Por que criminalizar condutas relacionadas ao pagamento de tributos?
Por meio de uma leitura sistemática da Constituição da República podemos notar que não é possível interpretar o Direito Tributário como antigamente. Já não é mais adequado estudar e aplicar esse ramo do Direito como aquele direcionado ao interesse público concernente à arrecadação do Estado e, de outro lado, a proteção de garantias dos contribuintes.
Atualmente, interpreta-se a Constituição como um todo, na busca de concretizar os objetivos da Republica e seus valores fundamentais. Nesse sentido, o sistema tributário é o responsável por custear todo o sistema de direitos e garantias fundamentais positivados no texto constitucional.
Em que pese a divisão doutrinária no sentido de que alguns tributos são vinculados, ou possuem receita vinculada para custear determinada necessidade, isso pouco importa nos dias atuais, pois ao fim e ao cabo, este microssistema é o responsável por financiar todos os direitos fundamentais, sejam eles direitos de defesa, onde exige-se uma abstenção do poder estatal ou prestacionais, que necessitam de uma ação positiva do estado para concretizar algum direito.
A garantia desses direitos pressupõe uma atividade estatal explícita no sentido de implementar condições materiais para que eles possam gozar de ampla efetividade no plano fático, sejam de primeira, segunda ou terceira dimensão, Nesse sentido, sábia é a lição de Cass Sunstein: “todos os direitos têm custos”. Isso significa dizer que para o Estado garantir o direito de propriedade, não basta abster-se de invadi-la, deve, de outro lado, aparelhar todo um corpo de polícia administrativa e judiciária para garantir esse direito, o mesmo se diz quanto as liberdades públicas. Já no que concerne aos direitos fundamentais prestacionais, o custo é ainda mais elevado e exige uma escolha política para a alocação de recursos, considerando sempre a escassez.
Pois bem, como o sistema de direito tributário, em última instância, protege direitos fundamentais assegurados pelo constituinte, dotados de um regime diferenciado de proteção (art. 5º,§ 1º cc 60,§ 4º,IV), verifica-se a necessidade de tutelar os bens jurídicos inerentes a esse subsistema de forma mais intensa, ainda que fragmentária, sob pena de colapsar o regime de proteção e promoção dos já mencionados direitos fundamentais.
A ordem tributária tem como diferencial a figura do tributo, definido no art. 3.º do CTN como “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Entende-se, então que os tributos são fruto do poder de império do Estado e não de atividades negociais. No entanto, em que pese o poder de império, verifica-se que no Estado Democrático de Direito a relação de tributação não é simples relação de poder/sujeição e sim uma relação jurídica, pois está vinculada a normas cuja observância tanto pelos contribuintes como pelo Estado, é obrigatória. Dessa forma, torna-se ilegal qualquer postura do ente estatal que invada o patrimônio do contribuinte sem a observância do devido processo legal, o mesmo se aplica na seara penal, isto é, para que alguém seja punido exige-se o esgotamento do processo administrativo fiscal, bem como o transcurso do processo penal com todas as suas garantias.
A preocupação da doutrina e dos legisladores sempre foi intensa no sentido de reprimir adequadamente as condutas desviantes daqueles que buscam eximir-se do pagamento de tributos com base em meios fraudulentos e ilícitos, daí a necessidade de maior reprovabilidade social da conduta, sob ameaça de sanção, inerentes ao Direito Penal.
Crítica à criminalização
Mas será que há, de fato, tanto desvalor do resultado? Diante da alta carga tributária imposta no Brasil, sem que haja o respectivo retorno em serviços públicos de qualidade, como é possível reprovar aquele que não repassa parte de sua renda para o Estado? Seria o caso de incidência do princípio da adequação social? Esta é uma reflexão que está além do escopo do presente artigo, mas serve de norte interpretativo na seara do direito penal, principalmente quando analisamos a culpabilidade do delito (grau de reprovação pela conduta praticada) que reflete na fixação da pena.
Vale dizer que, sob nossa ótica, a proteção a esse bem jurídico e totalmente ineficaz, uma vez que a ameaça de sanção penal serve apenas para coagir o devedor/contribuinte a transferir seu patrimônio para o Estado.
Corroborando o alegado, é cediço no âmbito da doutrina e jurisprudência o teor da súmula vinculante 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
O que significa, basicamente, que o simples parcelamento do débito fiscal impede a propositura da ação penal relacionada aos crimes tributários, sendo esta a melhor opção defensiva para esse tipo de crime.
Análise do tipo penal incriminador
A lei 8.137/90, cuida, basicamente, dos crimes de sonegação fiscal, recolhimento irregular de tributos, declarações falsas fornecidas ao fisco e ocultação de patrimônio passível de tributação.
A conduta típica descrita no art. 1.º, caput, consiste em suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório. Nos cinco incisos seguintes são destacadas as várias modalidades pelas quais isso pode ocorrer, de forma que somente há crime contra a ordem tributária se o agente realiza qualquer das condutas mencionadas, com consciência e vontade dirigida à pratica da infração. Portanto, não é suficiente para a configuração da tipicidade a mera supressão ou redução do tributo, mas exige-se também que seja consequência de um comportamento anterior fraudulento.
Via de regra, os delitos contra a ordem tributária têm como substrato a fraude ou a falsidade, da burla tributária ou fiscal. Assim, não configura crime de sonegação fiscal quando das condutas descritas nesse artigo (incisos I a V) decorre apenas o diferimento, o adiamento da ocorrência total ou parcial do fato gerador do tributo. Essa protelação caracteriza tão somente um ilícito administrativo fiscal, mas não penal, uma vez que não foi empregado qualquer meio fraudulento.
A título exemplificativo, pode ser que a fraude ocorra mediante a inserção de elementos inexatos ou omissão de operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal. Inserir elementos inexatos é uma conduta de natureza comissiva e equivale a introduzir, incluir, colocar informações sobre fatos, em documento ou livro, que não correspondem à realidade (é a denominada “nota vazada”, que consiste no fato de que ocorre a venda e recebimento do valor total da mercadoria, mas, quando da emissão da nota, consta somente declaração de uma parte dos valores).
Essa modalidade é também denominada “meia nota”, porém, na realidade, nem sempre os valores são meio a meio, pois a percentagem declarada varia tanto para cima como para baixo dos 50%. Ocorre aqui uma dissonância entre o que realmente ocorreu – realidade fática (ou jurídica), – relacionada ao contribuinte, ou seja, a inexatidão decorre da não correspondência do lançado nos livros ou documentos e a realidade dos fatos, o que também caracteriza falsidade ideológica. Se a inexatidão decorre de erro ou equívoco sem intenção de fraudar o Fisco, é penalmente irrelevante.
Meios defensivos na prática de crimes tributários
Com já salientado, a melhor tática defensiva é o parcelamento ou pagamento do tributo, a qualquer tempo, pois extingue (no caso de pagamento) ou suspende (no caso de parcelamento) a punibilidade do crime, conforme súmula vinculante 24 do STF.
Por tratar-se de um crime empresarial, isto é cometido por sociedades empresárias, é necessário demonstrar o dolo do agente. Nos crimes de sonegação fiscal, a responsabilidade penal recai somente sobre os agentes que efetivamente empregam a fraude para fins de suprimir ou reduzir crédito tributário, uma vez que no Brasil inexiste responsabilidade penal objetiva (sem dolo ou culpa), por presunção, por fato praticado por terceiro ou por disposição estatutária e, nesse sentido, a responsabilização criminal não pode recair sobre uma determinada pessoa apenas por ela figurar nos estatutos sociais da empresa como gestora, sócia ou como responsável pelo recolhimento do tributo.
Destarte, em todas as tipificações, exige-se, para a caracterização do crime a vontade livre e consciente dirigida finalisticamente a prática da conduta tipificada (suprimir, reduzir, sonegar, etc.). Portanto, se a falta de recolhimento de tributo ou o recolhimento a menor se dá em virtude de culpa, como, por exemplo, interpretação equivocada de dispositivo legal, divergências no que diz respeito ao montante a ser recolhido ou efetiva ocorrência do fato gerador, não há crime.
Por fim, como se trata de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, cabível o acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do CPP.
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