Há algo de esquizofrênico no nosso universo jurídico

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Desempenha a atividade de Magistério na cadeira de Direito Penal em cursos de pós-graduação em diferentes instituições de ensino. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor do Curso CERS (Recife/PE). Mestre em Direito Penal e Doutor em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Membro da Comissão Estadual de Proteção e Direito dos Animais da OAB/PR. Membro da Comissão Estadual de Direitos Humanos da OAB/PR. Membro da Comissão Estadual de Advocacia Criminal da OAB/PR. Conselheiro Municipal de Direitos Humanos de Curitiba. Autor de vários livros e artigos científicos.
Adel El Tasse – Mestre em Direito Penal e Doutor em Direito Penal. Desempenha a atividade de Magistério na cadeira de Direito Penal em cursos de pós-graduação em diferentes instituições de ensino.

No livro “Nunca lhe prometi um jardim de rosas”, de Hannah Green (pseudônimo), o mundo conflitante da personagem principal, Deborah, é apresentado ao longo de seu internamento em um hospital psiquiátrico, ficando manifesta a forte oposição entre o mundo real e o mundo íntimo, no qual toda a realidade é ignorada.

Com efeito, no transtorno mental da esquizofrenia, ocorrem distorções de pensamento e percepção, passando a pessoa a vivenciar um mundo imaginário como se real fosse, trazendo seu universo ficcional íntimo para a exterioridade do ser, com isso, fazendo mitigar ou até desaparecer a realidade.

De alguma maneira, há uma aparente esquizofrenia rondando o cenário jurídico brasileiro, no qual notícias como a de um Promotor de Justiça que é ameaçado de ser punido por cumprir as decisões do Superior Tribunal de Justiça, geram sérias reflexões sobre o modelo resolutivo dos conflitos que temos construído.

O Brasil é sabidamente um País com população numericamente elevada, profundas diferenças sociais e, em consequência, alto nível de conflito, fazendo as instâncias judiciais experimentarem volume sempre expressivo e tendencialmente crescente de processos.

A verdade é que, se por um lado a existência de alta gama de conflitos na sociedade não é positiva, também o é que a busca do Judiciário para solucioná-los demonstra confiança da sociedade em suas instituições e força da estrutura republicana, não devendo, portanto, a judicialização de demandas pelas pessoas em geral, ser tida como necessariamente negativa.

Preocupante, porém, é a alta necessidade de judicialização de questões em que o poder público é parte, pois, demonstra a resistência do próprio Estado em implementar o direito, em cumprir as leis e observar as orientações advindas das decisões judiciais.

De qualquer sorte, o ponto fundamental a colocar em evidência, é a existência da alta demanda judicial no Brasil, em situação de difícil atendimento em prazo célere, o que deve produzir reflexão sobre os mecanismos que possibilitem evitar as demandas repetitivas e as reiterações de discussões já superadas pelos Tribunais Superiores.

Isso que pareceria evidente, como decorrência direta da realidade, tem sido objeto de permanente ataque no Brasil, como no exemplo do Promotor de Justiça ameaçado de punição por cumprir as decisões de Tribunal Superior, comportamento o qual deveria, em verdade, ser o padrão da atuação ministerial.

Igualmente, chama a atenção a quantidade de obstáculos gerados a que haja uniformidade da Jurisprudência, como as limitações continuamente construídas para bloquear o uso de reclamações aos Tribunais Superiores, assim como, a geração de empecilhos ao conhecimento dos Recursos Especiais, com base na divergência jurisprudencial.

A esse propósito, não se desconhece a chamada ‘jurisprudência defensiva”, pela qual se tenta exercer espécie de defesa do próprio Tribunal, impedindo grande parte dos recursos e demandas de serem analisadas pelos Tribunais Superiores.

Com efeito, os Tribunais Superiores não podem ser convertidos em instância recursal automática, exercendo, segundo o desenho constitucional, função diferente, no caso do Pretório Excelso a da interpretação e salvaguarda da Constituição Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a da uniformização da interpretação da lei federal.

Justamente a partir dessas funções constitucionais é que, ao passo que se entende a preocupação em bloquear o acesso indiscriminado às instâncias recursais excepcionais, também parece contraditório bloquear o emprego mais amplo das reclamações e do recurso com base na divergência jurisprudencial, em especial, quando presente divergência jurisprudencial notória, ou seja, o juízo ordinário se contrapõe à Jurisprudência de Tribunal Superior.

Melhor explicando, as reclamações podem ser importantes instrumentos de racionalização do sistema de justiça, uniformizando de forma mais célere a interpretação do direito, mas, quando constroem-se entendimentos, por exemplo, que só são cabíveis no próprio processo em que a decisão foi proferida, bem como, quando se limita sua legitimidade ativa a quem é a parte do processo originário no qual a decisão foi proferida, o que se faz é reduzir ao nível mínimo sua eficácia, quando em um sistema com o volume de demandas e excessiva exigência de produção de decisões pelo Poder Judiciário, a eficácia a ser conferida às reclamações deveria ser a máxima.

Em outras palavras, havendo entendimento consolidado em um determinado tema, por Tribunal Superior, deve sempre se possibilitar a reclamação quando as instâncias ordinárias descumprirem referido entendimento, permitindo, de forma imediata atingir a uniformização, diminuindo o volume excessivo de recursos e discussões e também contribuindo de forma significativa na formação de segurança jurídica na sociedade.

Da mesma forma, é difícil compreender a resistência à maior habilitação dos recursos que objetivam tratar da divergência jurisprudencial, afinal eles atuam em um sentido profilático das demandas repetitivas, pois permitem ao Tribunal Superior consolidar entendimento em determinada matéria.

Quando diante da divergência notória, a situação é ainda mais incompreensível, pois, ao fazer operacionalizar a postura defensiva, simplesmente impedindo o conhecimento do recurso, o que se produz é a perda da força e efetividade das decisões dos Tribunais Superiores.

Assim, vai atuando um cenário muito particular em que, a despeito da realidade continuamente demandando estabelecimento de segurança jurídica e maior celeridade na resolução das demandas, as quais se apresentam sempre em elevado e crescente volume, uniformizar entendimentos e buscar efetividade das decisões dos Tribunais Superiores é combatido, deslegitimado, em casos extremos, até ameaçado de punição.

Voltando ao mundo de Deborah em “Nunca lhe prometi um jardim de rosas”, parece haver algo de esquizofrênico em nosso sistema, em que, de um lado constata a realidade e suas exigências, para de outro adotar as medidas que não as combatem, mas, ao contrário as amplificam.

Afinal, como explicar haver segurança jurídica em uma sociedade em que mesmo a jurisprudência consolidada por um Tribunal Superior, pode não ser cumprida por outro órgão do Poder Judiciário, não cabendo reclamação e sendo difícil, quase inviável, o acesso recursal, mesmo ao próprio Tribunal que consolidou a interpretação da matéria, sendo ainda passível de punição o agente que ousar adotar o entendimento consolidado.

Assim, avolumam-se as interpretações díspares e decisões contraditórias, gerando a noção de um falso Estado de Direito, pois, a cada processo, a lei se interpreta de uma maneira, com isso, sendo corroída toda segurança jurídica na sociedade, fragilizada, até mesmo, a noção de impessoalidade.

Igualmente, como imaginar racionalmente ser possível reduzir o volume de recursos aos Tribunais Superiores e demandas repetitivas, se ninguém precisa seguir as interpretações por eles já consolidadas, nada podendo ser realizado a respeito, pois, a reclamação não cabe e qualquer recurso uniformizador será bloqueado em seu conhecimento.

A ameaça punitiva contra integrante do Ministério Público do Estado do Paraná, por cumprir entendimento consolidado por Tribunal Superior, torna contundente o quadro doentio em que se ingressou, no qual todos que atuam no sistema de justiça continuamente combatem retoricamente o volume de processos, porém, ao mesmo tempo, como numa roda de giro interminável, atuam para aumentá-lo.

É como na música de Tiago Iorc (Um Dia após o Outro), “pra começar, cada coisa em seu lugar…quem se soltar, da vida vai gostar”, ou seja, de um lado há a preservação da dignidade e especialidade dos Tribunais Superiores e, de outro, a necessidade inadiável, na sociedade brasileira, de uniformização jurisprudencial, em prol da segurança jurídica e redução dos recursos aos próprios Tribunais Superiores, com isso, inevitável se soltar, liberar de alguns conceitos atualmente interiorizados e provados ineficazes ao longo dos anos, como a excessiva defensividade dos Tribunais Superiores e o preconceito com a consolidação jurisprudencial, seguramente produzindo maior racionalidade jurídica, maior clareza de entendimentos e impessoalidade decisória, algo do qual não há como não se gostar.


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Adel El Tasse
Adel El Tasse
Desempenha a atividade de Magistério na cadeira de Direito Penal em cursos de pós-graduação em diferentes instituições de ensino. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor do Curso CERS (Recife/PE). Mestre em Direito Penal e Doutor em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Membro da Comissão Estadual de Proteção e Direito dos Animais da OAB/PR. Membro da Comissão Estadual de Direitos Humanos da OAB/PR. Membro da Comissão Estadual de Advocacia Criminal da OAB/PR. Conselheiro Municipal de Direitos Humanos de Curitiba. Autor de vários livros e artigos científicos.

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