Manutenção da decretação da prisão preventiva na hipótese de não realização de audiência de custódia durante a pandemia do Covid-19.

Data:

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça posicionou-se no sentido de que a não realização da audiência de custódia como medida de prevenção à propagação do Covid-19, com fundamento no art. 8º[1] da Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, não implica ilegalidade da decisão que decretou a prisão preventiva.

Note-se que a Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça recomenda que todos os Tribunais e magistrados adotem medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.[2]

A respeito do ponto salientado, observe-se que o art. 8º-A da Recomendação CNJ nº 62/2020, incluído pela Recomendação CNJ nº 68/2020, estabelece o seguinte:

Art. 8-A. Na hipótese de o Tribunal optar pela suspensão excepcional e temporária das audiências de custódia, nos termos do artigo anterior, deverá adotar o procedimento previsto na presente Recomendação.

§ 1º Sem prejuízo das disposições do artigo anterior, o ato do tribunal que determinar a suspensão das audiências de custódia durante o período de restrições sanitárias decorrentes da pandemia de Covid-19 deverá contemplar as seguintes diretrizes: I – possibilidade de realização de entrevista prévia reservada, ou por videoconferência, entre o defensor público ou advogado e a pessoa custodiada, resguardando-se o direito à ampla defesa; II – manifestação do membro do Ministério Público e, em seguida, da defesa técnica, previamente à análise do magistrado sobre a prisão processual; III – conclusão do procedimento no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, nos termos do art. 310 do Código de Processo Penal; IV – observância do prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas para a expedição e o cumprimento de alvarás de soltura, nos termos da Resolução CNJ nº 108/2010; V – fiscalização da regularidade do procedimento, especialmente quanto à realização prévia de exame de corpo de delito ou exame de saúde e à juntada aos autos do respectivo laudo ou relatório, bem como do registro fotográfico das lesões e de identificação da pessoa, resguardados a intimidade e o sigilo, nos termos das diretrizes previstas na Recomendação CNJ nº 49/2014; e VI – determinação de diligências periciais diante de indícios de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, a fim de possibilitar eventual responsabilização.

§ 2º Recomenda-se, para a implementação do previsto no inciso I do parágrafo anterior, a articulação interinstitucional com a Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública em âmbito local.

§ 3º O magistrado competente para o controle da prisão em flagrante deverá zelar pela análise de informações sobre fatores de risco da pessoa autuada para o novo Coronavírus, considerando especialmente o relato de sintomas característicos, o contato anterior com casos suspeitos ou confirmados e o pertencimento ao grupo de risco, recomendando-se a utilização do modelo de formulário de perfil epidemiológico elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça.”

Com relação ao citado posicionamento, note-se a seguinte ementa:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO, TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. NÃO REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. RECOMENDAÇÃO N. 62/2020 DO CNJ. CONVERSÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM PREVENTIVA. SUPERAÇÃO. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA. RISCO DE REITERAÇÃO DELITIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. SUPOSTOS PREDICADOS PESSOAIS FAVORÁVEIS QUE NÃO IMPEDEM A SEGREGAÇÃO. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. INSUFICIÊNCIA, NO CASO. REVISÃO DA PRISÃO EM RAZÃO DA PANDEMIA DA COVID-19. CONTEXTO DE RISCO NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

  1. A não realização da audiência de custódia se deu com motivação idônea, qual seja, a necessidade de reduzir os riscos epidemiológicos decorrentes da pandemia de Covid-19, nos termos do art. 8.º da Recomendação n. 62/CNJ. Ademais, a jurisprudência desta Corte Superior orienta no sentido de que “eventual nulidade do flagrante, pela não realização de audiência de custódia, fica superada com a superveniência do decreto preventivo. Precedentes” (AgRg no RHC 125.482/BA, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 16/06/2020, DJe 24/06/2020.)
  2. A prisão preventiva está suficientemente fundamentada na necessidade de se acautelar a ordem pública, tendo em vista a gravidade concreta da conduta, evidenciada não apenas pela expressiva quantidade e diversidade de substâncias entorpecentes apreendidas, mas também porque foram encontrados uma submetralhadora 9mm com carregador, 12 (doze) munições 9mm e 12 (doze) munições. 40, além de 1,325kg de flaconetes plásticos vazios, 1 (uma) balança de precisão, 1 (uma) máquina de cartão, 5 (cinco) celulares, 2 (duas) facas, 1 (uma) peneira, 2 (dois) rolos de plástico filme e R$ 366,00 (trezentos e sessenta e seis reais) em notas diversas, o que justifica a manutenção da segregação cautelar. O Magistrado singular também destacou o risco concreto de reiteração delitiva, pois o Paciente é reincidente específico, o que corrobora a necessidade da prisão preventiva.
  3. A suposta existência de condições pessoais favoráveis não tem o condão de, por si só, desconstituir a custódia antecipada, caso estejam presentes um dos requisitos de ordem objetiva e subjetiva que autorizem a decretação da medida extrema, como ocorre, in casu.
  4. Mostra-se inviável a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, pois a gravidade concreta do delito demonstra serem insuficientes para acautelar a ordem pública (HC 550.688/SP, Rel.Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, DJe 17/03/2020; e HC 558.099/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, DJe 05/03/2020).
  5. Em razão da pandemia causada pelo novo coronavírus, não se ignora a necessidade de realizar o juízo de risco inerente à custódia cautelar com maior preponderância das medidas alternativas ao cárcere, a fim de evitar a proliferação da Covid-19; todavia, essa exegese da Recomendação do Conselho Nacional de Justiça não permite concluir pela automática concessão de liberdade ou substituição da prisão preventiva pela domiciliar.
  6. Foi apresentada fundamentação suficiente para o indeferimento do pleito defensivo de revogação da custódia em face da pandemia, notadamente porque a Parte Impetrante não comprovou que o Paciente, que possui 33 (trinta e três) anos, faça parte do grupo de risco do coronavírus. Outrossim, não há nos autos notícia de que o Paciente esteja em situação de risco/vulnerabilidade no local onde está custodiado, por ausência de cuidados sanitários para evitar a contaminação, razão pela qual não se verifica o constrangimento ilegal apontado pela Defesa.
  7. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no HC 692.917/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/10/2021, DJe 11/10/2021)

[1] Art. 8º Recomendar aos Tribunais e aos magistrados, em caráter excepcional e exclusivamente durante o período de restrição sanitária, como forma de reduzir os riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considerar a pandemia de Covid-19 como motivação idônea, na forma prevista pelo art. 310, parágrafos 3º e 4º, do Código de Processo Penal, para a não realização de audiências de custódia. § 1º Nos casos previstos no caput, recomenda-se que: I – o controle da prisão seja realizado por meio da análise do auto de prisão em flagrante, proferindo-se decisão para: a) relaxar a prisão ilegal; b) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, considerando como fundamento extrínseco, inclusive, a necessidade de controle dos fatores de propagação da pandemia e proteção à saúde de pessoas que integrem o grupo de risco; ou c) excepcionalmente, converter a prisão em flagrante em preventiva, em se tratando de crime cometido com o emprego de violência ou grave ameaça contra a pessoa, desde que presentes, no caso concreto, os requisitos constantes do art. 312 do Código de Processo Penal e que as circunstâncias do fato indiquem a inadequação ou insuficiência das medidas cautelares diversas da prisão, observado o protocolo das autoridades sanitárias. II – o exame de corpo de delito seja realizado na data da prisão pelos profissionais de saúde no local em que a pessoa presa estiver, complementado por registro fotográfico do rosto e corpo inteiro, a fim de documentar eventuais indícios de tortura ou maus tratos. § 2º Nos casos em que o magistrado, após análise do auto de prisão em flagrante e do exame de corpo de delito, vislumbrar indícios de ocorrência de tortura ou maus tratos ou entender necessário entrevistar a pessoa presa, poderá fazê-lo, excepcionalmente, por meios telemáticos. § 3º Nas hipóteses em que se mostre viável a realização de audiências de custódia durante o período de restrição sanitária relacionado com a pandemia do Covid-19, deverão ser observadas as seguintes medidas adicionais às já contempladas na Resolução CNJ nº 213/2015: I – atendimento prévio à audiência de custódia por equipe psicossocial e de saúde para a identificação de sintomas e perfis de risco, a fim de fornecer subsídios para a decisão judicial e adoção de encaminhamentos de saúde necessários; II – na entrevista à pessoa presa, prevista no art. 8º da Resolução CNJ nº 213/2015, o magistrado indagará sobre eventuais sintomas típicos da Covid-19, assim como a exposição a fatores de risco, como viagens ao exterior, contato com pessoas contaminadas ou suspeitas, entre outros; III – quando for apresentada pessoa presa com os sintomas associados à Covid-19, deverão ser adotados os seguintes procedimentos: a) disponibilização, de imediato, de máscara cirúrgica à pessoa; b) adoção dos procedimentos determinados nos protocolos de ação instituídos pelo sistema público de saúde; c) em caso de conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, encaminhamento à rede de saúde para diagnóstico, comunicação e atendimento previamente ao ingresso no estabelecimento prisional, notificando-se posteriormente o juízo competente para o julgamento do processo.

[2] O documento pode ser acessado no seguinte endereço: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246>

Antonio Evangelista de Souza Netto
Antonio Evangelista de Souza Netto
Juiz de Direito Titular de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP.

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