Presunção de hipossuficiência econômica da parte representada pela Defensoria Pública

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Segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça não se presume a hipossuficiência econômica para concessão da gratuidade da justiça pelo simples fato de a parte ser representada pela Defensoria Pública. Mesmo nesses casos não se dispensa o preenchimento dos requisitos previstos em lei[1].

Esse posicionamento foi adotado no seguinte julgado: “[…] 1. Incide a Súmula 187/STJ, devendo ser decretada a deserção do recurso, quando a parte, mesmo regularmente intimada para complementar o preparo, não sana o vício ou o faz intempestivamente. 1.1. No presente caso, mesmo após a intimação do recorrente para sanar o vício apontado, não houve a comprovação da regularidade no recolhimento do preparo, o que impõe a incidência da Súmula 187 do STJ. […] 2. Esta Corte Superior de Justiça firmou entendimento no sentido de que a simples circunstância do patrocínio da causa pela Defensoria Pública não faz presumir a hipossuficiência econômica do representado, não podendo ser presumida a concessão da gratuidade de justiça. Precedentes. […].[2]

O art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, assegura a prestação de assistência jurídica integral e gratuita a todos que comprovem insuficiência de recursos. Cuida-se de garantia de efetivação do direito de acesso[3] à justiça.

O art. 82, do Código de Processo Civil prevê que, exceto nos casos de gratuidade da justiça, incumbe à parte prover as despesas dos atos que realizar no processo. Em complemento, o art. 98, também do Código de Processo Civil, preconiza que a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça.

A gratuidade da justiça, ao contrário do que se pode pensar, não compreende apenas as despesas processuais e os honorários advocatícios. Segundo o §1º, do mencionado art. 98, do CPC, a gratuidade abrange: i) as taxas ou as custas judiciais; ii) os selos postais; iii) as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; iv) a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse; v) as despesas com a realização de exame de código genético – DNA e de outros exames considerados essenciais; vi) os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; viii) o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; ix) os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; e x) os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.

Naturalmente, se a parte não tiver recursos que bastem para pagar nenhuma das  despesas, em sentido amplo, ela será dispensada do recolhimento de custas, despesas processuais ou do pagamento de honorários advocatícios, incluídos todos os aspectos da gratuidade, referidos no art. 98, §1º, do CPC. É possível, contudo, que a parte tenha recursos suficientes para o pagamento de apenas algumas despesas, a  exemplo do sujeito que embora não tenha dinheiro para pagar um advogado particular, tenha condições de pagar as taxas e custas judiciais. Nessa hipótese, a parte poderá ser representada por advogado dativo ou defensor público, e a gratuidade da justiça abrangerá apenas as despesas com honorários de advogado.

A Constituição Federal, no art. 134, indica que a Defensoria Pública, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, tem a missão de promover os direitos humanos e a defesa, em todos os graus, no plano judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, dos necessitados (na forma do inciso LXXIV do art. 5º ).

Sobre esse tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu o seguinte: “Art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina. LC estadual 155/1997. Convênio com a seccional da OAB/SC para prestação de serviço de “defensoria pública dativa”. Inexistência, no Estado de Santa Catarina, de órgão estatal destinado à orientação jurídica e à defesa dos necessitados. Situação institucional que configura severo ataque à dignidade do ser humano. Violação do inciso LXXIV do art. 5º e do art. 134, caput, da redação originária da Constituição de 1988. Ações diretas julgadas procedentes para declarar a inconstitucionalidade do art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina e da LC estadual 155/1997 e admitir a continuidade dos serviços atualmente prestados pelo Estado de Santa Catarina mediante convênio com a OAB/SC pelo prazo máximo de um ano da data do julgamento da presente ação, ao fim do qual deverá estar em funcionamento órgão estadual de defensoria pública estruturado de acordo com a Constituição de 1988 e em estrita observância à legislação complementar nacional (LC 80/1994)[4].”

Nota-se que, entre outras atribuições, a Defensoria Pública tem a responsabilidade de promover a defesa e a representação processual dos cidadãos que não possuem recursos suficientes para pagar honorários de advogados particulares.

Todos os indivíduos cujo pagamento de despesas processuais (em sentido amplo) e honorários advocatícios possa inviabilizar o seu próprio sustento, em tese, tem direito de “acessar o sistema justiça[5]”gratuitamente, sem precisar pagar nada por isso. Os necessitados, nessas condições, portanto, podem requerer a gratuidade da justiça e a assistência jurídica Defensoria Pública.

Para o Supremo Tribunal Federal “A demonstração do estado de miserabilidade pode resultar de quaisquer outros meios probatórios idôneos, além do atestado de pobreza fornecido por autoridade policial competente[6].”

No entanto, ainda que a representação por Defensor Público seja indício de que a parte não tenha recursos para pagar todas as despesas processuais (em sentido amplo), nos termos do art. 98 do CPC, não há presunção absoluta nesse sentido. Assim, a representação processual por defensor público ou advogado dativo gera presunção relativa de pobreza.

O Código de Processo Civil (art. 99, §3º)  atribui presunção relativa de veracidade da alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural. Ademais, a assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade da justiça (art. 99, §4º). A concessão da gratuidade, nessa hipótese, exige uma avaliação mais intensas sobre a impossibilidade de custeio das demais despesas processuais.

É possível, por exemplo, que a parte não tenha condições de pagar os honorários de um advogado particular nem qualquer outra despesa processual (em sentido amplo). Nessa hipótese, terá dirito à gratuidade integral, que abrangerá os honorários advocatícios e todas as outras despesas do processo.

Numa outra hipótese, é possível que a parte tenha recursos para pagar um advogado particular e não tenha recursos para pagar as demais despesas processuais. Nesse caso, ainda que representada por advogado particular, a parte terá direito à gratuidade das demais despesas processuais.

Numa terceira hipótese, é possível que a parte não tenha recursos para pagar um advogado particular, mas tenha condições de pagar outras despesas processuais. Nesse caso, a parte terá direito à representação processual por defensor público ou advogado dativo, mas não teria direito à isenção do pagamento das demais despesas processuais.

Em suma, os benefícios da gratuidade podem ser totais ou parciais, abrangendo ou não os honorários advocatícios e as despesas processuais. De acordo com o art. 95, §5º, a gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.[8]

Logo, a despeito da presunção de que os sujeitos representados pela Defensoria Pública não tenham condições nem de pagar os honorários de advogado particular, nem as demais despesas processuais, no caso concreto é possível se demonstrar que a parte possui condições de custear algumas despesas do processo, ainda que não possa pagar um advogado particular (e justamente por isso é representada pela Defensoria Pública)[7].

Nessa última hipótese será reconhecida a legitimidade da representação pelo defensor público, mas não será deferida a gratuidade das demais despesas processuais.

[1] Jurisprudência em Teses – Edição nº 148.

[2] AgInt no AREsp 1517705/PE, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 03/02/2020.

[3] Segundo Ivan Aparecido Ruiz “A palavra “acesso” traz a ideia de ingressar, de entrada. Mas, também, traduz o sentido de possibilidade de alcançar algo. A locução “Acesso à Justiça”, no plano do direito, representa esse segundo sentido, ou seja, a possibilidade de alcançar algo, que é justamente o valor “Justiça”.  É, pois, uma norma-princípio, garantidora de direitos violados ou ameaçados. A expressão “Acesso à Justiça”, aqui, deve ser interpretada num sentido amplo, lato sensu. Assim, “A concepção de acesso à Justiça, todavia, desbordou os limites da possibilidade de propor uma ação, como antigamente se pensava, para alcançar também a plena atuação das faculdades oriundas do processo e a obtenção de uma decisão aderente ao direito material, desde que utilizada a forma adequada para obtê-la”. RUIZ, Ivan Aparecido. Princípio do acesso justiça. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/201/edicao-1/principio-do-acesso-justica

[4] ADI 3.892 e ADI 4.270, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 14-3-2012, P, DJE de 25-9-2012. Vide ARE 767.615 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, j. 5-11-2013, 2ª T, DJE de 11-11-2013.

[5] Sobre acesso à justiça confira CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 49.

[6] HC 72.328, rel. min. Celso de Mello, j. 21-3-1995, 1ª T, DJE de 11-12-2009.

[7] O Supremo Tribunal Federal também já decidiu que “[…] A isenção do pagamento de custas não fica jungida à inviabilidade de atuação da Defensoria Pública, sendo cabível no tocante a cidadão que, sem o prejuízo da assistência própria ou da família, não tenha condições de recolhê-las. Diante do alcance do disposto no artigo 5º, inciso LXXIV, da Carta Federal, estariam presentes os princípios constitucionais explícitos e implícitos voltados ao pleno exercício de direitos inerentes à cidadania. ADI 3.658, rel. min. Marco Aurélio, j. 10-10-2019, P, DJE de 24-10-2019.

[8] Alexandre Freitas Câmara lembra que a” concessão do benefício pode ser total ou parcial. A lei permite expressamente que se conceda o direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tenha de adiantar no curso do processo (art. 98, § 6º), bem como a concessão de gratuidade apenas em relação a alguns atos processuais ou a redução percentual (“desconto”) naquilo que tenha de ser adiantado pelo beneficiário (art. 98, § 5º ).” CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Atlas, p. 74.

A assistência jurídica integral e gratuita, prevista no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal é gênero que compreende as espécies assistência judiciária e justiça gratuita. A assistência judiciária gratuita corresponde ao direito de representação em juízo por procurador com capacidade postulatória, integrante ou não dos quadros da Defensoria Pública. A justiça gratuita (ou gratuidade judicial), por outro lado, corresponde à dispensa do pagamento de todas as despesas, em sentido amplo, do processo. Não obstante essa classificação, neste texto as expressões assistência judiciária, assistência jurídica, gratuidade  da justiça etc. são utilizadas de maneira metonímica, sem a correspondente precisão semântica.

Antonio Evangelista de Souza Netto
Antonio Evangelista de Souza Netto
Juiz de Direito Titular de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP.

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