Decretos Municipais e sua imprestabilidade na Esfera Penal

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Normas municipais de cunho estritamente local não podem servir como complemento ao art. 268 do Código Penal.

Lei Maria da Penha
Créditos: juststock / iStock

Inicialmente é importante mencionar que esta temática foi amplamente tratada em artigo científico que foi submetido ao VI CONLUBRADEC (Congresso Luso Brasileiro de Direito Empresarial e Cidadania).

O PROBLEMA ANALISADO

Chamou a atenção do autor a profusão de normas municipais criadas para disciplinar assuntos de defesa da saúde pública, em especial regras atinentes à vigilância sanitária e isolamento social, por isso, baseado nas divergências legislativas havidas entre alguns Municípios do litoral do Estado do Paraná que instigou a pesquisa jurídica.

O problema central do estudo visa esclarecer se normas municipais que não guardam relação de homogeneidade diante de situações análogas podem ou não ser utilizadas para completar o tipo penal em branco emoldurado no art. 268 do Código Penal?

Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Ainda, diante dos casos concretos estudados foi possível analisar a finalidade (teleologia) empregada pelo legislador ordinário ao construir o tipo penal em apreço, resguardando, pois, o critério de universalidade da norma a ser utilizada como complemento do referido tipo penal.

A VERDADEIRA INTENÇÃO DO LEGISLADOR CONSTITUINTE

Foi possível concluir que não houve intenção do legislador constituinte permitir, baseado na autorização prevista no art. 30 da Constituição Federal, que os Prefeitos de cada Município brasileiro criassem regras próprias – muitas delas sem qualquer fundamento técnico – no campo das medidas sanitárias preventivas e de isolamento social, que sejam capazes de completar a norma penal em branco prevista no art. 268 do Código Penal.

Interpretar de forma avessa as assertivas acima significará permitir que condutas sejam criminalizadas numa cidade e que na cidade vizinha a conduta seja considerada lícita ou adstrita a uma mera punição pecuniária na esfera administrativa. (Ex: surfistas que foram presos por praticar individualmente o esporte na ocasião que o acesso às praias estava proibido).

É exatamente isso que está ocorrendo por conta da Pandemia do Covid-19, pois inúmeros Municípios brasileiros criaram regras sanitárias e de isolamento social completamente discrepantes, mesmo vivenciando situações semelhantes a de outros Municípios de uma mesma região.

Perdeu-se claramente a noção de intervenção mínima do direito penal como ultima ratio para pacificação das relações sociais, ao passo que outorgou-se aos Prefeitos Municipais um instrumento de manipulação do Direito Penal para atender casos específicos, numa clara tentativa de socorrer o Direito Administrativo e a sua inocuidade diante do caso concreto.

O CASO CONCRETO NO ESTADO DO PARANÁ

Sistematicamente não há como admitir, partindo-se do art. 24, XII e do art. 30 da Constituição Federal, ainda, pelo que está alinhavado no art. 13, inciso XII da Constituição do Estado do Paraná, que prefeitos estejam legitimados a criar regras próprias para completar o tipo penal em voga, pois a própria norma geral editada pelo Governo Federal (Lei nº. 13.979/20) deixa evidente que regulamentação desta lei pelos demais entes federados restringir-se-á às medidas de cunho administrativo, com destaque para a definição de penalidades pecuniárias e restrições administrativas.

Apesar da decisão liminar do Supremo Tribunal Federal na ADIN nº. 6.343/DF, que permite aos Estados, Distrito Federal e Municípios a tomada de medidas administrativas e normativas sobre medidas sanitárias preventivas e regras de isolamento social, não é possível admitir que estas normas locais, sui generis, possam servir como elementos de composição do art. 268 do Código Penal, pois lhes faltaria a finalidade teleológica imposta pelo legislador penal quando edificou o tipo penal ilustrado.

Certamente que nos casos analisados a finalidade do legislador ordinário ao edificar o tipo penal em comento não foi de criar um crime diferente para cada unidade da federação, em que pese o fato de que o núcleo duro desta norma penal em branco (art. 268 do CP) é o mesmo em todo o território nacional, porém, a complementação normativa sobre medidas sanitárias preventivas acerca de regras de isolamento social têm oscilado de forma grotesca em vários Municípios brasileiros, conforme demonstrado nos casos concretos cotejados nesta pesquisa.

A produção desenfreada de normas administrativas peculiares em vários entes da federação, além do fato de muitas delas não respeitarem a necessária tecnicidade e especificidade, desnaturam o caráter de universalidade e certamente de homogeneidade exigido pela norma penal a ser complementada, ou seja, não há considerações de afetação geral.

Numa visão intermediária, compreendendo a noção constitucional acerca da competência concorrente em termos de produção legislativa em matéria de defesa da saúde, é razoável permitir que Estados ditem normas complementares à legislação federal, atendendo as situações pontuais em determinada região, fixando normas sanitárias preventivas e de isolamento social mais restritivas que possam ser utilizadas para completar o tipo penal analisado, desde que fundadas em critérios técnicos palpáveis e eficazes.

Em que pese a existência de posicionamentos jurídicos divergentes, parte-se da premissa que o art. 24, inciso XII da Constituição Federal e, particularmente, valendo-se do art. 13, inciso XII da Constituição do Estado do Paraná como parâmetro, é possível afirmar que a competência legislativa concorrente em matéria de defesa da saúde cabe precipuamente à União e residualmente aos Estados.

Ainda, destacando o estudo feito no Estado do Paraná, é permitido afirmar que não se vislumbra na legislação paranaense qualquer dispositivo que permita aos Municípios legislar nesta seara para produzir normas locais com força para completar o tipo penal previsto no art. 268 do Código Penal.

CONCLUSÃO

Partindo da premissa maior acerca da competência para legislar em matéria de defesa da saúde circunscrita no art. 24, inciso XII da Constituição Federal e das premissas menores insculpidas na Constituição do Estado do Paraná e em leis e decretos estaduais e municipais, conclui-se que a normas municipais que não guardam relação de homogeneidade com a legislação federal e estadual não podem ser utilizadas para complementação do tipo penal em branco analisado, pois descumpririam a ideia de universalidade e coerência do ordenamento jurídico penal.

Portanto, prisões e lavratura de Termos Circunstanciados que se deram exclusivamente por violação a Decretos Municipais, que não guardam relação de universalidade ou respaldo em legislação federal ou estadual, mostram-se indevidas, porém, eventuais punições administrativas, como multas, podem permanecer hígidas.

REFERÊNCIAS

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SILVA SÁNCHEZ, José-María. La Expansión de Derecho Penal. Aspectos de la política criminal em las sociedades postindustriales. 2 ed. Madrid: Civitas Ediciones, 2001.

Vídeo de autoria do jurista Jean Colbert Dias sobre este assunto:

Jean Colbert Dias
Jean Colbert Dias
Advogado, sócio do escritório Dias & Ferreira Advogados Associados. Professor de Direito Penal e Prática Profissional do Unicesumar. Doutorando e Mestre em Direito Empresarial e Cidadania, Pós-graduado em Direito Criminal, Processo Civil e Direito Civil. Autor de livros e diversos artigos jurídicos. Site: https://diasferreiraadvogados.com.br/ email: [email protected]

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