Abril, 2021 – Há mais de um ano o mundo sofre com os impactos causados pela pandemia do novo coronavírus, e é inegável que a doença gerou reflexos catastróficos, atingindo financeiramente muitas pessoas e empresas.
Como é de conhecimento comum, a medida mais implementada de contenção da doença foi o isolamento social, que culminou na paralização temporária de diversos setores da economia, possuindo autorização para funcionar apenas as atividades consideradas essenciais: mercados, padarias, açougues, bares e restaurantes, sendo vedado, contudo, o consumo no local, hospitais, clínicas médicas e odontológicas, farmácias, estabelecimentos de saúde animal e ramo de abastecimento e logística.
Por sua vez, o varejo, que representa maior porcentagem no comércio, possui restrição de funcionamento. Em que pese a possibilidade de vendas online, a impossibilidade de atendimento direto ao público afeta sobremaneira o faturamento desse ramo.
E, pensando nas empresas estabelecidas em shoppings centers, o prejuízo é ainda maior. Isso porque os contratos de locação nesses empreendimentos possuem características diferentes das demais locações comerciais.
Em uma locação em shopping center o lojista não se obriga tão somente a pagar o aluguel. Esse tipo de contrato prevê mais de uma remuneração ao empreendedor do shopping.
Apenas o aluguel, na maioria desses contratos, possui duas formas de ser calculado: há o aluguel fixo, que já vem estipulado em contrato, e há também o aluguel percentual. Este é auferido com base no faturamento que o lojista obteve no mês. Não é devido o pagamento dos dois cumulativamente, vez que ensejaria num alto valor, mas o lojista, se obter faturamento superior ao limite previsto no contrato, deverá pagar o aluguel percentual e, em contrapartida, se o faturamento for igual ou inferior ao limite, será devido o valor de aluguel fixo previamente pactuado.
Ainda sobre o aluguel, é muito habitual nesses contratos de locação uma cláusula que preveja meses em que o aluguel será pago em dobro, como por exemplo, em dezembro, visto que há aumento no número de vendas em razão do Natal, podendo ocorrer, ainda, em maio e agosto por conta do Dia das Mães e dos Pais.
Essa modalidade de locação prevê também o pagamento das despesas comuns, como se fosse o condomínio do shopping, que são rateadas entre todos os lojistas na proporção da área locada.
Por fim, é muito comum também a cobrança do chamado fundo de promoção, que consiste em uma contribuição dos lojistas para um fundo que se destina à imagem do shopping.
Como pode-se notar, são diversas as contraprestações devidas pelo lojista ao empreendedor do shopping, o que nos leva a indagar: como os lojistas conseguirão arcar com tais despesas enquanto perdurar a determinação de fechamento dos shoppings center? É possível uma renegociação de tais cláusulas?
No âmbito jurídico é amplamente conhecida a expressão “o contrato faz lei entre as partes”, esta derivada do princípio da pacta sunt servanda, dando a entender que as cláusulas contratuais não podem ser modificadas e que os contratantes devem se ater a elas.
Entretanto, quando na execução do contrato ocorrer situações que tornem impossíveis ou gerem excessiva onerosidade para o cumprimento da obrigação por um contraente face ao outro e não havendo acordo extrajudicial entre as partes, é admitida a intervenção do Poder Judiciário para restabelecer a equidade entre as partes perante a obrigação contratada, fazendo-se respeitar, assim, um dos princípios balizadores do direito contratual, que é o princípio da igualdade.
Assim, para possibilitar a revisão contratual, aplica-se a chamada Teoria da Imprevisão, a qual encontra-se prevista em nosso Código Civil, no artigo 317:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Sobre mencionada teoria, ensina a ilustre Maria Helena Diniz:
(…) o órgão judicante deverá, para lhe dar ganho de causa, apurar rigorosamente a ocorrência dos seguintes requisitos: a) vigência de um contrato comutativo de execução continuada; b) alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do benefício exagerado para o outro; c) imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação, pois é necessário que as partes, quando celebram o contrato, não possam ter previsto esse evento anormal, isto é, que está fora do curso habitual das coisas. (Curso de Direito Civil brasileiro. Teoria Geral das obrigações contratuais e extracontratuais. 19ª ed., v.3. p. 162).
Sendo assim, quando se tratar de um contrato que preveja execução continuada, ou seja, que irá se estender no tempo, ocorrendo situações que, quando da assinatura, eram impossíveis de serem previstas pelos contratantes e que afete negativamente a capacidade econômica de um destes, o contrato poderá ser revisto, a fim de que se evite grandes prejuízos ao contratante afetado.
A Justiça paulista há anos consolidou a aplicação da Teoria da Imprevisão para admitir revisões contratuais:
“A teoria da imprevisão decorre da constatação de que o contrato, celebrado para ser respeitado e cumprido, segundo as mesmas condições existentes no momento da celebração, pode ser alterado, excepcionalmente, se ocorrerem fatos supervenientes imprevisíveis que estabeleçam o desequilíbrio entre as partes, onerando sobremaneira uma delas, com proveito indevido da outra. Nesta hipótese, incide a cláusula rebus sic stantibus, mediante a qual se retorna ao estado de equilíbrio anterior, afastando-se qualquer hipótese de supremacia e de vantagem indevida de uma das partes, em desfavor da outra que ficaria prejudicada. Segundo a doutrina de Orlando Gomes, “(…) quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando consequências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito. Em síntese apertada: ocorrendo anormalidade da álea que todo contrato dependente do futuro encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações”. Para Cunha Gonçalves, há como que um defeito do ato jurídico (segundo o conceito do Direito Brasileiro): “(…) é tão injusto e imoral aproveitar um contraente, excessivamente, de circunstâncias que para o outro ou para ambos eram imprevisíveis no momento do contrato. (…)”. (TJSP; Apelação Com Revisão 9142407-42.2001.8.26.0000; Relator (a): Carvalho Viana; Órgão Julgador: 3ª Câmara (Extinto 1° TAC); Foro de São Caetano do Sul – 1ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 19/03/2002; Data de Registro: 15/05/2002).
Considerando tais premissas, no que concerne aos contratos de locação em shoppings centers podemos concluir que: (i) são contratos que preveem vigência extensa; (ii) a pandemia causada pelo novo coronavírus era imprevisível, tendo causado efeitos em escala mundial; e (iii) é inegável que as medidas implementadas para controle da doença afetaram e continuam afetando de maneira absurda o faturamento dos lojistas, alterando a capacidade econômica destes.
Sendo assim, quando lojista e empreendedor do shopping não chegarem a um acordo, não só é completamente admissível a revisão destes contratos junto ao Poder Judiciário como é o que vem ocorrendo ao longo desse um ano de pandemia.
Os tribunais de Justiça pátrios, pautados pela Teoria da Imprevisão, têm admitido descontos e, em alguns casos, afastado algumas das cobranças previstas em contrato, como podemos vislumbrar no julgado proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual determinou a prevalência do aluguel percentual e afastou a cobrança do aluguel mínimo e fundo de promoção:
Ação cautelar antecedente cumulada com pedido de inexigibilidade de valores. Locação em shopping center. Locatária que exerce atividade no ramo de moda feminina. Fechamento dos shoppings centers em razão da quarentena decretada por força da pandemia de COVID-19. Motivo imprevisível disposto no art. 317 do Código Civil que, no caso concreto, permite a readequação da base negocial a partir da reabertura dos shoppings. Desconto voluntário oferecido pelas rés, a partir do mês da retomada parcial das atividades, que não se mostrou suficiente para restabelecer o equilíbrio contratual. Se o contrato de locação prevê a figura do aluguel percentual, entende-se viável que ele seja utilizado como um parâmetro alternativo que reflete, de forma concreta, o compartilhamento dos prejuízos decorrentes da restrição de atividades comerciais impostas pelo Poder Público, ao mesmo tempo em que se prioriza a manutenção do vínculo contratual. Medida excepcional que se justifica até que cessem os efeitos do Decreto Legislativo nº 6/2020, que reconheceu o estado de calamidade pública em razão da pandemia. Fundo de Promoção e Propaganda que não revela utilidade e eficácia concreta ao lojista durante este período. Aluguéis mínimos e Fundo de Promoção vencidos e vincendos referentes ao mesmo período de vigência da revisão temporária do contrato nos moldes delineados que devem, por conseguinte, ser declarados inexigíveis. Sentença de procedência mantida, com acréscimos na fundamentação. Recurso improvido. (TJSP; Apelação Cível 1057666-35.2020.8.26.0100; Relator (a): Ruy Coppola; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 28ª Vara Cível; Data do Julgamento:
11/02/2021; Data de Registro: 11/02/2021). (grifos nossos)
Analisando-se a jurisprudência dos demais tribunais de Justiça, em que pese uma divisão entre os entendimentos, verificou-se uma tendência pró-lojistas, com a concessão de descontos nos aluguéis que atingem até 50% do valor previsto no contrato.
Entretanto, é necessário frisar que não basta a mera alegação da pandemia para a revisão contratual. Em conjunto ao pedido é imprescindível a apresentação de documentos que demonstrem a real alteração da capacidade econômica do lojista, tendo em vista ser essa um dos requisitos da Teoria da Imprevisão, o que enseja na análise do Poder Judiciário e restabelecimento do equilíbrio contratual entre locatários e locadores.
(*) Thaís Graziella Souza Barbosa é advogada no escritório Granito, Boneli e Andery Advogados (GBA Advogados Associados), especialista em Direito Processual Civil pela PUC-Campinas.
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