Estudiosa do assunto há mais de dez anos, a advogada Flávia Ribeiro defende que modelo já adotado em outros países poderá desafogar a atuação dos juízes, a quem cabe atualmente uma atuação direta na execução
A desjudicialização da execução civil, dita assim de supetão, pode parecer um bicho de sete cabeças, certo? E, de alguma forma, se olharmos para o Judiciário brasileiro, é. De 100 processos de execução, apenas 15% deles são baixados definitivamente. Isso porque cabe aos juízes também a tarefa de invocar as partes, entre outras tarefas, todas hercúleas, daí o baixíssimo índice de satisfação.
Mestre e doutoranda em Processo Civil, a advogada Flávia Ribeiro se debruça sobre o tema desde 2008 e vem trabalhando não apenas na publicação de sua tese por uma nova editora, o que pode ser concluído até novembro – a mesma está esgotada no mercado – como também num anteprojeto a ser levado ao Senado Federal que visa entregar a outros atores a execução civil, como já ocorre em outros países. Abaixo a íntegra da entrevista.
Juristas – Por que a senhora voltou sua pesquisa à execução civil no Brasil?
Flávia Ribeiro – Nos meus estudos de mestrado, concluído em 2008, a Lei 11. 232/2005 – que estabeleceu o sincretismo processual, ou seja, o cumprimento de sentença em continuação ao processo de conhecimento – era nova e merecia aprofundamento. Era um tema de eleição óbvia. Pesquisando direito estrangeiro, tomei conhecimento que a desjudicialização da execução era uma tendência, principalmente na Europa, até mesmo em razão da Recomendação nº 17 de 9.9.2003 do Conselho da Comunidade Europeia, que orientava os Estados-membros a promoverem a eficácia da execução por meio de agentes de execução.
Somado a esse fato, havia outra novidade: o início dos estudos estatísticos de desempenho do Poder Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2004 (Justiça em Números), que demonstrava um verdadeiro colapso no processo executivo brasileiro: taxa de congestionamento média de 85%, ou seja, de cada 100 processos executivos em trâmite apenas 15% eram efetivos, com satisfação da obrigação e baixa definitiva.
Esses fatos me levaram a emendar mestrado e doutorado, me aprofundar nos estudos e propor a desjudicialização da execução de lege ferenda em 2012. Hoje realizo um pós-doutoramento em Lisboa para avaliação dos 15 anos da reforma executiva daquele país, que desjudicializou completamente a execução e é excelente exemplo a ser seguido.
Juristas – Houve quem acreditasse que a implantação do processo eletrônico poderia ajudar a tornar célere o Judiciário brasileiro. Na sua avaliação isso ocorreu ou não foi suficiente dado o volume de demandas?
FR – O processo eletrônico contribuiu sim para a celeridade processual. Basta pensar em 10 anos atrás e se notará o quão pior era. Basta pensar nas tão temidas Cartas Precatórias, que demandavam anos do processo e hoje demandam meses e em alguns casos, semanas. Não há como negar avanço. Mas precisamos ir além, pois não foi e não será suficiente devido ao volume, a burocracia, ao custo para o Estado e baixo desempenho de todo o Poder Judiciário em si, conforme dados do próprio CNJ – “Justiça em Números”. Além do mais, no anteprojeto que estamos encampando a propósito da desjudicialização da execução civil, o processo eletrônico é ainda mais fortalecido, esperando-se a criação de um canal de comunicação direto entre o juiz e o agente de execução, cujo acesso seja estendido também às partes. Além disso, nesse tocante, o CNJ e os tribunais devem aprovar modelos de formulários eletrônicos para encaminhamento do requerimento executivo ao tabelião de protesto. O acesso on-line aos convênios e acordos de pesquisa de bens do devedor fixados entre o Poder Judiciário e o CNJ também deve ser disponibilizado ao agente de execução.
Juristas – Na sua visão, a execução civil corresponde ao maior gargalo do Judiciário atualmente?
FR – Segundo o “Justiça em Números” do CNJ, o gargalo do Judiciário é a execução de modo geral, em maior escala a fiscal, em segundo plano as demais – criminal, civil e trabalhista. Todo esse acervo corresponde a 54.2% dos processos em trâmite perante o Poder Judiciário hoje em dia. A execução tem um período de tramitação de 4 anos e 9 meses em média, enquanto o processo de conhecimento de 1 ano e 6 meses. Esses dados só confirmam a minha opinião no sentido de que a máquina judiciária não está funcionando e ao mesmo tempo despende enormes cifras de custo do Estado.
Se a execução é delegada para os tabelionatos de protestos, que já são afeitos aos títulos de crédito e já possuem expertise necessária da matéria, os juízes poderão dispensar maior tempo e energia nas demandas que exigem cognição, resolução de conflito e por fim e ao cabo, dizer o direito – sua atividade constitucionalmente prevista.
Juristas – Que experiências em voga lá fora poderiam ser aplicadas no Brasil em relação à execução civil? Lá fora ela já ocorre extrajudicialmente?
FR – Muitas experiências podem ser aplicadas, já que estamos muito atrasados nesse ponto. Eu posso afirmar com segurança que a grande maioria dos países realiza a execução extrajudicialmente, ainda que em diferentes escalas e métodos. No modelo alemão e italiano, o agente de execução é um funcionário público, mas autônomo e independente (Gvz e ufficiale giudiziario); no modelo francês, é um agente privado (Huissier); no modelo espanhol, apesar de ainda inserido dentro do Poder Judiciário, o secretário tem autonomia para todos os passos da execução – o juiz apenas recebe a petição inicial. Os embargos do devedor são mantidos em todos os casos. Há o modelo administrativo sueco, no qual o próprio Estado cobra as obrigações. Já nos EUA e Inglaterra, é o sheriff quem assume a tarefa. Mais recentemente, mas há 15 anos, Portugal desjudicializou a execução para o agente de execução, quem exerce a atividade de modo privado.
Juristas – A senhora defende a terceirização da execução civil no País? De que forma isso poderia contribuir para o Judiciário seja em termos econômicos ou em celeridade?
FR – Eu não defendo a terceirização, mas sim a delegação (art. 236 da CF) da função pública da execução dos títulos executivos – historicamente dos juízes – aos tabeliães de protestos. Eles são profissionais de direito devidamente concursados, cuja remuneração é realizada de acordo com os emolumentos fixados por lei; são fiscalizados pelo Poder Judiciário – CNJ e corregedorias estaduais.
A eficácia da satisfação do direito subjetivo reconhecido na sentença ou no título extrajudicial, em razoável tempo, importa em redução do risco da inadimplência e em estabilidade e segurança nas relações, e consequentemente, em diminuição do custo de crédito – taxa de juros e spreead, por exemplo. O ambiente favorável gera o aumento da circulação de riquezas, especialmente em razão da atração de investimento estrangeiro. Como resultado lógico desse circulo virtuoso, há melhora da economia do país.
Juristas – Em que pé estão as tratativas para levar ao Legislativo uma proposta para acelerar a execução civil no Brasil?
FR – A senadora Soraya Thronicke (PSL-MS) já recebeu o anteprojeto de lei, já publicou nas suas redes sociais que vai encampar a ideia, mas está analisando o documento. Ela circulou a minuta para órgãos e entidades diversas, que pediram tempo para observações. Nesse meio tempo foi criada uma comissão, presidida pelo desembargador Joel Dias Figueira Junior e em conjunto reformulamos o anteprojeto para torná-lo mais simples, inclusive em termos de tramitação. Estamos aguardando agenda da senadora para visita o mais breve possível. Estamos buscando apoio e já temos alguns conselhos e institutos fortes alinhados para prestar apoio público assim que houver protocolo.