Análise preliminar do Decreto nº 11.700/23 que instituiu o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana e o Grupo de Trabalho do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana

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Análise preliminar do Decreto nº 11.700/23 que instituiu o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana e o Grupo de Trabalho do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana | Juristas
Alves Negrão Santos – Advgada

O Decreto nº 11.700 de 12 de setembro de 2023 instituiu o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana e o Grupo de Trabalho do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. A pretensão da instituição de tal medida é orientada não apenas pela garantia de acesso, segurança alimentar e nutricional, mas também visa repensar o espaço urbano, instituir práticas de preservação do meio ambiente, proporcionar melhores incentivos socioeconômicos para a agricultura familiar e tudo isso será orientado pela agroecologia.

Ainda que não exista uma definição única para o que deve ser considerado agricultura urbana e periurbana, o Decreto em questão traz no artigo 2º orientando que agricultura urbana e periurbana compreendem atividades agrícolas e as pequenas criações de animais desenvolvidas nas áreas urbanas ou nas regiões periurbanas, que contemple: I – as etapas de produção, processamento, distribuição e comercialização de alimentos, de plantas medicinais, de plantas aromáticas e ornamentais, de fitoterápicos e de insumos, para o autoconsumo ou a comercialização; e II – os processos de gestão de resíduos orgânicos.

O enquadramento não se limita ao espaço urbano, isto é, não basta considerar o fato localidade para ser compreendida enquanto agricultura urbana e periurbana,devem contemplar os dois outros incisos. Quanto a isso, cabe destacar que, a agricultura nessas regiões tem sido largamente aplicada pelo mundo, pois oferece valorização de espaços urbanos, distribuição de alimentos, e inclusive repensa a cadeia de produção de resíduos, ajudando assim na gestão de recursos naturais e na preservação do meio ambiente.

Inclusive, a agricultura urbana e periurbana se mostrou um caminho interessante para mitigar os efeitos das desigualdades sociais durante a pandemia do Covid-19 na cidade de São Paulo.

Circuitos curtos de distribuição de alimentos formados em torno de famílias de agricultores em grandes cidades como São Paulo alcançaram dois feitos: de um lado, permitiram a manutenção da renda de pequenos produtores em momento de retração no comércio; de outro, garantiram o acesso a comida saudável para famílias em situação de vulnerabilidade. (Cymbaluk, 2021)

Nessa perspectiva, a política pública foi pensada a partir da integração de diferentes princípios constitucionais e direitos humanos, sendo eles elencados no artigo 4º do Decreto, quais sejam: I – o direito humano à alimentação adequada; II – o direito à saúde; III – o direito à cidade; IV – a participação popular e social; V – a economia popular e solidária; VI – o cooperativismo e o associativismo; VII – a agroecologia e a produção orgânica; VIII – os sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis; IX – os circuitos curtos de comercialização; X – o uso sustentável do solo, da água, dos ecossistemas e da agro sociobiodiversidade; XI – o respeito à diversidade socioambiental e cultural; XII – a alimentação como prática cultural e social; e XIII – a bioeconomia.

É importante frisar que, a realização de todos esses princípios norteadores está assentada e se deve a transição agroecológica que se objetiva. Nesse sentido, entende-se por agroecologia:

Sistemas de produção agrícola, além de processos ecológicos, envolvem também processos sociais, sendo a agricultura o resultado da co-evolução de sistemas naturais e sociais. É com esse entendimento que a agroecologia, na busca de agroecossistemas sustentáveis, procura estabelecer a base científica para uma agricultura que tenha como princípios básicos a menor dependência possível de insumos externos à unidade de produção agrícola e a conservação dos recursos naturais. Para isto, os sistemas agroecológicos procuram maximizar a reciclagem de energia e nutrientes, como forma de minimizar a perda destes recursos durante os processos produtivos. (Aquino e Assis, p.138, 2007)

Assim, a agroecologia não se resume a um manejo mais sustentável do solo, mas também considera os produtores e consumidores que integram o processo de produção e distribuição. Em linhas gerais há uma integração entre o âmbito social, econômico, sustentabilidade, direito à saúde, soberania alimentar e direito à cidade. Ainda, o decreto compreende as práticas agrícolas e de alimentação enquanto cultura, e não meras práticas sociais de sobrevivência.

Face ao exposto, o Decreto elenca no artigo 5ª os objetivos da política, cabe destacar alguns incisos. O inciso VI detalha o que se objetiva enquanto direito à cidade, dispondo que a política torna viável a concepção das cidades enquanto espaços mais resilientes às mudanças climáticas, de modo a combater o racismo ambiental, isto é, reconhece a urgência da crise climática assim como compreende qual a parcela da sociedade é mais afetada por seus efeitos.

Importante frisar que, a temática trazida no inciso foi pauta da COP26, que tinha como objetivo debater a destruição ambiental e crise climática mundial, considerando também a intersecção destas com questões raciais. Ainda, nesse ambiente o inciso X estabelece o combate à insegurança alimentar decorrente das desigualdades sociais relacionadas à raça, etnia e gênero, bem como o artigo IX destaca a atuação de mulheres na agricultura.

Dessa forma, é evidente que o Decreto compreende que as injustiças ambientais e climáticas, ainda que produzam efeitos gerais, afetam de forma mais contundente determinada parcela da população. Assim, como estipula que a insegurança alimentar não está apenas ligada a desigualdade de classe social, mas também as desigualdades de gênero, raça e etnia.

No artigo 6º há estipulação das linhas de ação, dentre elas é possível destacar no âmbito da preservação do meio ambiente e desenvolvimento sustentável, os seguintes incisos: III -gestão de resíduos sólidos orgânicos ao longo da cadeia produtiva; proteção e conservação do meio ambiente, da biodiversidade e dos mananciais para a promoção da qualidade ambiental em áreas urbanas e periurbanas; VIII – recuperação de áreas degradadas e manutenção e manejo sustentável de áreas verdes integradas à produção de alimentos; IX – promoção de tecnologias de reuso de água, de captação de água de chuva e de revitalização de rios, córregos e nascentes urbanas.

Ainda, os incisos IV, X e XI estipulam diretrizes que buscam proporcionar a melhor educação e formação da população quanto à alimentação e questões ambientais. Assim como, prevê o incentivo a pesquisa e a ciência, buscando o desenvolvimento das práticas agrícolas, que como colocado no artigo V tem como forte viés a assistência e o fortalecimento das agricultoras urbanas e periurbanas.

Portanto, fica evidente que o Decreto nº 11.700 de 12 de setembro de 2023 compreende a instituição do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana enquanto uma política que engloba diferentes faces da sociedade, isto é, que é capaz de repensar o espaço urbano, a preservação do meio ambiente, o desenvolvimento sustentável, a garantia a alimentação saudável e o empoderamento econômico da agricultura familiar, promovendo também maior cooperação social.

Em suma, é possível ver que o modelo pensado pelo Decreto a partir da agroecologia está muito avançado no entendimento de que as questões acima elencadas não estão descoladas dos aspectos sociais. Ou seja, há um reconhecimento e incentivo a implementação de uma política que compreende as desigualdades sociais de gênero, raça e etnia enquanto aspectos centrais para se pensar políticas públicas relacionadas à alimentação, direito à cidade e justiça ambiental e climática.

*Samara Alves Negrão Santos é advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Graduanda em Ciências Sociais com ênfase em Sociologia, Direito Ambiental e Regulatório, Meio Ambiente e Sustentabilidade do escritório Renata Franco, Sociedade de Advogados.

Bibliografia
AQUINO, A. M. de; ASSIS, R. L. de. agricultura orgânica em áreas urbanas e periurbanas com base na agroecológica. Ambiente & Sociedade. v. X, n. 1. p. 137-150. Campinas. jan.-jun. 2007. (Acessado em 15 de setembro de 2023)
BRASIL. Decreto nº 11700, de 12 de setembro de 2023. Institui o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana e o Grupo de Trabalho do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11700.htm (Acessado em 14 de setembro de 2023)
CYMBALUK, F. A agricultura urbana e periurbana explicada em 12 questões. Nexo jornal [online], 28 de dezembro de 2021. Perguntas que a ciência já respondeu. Disponível em https://pp.nexojornal.com.br/perguntas-que-a-ciencia-ja-respondeu/2021/A-agricultura-urbana-e-periurbana-explicada-em-12-quest%C3%B5es (Acessado em 14 de setembro de 2023)
NEIVA, J. COP26: porque é urgente considerar o racismo ambiental e climático. El País [online], 21 de outubro de 2021. Opinião. Disponível em https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-10-27/cop26-por-que-e-urgente-considerar-o-racismo-ambiental-e-climatico.html?event_log=fa (Acessado em 15 de setembro de 2023)
GOVERNO FEDERAL CRIA O PROGRAMA NACIONAL DE AGRICULTURA URBANA E PERIURBANA. Governo Federal. Disponível em https://www.gov.br/mda/pt-br/governo-federal-cria-o-programa-nacional-de-agricultura-urbana-e-periurbana (Acessado em 14 de setembro de 2023).


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