A lei francesa que proíbe análise preditiva de decisões judiciais – Menos transparência pode significar mais risco ao arbítrio

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A lei francesa que proíbe análise preditiva de decisões judiciais – Menos transparência pode significar mais risco ao arbítrio | Juristas
Créditos: Zolnierek | iStock

Ferramentas de análise preditiva permitem que empresas usem dados para prever cenários e identificar tendências, o que proporciona a tomada de melhores decisões para seus negócios. Utilizando técnicas de machine learning (aprendizado de máquina) e uma grande quantidade de dados, identificam padrões nos dados que possibilitam antever mudanças no mercado, novos hábitos de consumo e quais estratégias usar sob determinadas circunstâncias.

A análise preditiva já é uma realidade no mercado profissional jurídico, onde empresas especializadas (legaltechs) utilizam as tecnologias da informação e desenvolvem aplicativos para prever comportamentos ou identificar tendências e padrões nas decisões judiciais. Esses programas permitem a extração de grandes quantidades de textos de sentenças e decisões judiciais, classificando-as em categorias jurídico-analíticas, de modo a proceder à análise preditiva. Com base em um grande acervo de dados de decisões pretéritas, o sistema é capaz de predizer decisões futuras. É uma área promissora, pois facilita a pesquisa da informação jurisprudencial e a entender os fatores que levam os juízes a tomar determinadas decisões.

Na última semana, porém, uma lei aprovada na França parece ter limitado esse florescente setor, pois proíbe a publicação de estatísticas sobre decisões judiciais. A lei prevê pena prisional de até cinco anos para quem descumprir seus ditames. A nova legislação foi resultado de uma alteração no art. 33 da Lei de Reforma da Justiça francesa[1] e impede que se revele publicamente o padrão de comportamento dos juízes, por meio da seguinte redação:

“Os dados de magistrados e membros do Judiciário não podem ser reutilizados com o propósito ou efeito de avaliar, analisar, comparar ou prever suas práticas profissionais reais ou potenciais”.[2]

A justificativa apresentada para a vedação dos tratamentos de dados ligados à identidade dos magistrados é de que a construção de perfis individualizados poderia levar ao controle sobre suas decisões, prejudicando o funcionamento da Justiça. O profiling (perfilamento) permitiria às partes escolher estratégias de litigância em função das características individuais dos magistrados. Além disso, a comparação entre magistrados, como eles decidem uma mesma matéria, também é vista como ameaça à independência dos juízes.

Esse tipo de proibição é único no mundo; não se tem notícia de restrição à comparação de padrões judiciais em outro país.

Muito embora a Lei francesa tenha como alvo as legaltechs, que oferecem soluções de litigância estratégica, os seus efeitos podem ser prejudiciais à sociedade como um todo. É certo que não impede a publicação da jurisprudência de maneira global. Os dados tornam-se públicos, mas sem que haja a comparação individual entre os magistrados ou como eles decidem determinados assuntos. Mesmo assim a restrição é um retrocesso, pois o estudo de como os juízes decidem casos é importante do ponto de vista processual e para assegurar a transparência de como esses representantes do Poder Público exercem suas funções.

Quanto mais transparência no atuar dos magistrados, maior será a garantia de imparcialidade e de adequação das decisões judiciais. Não é sem sentido que em praticamente todos os países civilizados se erigiu como garantias fundamentais dos cidadãos a publicidade das decisões judiciais e o dever dos magistrados de fundamentá-las. A publicidade dos atos judiciais, aliada à necessidade de fundamentação adequada ao sistema jurídico vigente, funciona como meio de controle social sobre a atividade judicante, para evitar abusos e atitudes arbitrárias. Não se controla uma decisão judicial em relação ao modo como o juiz deve decidir ou qual opção deve seguir na solução de um caso. Mas em tornando-a pública, acessível a todos os interessados, bem como impondo ao magistrado o dever de fundamentar sua decisão com base na prova dos autos e no direito aplicável, evita-se o arbítrio judicial.

A análise dos padrões decisórios dos juízes, de como eles decidem certos casos, com a finalidade de prever comportamentos ou identificar tendências, não parece que possa ser utilizada como instrumento para pressionar o Poder Judiciário ou seus integrantes. A análise judicial preditiva pode aumentar a eficiência na aplicação do direito. Classificar sentenças e decisões judiciais em função dos fatores que as determinaram pode auxiliar na melhoria da performance judiciária. Do ponto de vista processual, pode fornecer tendências na resolução das lides, já que indica a argumentação adequada ou a probabilidade de ganho ou perda de um processo.

Os advogados e profissionais do direito sempre produziram estatísticas e análises do comportamento dos juízes, utilizando algum sistema de processamento manual. A grande diferença para o cenário atual é que hoje contamos com o poder computacional e o grande volume de dados. O avanço da tecnologia permitiu que os dados sejam convertidos em previsões futuras com mais facilidade e acurácia. A análise judicial preditiva na atualidade é decorrente do termo conhecido como Big Data, ou seja, as ferramentas de análise trabalham com grandes volumes de dados (decisões pretéritas) para predizer tendências futuras. As bancas de advocacia contratam empresas com tecnologia para analisar milhares de decisões por segundo, o que torna possível a construção de modelos estatísticos de comportamento judicial em relação a determinadas matérias, bem como estabelecer a probabilidade de sucesso de uma iniciativa processual específica. Com tais recursos, as firmas de advocacia otimizam suas estratégias forenses.

O banimento da publicação de informações estatísticas sobre a atuação dos juízes, como fez a lei francesa, não parece ser a forma correta de se regular a atividade das legaltechs. Esconder como os juízes pensam e decidem a respeito de determinados assuntos não é medida democrática e não contribui para o aperfeiçoamento do aparato judiciário. Um sistema legal deve ser aberto, transparente e sempre possível de escrutínio público. É claro que pode haver certas restrições em relação a informações sobre as partes e fatos do processo, mas as decisões dos juízes têm que se constituir em dados abertos ao público.  Não permitir que uma decisão (ou conjunto de decisões) seja escrutinada em todos os seus aspectos, inclusive proibindo o acesso à identidade do agente que produziu a decisão, é que pode se transformar em uma espécie de censura, ferindo garantias fundamentais dos jurisdicionados.

*Demócrito Reinaldo Filho – Desembargador do TJPE.

 

                                                          

[1] LOI n° 2019-222 du 23 mars 2019 de programmation 2018-2022 et de réforme pour la justice.

[2] O texto da Lei pode ser acessado em: https://www.legifrance.gouv.fr/eli/loi/2019/3/23/2019-222/jo/article_33

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