativas mais importantes da Defesa dentro do Processo Penal.

Nesse sentido, é despiciendo igualar o Processo Civil ao Processo Penal, em especial quando de suas respectivas inaugurações. Quando a Exordial é distribuída, de pronto o juiz determina a citação do requerido para oferecer sua resposta. Como se sabe, dessa resposta cabe réplica ao requerente, justamente porque podem ter sido lançados elementos fáticos diversos e não apenas controversos na Contestação, permitindo-se rechaçá-los, não sendo devolvida a palavra para requerido treplicar.

Cenário diametralmente diferente é o Processo Penal, em que o acusado é Denunciado, sendo-lhe oferecido prazo para resposta à acusação, nos termos dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal, respectivamente. Apresentada a peça defensiva, não se mostra de bom alvitre o retorno dos autos ao Ministério Público para replicar a resposta oferecida pelo acusado. Trata-se de uma afronta à liturgia processual constante na codificação adjetiva, já que o art. 397 do mesmo Codex prevê hipóteses de absolvição sumária e, portanto, extinção dos autos. Na mesma ordem, o art. 399 dispõe sobre a continuidade da ação penal, com a designação de audiência de instrução, debates e julgamento. Portanto, não há previsão legal de retorno dos autos para finalidade de réplica ao Ministério Público.

E, para além do universo da interpretação gramatical, ofertar possibilidade de réplica ao Ministério Público vai totalmente de encontro aos princípios do Processo Penal, sobretudo os discutidos acima, dentro do panorama da real posição do Ministério Público. Ao agir dessa forma, há um comprometimento da imparcialidade do juízo, desequilibrando a paridade de armas e permitindo ao titular da ação penal um protagonismo indevido dentro do bojo da persecução penal. Se ao Ministério Público incumbe o mister do ônus probatório como lastro de sua narrativa, permitir-lhe o pronunciamento derradeiro – seja em qual fase for –, é cercear o sagrado Direito de Defesa do acusado.

O cerceamento do Direito de Defesa é evidente e o prejuízo ao acusado também é de simples depreensão. Não é correto, aliás, enxergar prejuízos apenas de natureza objetiva, com efetivos danos. Afinal, o dano é ato ilícito, passível de reparação indenizatória, nos termos dos arts. 186 e 927 do Código Civil. E, certamente, não se espera que uma autoridade pública possa ter dolo de causar dano a qualquer de seus jurisdicionados. Justamente por isso, o conceito de prejuízo está acima de dano, em um patamar mais leve, na seara do equívoco material ou de hermenêutica, sem a intenção de lesionar. Por isso, o famoso comando do Direito Francês ne pas de nulité sans grief deve ser aplicado com bastante cautela, acurácia e, sobretudo, favor rei, em benefício do réu, em bom Português.

Especificamente no caso acima delimitado, é mais do que evidente o prejuízo psicoemocional e, consequentemente, processual que o acusado experimenta. Sobretudo quando sente que o órgão que lhe acusa está fruindo de protagonismo indevido, não previsto nem mesmo na legislação.

E esse é apenas um dos vários exemplos em que coloca em cheque o princípio da paridade de armas, tão caro e importante para o ordenamento jurídico, principalmente criminal. Não se pode mais, de forma alguma, tolerar violações de Direitos Humanos – como essas – sob a égide de um Estado completamente diverso daquele que abrigou os conceitos punitivistas que ainda dão azo a esse tipo de interpretação completamente divorciada da Constituição Federal de 1988.

Nota:

(1)1 STRECK, Lenio; NEWTON, Eduardo Januário. Afinal, ‘o que é o Ministério Público,
esse outro (des)conhecido? Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-nov-
17/opiniao-afinal-mp-outro-desconhecido, acesso em: 23/01/2021.

Marcelo Henrique
Marcelo Henrique
Jurista, Jornalista, Professor e Escritor Escreve para o Mental Health Affairs, de Nova York - EUA, para o Psychreg, de Londres - UK, para o Intelectualidade.online, para o Brasil Agora Online, para o portal Direito e Negócios e portal Juristas Eleito escritor mais influente dos últimos seis anos no Mental Health Affairs.

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