Os recentes vazamentos de conversas privadas, via aplicativos de smartphones, entre juiz e membros do ministério público, trouxeram ao debate público a questão da exigência da imparcialidade dos magistrados. Nessas conversas vazadas, ficou claro que o magistrado em questão estava atuando como parceiro da acusação, participando da estratégia acusatória. Tudo às sombras e em desfavor da defesa.
Entre jornalistas, comentaristas políticos e até mesmo autoridades do Judiciário que se manifestaram sobre o caso, houve quem sugeriu implicitamente que os fins poderiam justificar os meios, ou seja, que tudo seria válido para se condenar aqueles que se acredita culpados, até mesmo um juiz parcial. Porém, a meu ver, essa proposição não leva em conta suas consequências.
A pena criminal, em especial a privativa de liberdade, é a mais grave intervenção que um Estado é capaz de realizar legitimamente na esfera de direitos de um cidadão dentro de uma democracia. Para que essa pena seja exercida legitimamente, é necessário que esteja motivada por uma sentença penal produzida dentro das regras estabelecidas nas leis processuais penais e na própria Constituição.
Essas regras dizem respeito, em essência, ao que caracteriza um processo penal democrático e estão voltadas a se evitar erros judiciais. O respeito a elas é o que garante a legitimidade do Estado para aplicar uma pena criminal. O desrespeito implica considerar que a aplicação da pena é um exercício de arbitrariedade, um uso indevido da força estatal para satisfazer a vontade daqueles que exercem o poder jurisdicional.
Dentre essas regras, uma das mais elementares é a exigência de imparcialidade do julgador. A ideia da imparcialidade é bastante simples. O juiz deve ser uma pessoa neutra, isenta, sem interesse no resultado do processo. As partes apresentam suas teses a um terceiro desinteressado, conhecedor do direito, que, fundamentadamente, indica quem tem razão e se a acusação é procedente ou improcedente.
A imparcialidade é uma das razões de ser da jurisdição. Sem imparcialidade não há jurisdição legítima. Sem jurisdição não se produz uma sentença condenatória legítima. A imparcialidade é um dos fundamentos da independência judicial. De fato, a inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos e a vitaliciedade se justificam para garantir que esse magistrado sofra o mínimo de influências externas possível. Ou seja, para que seja imparcial.
Mas a imparcialidade é também um dever dos magistrados, uma vez que se trata de um direito das partes. Essas têm direito de serem julgadas por um juiz neutro, que trate acusação e defesa da mesma forma, que não esteja buscando impor uma visão pessoal e politicamente interessada de justiça. Têm direito de exigir que um juiz que se mostra parcial seja removido do processo.
Ademais, a atuação parcial de um magistrado de primeiro grau é capaz de interferir na própria reconstrução dos fatos durante a fase probatória, já que ele participa dessa fase e pode autorizar, indeferir ou produzir de ofício uma prova. Nesse caso, a análise dos juízes das instâncias recursais já estará condicionada a uma realidade probatória viciada.
Por isso, a exigência de imparcialidade é tão importante. Porque a sentença produzida por um juiz parcial é imprestável e sem capacidade de legitimar a aplicação de uma pena. O Estado precisa da jurisdição imparcial, tanto para não cometer erros, quanto para que não se coloque em dúvida a legitimidade democrática de sua atuação. O que está em questão é a democracia. O preço de se flexibilizar a democracia é caro demais.
Autor
André Szesz, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. Professor da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo, em Curitiba (PR).