STF faz descriminalizar aborto: é isso mesmo?

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O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que aborto nos primeiro três meses de gestação não é aborto (AC 134.306/RJ), ou seja, não é crime. Assim é palco de mais uma inconsequente decisão, porque não debruçou-se adequadamente nos seus efeitos, tema este com importância tamanha que justificaria até mesmo uma consulta a opinião popular e, pior, cujo o pano de fundo principal é a opinião pessoal de um ministro. Se lembrarmos bem, no emblemático julgamento da ADPF 54, que decidiu sobre a tipificação do aborto dos anencéfalos, teve a participação do ministro Luís Roberto Barroso que funcionou naquele julgamento como advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde e sustentou sua defesa com os mesmos fundamentos utilizados agora na decisão que considerou não tipificado como aborto a interrupção da gestação nos três primeiros meses de gestação.

Relembrando a referida ADPF, o então advogado sustentou em seus argumentos que a interrupção da gestação dos anencéfalos não poderia ser tipificada como crime de aborto porque ofenderia a autonomia da mulher, a liberalidade sexual e  reprodutiva da mulher, o direito à integridade física e psíquica e a igualdade de gêneros. Lembro, ainda, que a ADPF foi julgada procedente, mas por fundamentos absolutamente diversos daquele sustentado pelo então advogado e atual Ministro. Na ocasião, o STF considerou que a interrupção da gestação do feto anencéfalo é sim tipificado como aborto, mas esta situação está compreendida como causa de excludente de ilicitude, porque a gestação é demasiadamente perigosa à saúde da gestante.

Naquele julgamento, levou-se em consideração um questionamento fundamental para balizar a decisão, dúvida esta simplesmente ignorada neste julgado: qual é o início da vida humana? Naquele brilhante julgamento, também de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o Acórdão em suas 423 páginas levou em consideração a opinião de profissionais especialistas multidisciplinares, médicos, biólogos e outros, com o propósito de ter o cuidado ao decidir sobre possível autorização para a interrupção de uma vida humana.

Como nos ensina Miguel Reale[1], cada direito da personalidade corresponde a um valor fundamental, a começar com o próprio corpo, condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos. E tal valor fundamental, original e precípuo ao direito da personalidade pressupõe, especialmente, nossas estruturas celulares, nossos gametas que carregam o código genético exclusivo de cada individuo, nossa capacidade de gerarmos outro indivíduo, único e autêntico.

Dispõe o artigo 2º do Código Civil que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Contudo, a mais autorizada doutrina, teoria reconhecida pela ADPF 54, reconhece que o direito de personalidade não se inicia apenas com o nascimento com vida, mas muito antes. Ainda, decorre o entendimento de que o embrião formado intrauterino se implantará na cavidade interna do útero (endométrio) ocasião em que receberá o suporte para a vida da gestante, sendo este o momento mais adequado para se falar em início da vida e do direito da personalidade. Trata-se da teoria da Nidação.

Teorias religiosas e filosóficas, da mesma sorte, cada qual com sua fé e doutrina, reconhecem que a vida não tem início com o nascimento com vida.

A partir da teoria concepcionalista e da nidação, Maria Helena Diniz propôs que o nascituro teria o direito da personalidade formal, compreendendo todo o acervo daquele direito, salvo o aspecto patrimonial, dependente da condição implementada com o nascimento com vida, só então haveria o direito da personalidade material, incluindo os direitos patrimoniais.

Estou filiado à esta teoria, porque nascituro sem Direito de Personalidade (ainda que formal) não é pessoa humana. Se não é pessoa humana, é o que senão singela COISA (na acepção jurídica da palavra)!

Outras teorias sobre o início da vida são ponderadas e discutidas pela doutrina, como a teoria Natalista, que sustenta que o direito a personalidade só se iniciaria com o nascimento com vida; teoria Condicional, onde o direito da personalidade iniciaria com a fecundação. Já a comunidade científica identificou várias teorias para o início da vida, como: Visão Genética, sustentando que a vida humana começa quando, na fertilização do óvulo pelo espermatozoide, ocorre a combinação dos genes dos pais, formando um indivíduo geneticamente único; Visão Embrionária, que defende que a vida começa após 12 dias da fecundação, quando o embrião ainda é capaz de se dividir o formar duas ou mais pessoas (a partir desta ideia que se justifica o uso da “pílula do dia seguinte”); Visão Neurológica, a vida começa na 8ª semana, quando há o início das atividades cerebrais (esta teoria defende que a vida começa da mesma forma que termina – com a morte cerebral), entre outras.

Contudo, nenhuma teoria justifica o início da vida com 3 meses de gestação. Ao contrário, com 12 semanas já há desenvolvimento do feto, com aumento das atividades cerebrais, esqueleto, dedos das mãos e dos pés.

Portanto, conclui-se que a decisão ignorou as teorias sobre o início da vida, fundamentais para sustentar tal decisão. Assim, se concluirmos para o início da vida e do direito da personalidade em momento anterior aos infundados 3 meses, teremos direitos colidentes, a saber: a autonomia da mulher e a liberalidade sexual e  reprodutiva da mulher (fundamento do Ministro), versus o direito da vida do nascituro, pessoa humana indefesa? Deixo o leitor ponderar qual direito julga mais valioso e refletir sobre o significado desta decisão do STF.

Nota de fim

[1] http://www.miguelreale.com.br/artigos/dirpers.htm [acesso em 10.9.2016]

Danilo Montemurro
Danilo Montemurro
Sócio do escritório Berthe e Montemurro Advogados, especializado em Direito de Família e Sucessões, pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC de SP e mestrando pela Faculdade Autônoma de Direito.

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