Coautor: Jeffrey Chiquini. Advogado criminalista. Especialista em direito penal e processual penal. Professor de processo penal da Escola da Magistratura Federal do Paraná.
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, as atribuições da Polícia Federal não se confundem com as regras de competência constitucionalmente estabelecidas para a Justiça Federal (arts. 108, 109 e 144, §1°, da CF/88), sendo possível que infração penal investigada pela Polícia Federal seja processada perante a Justiça estadual. – Jurisprudência em teses edição nº 72
Essa diretriz consta do seguinte julgado:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS VINCULADOS A TRIBUNAIS DISTINTOS. RECEPTAÇÃO DE CARGA TRANSPORTADA ENTRE ESTADOS DA FEDERAÇÃO. 14 TONELADAS DE ALUMÍNIO. ATUAÇÃO DA POLÍCIA FEDERAL NAS INVESTIGAÇÕES. IRRELEVÂNCIA. AUSÊNCIA DE INTERESSE DA UNIÃO, AUTARQUIAS E EMPRESAS PÚBLICAS FEDERAIS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTADUAL SUSCITADO.
O presente conflito negativo de competência deve ser conhecido, por se tratar de incidente instaurado entre juízos vinculados a Tribunais distintos, nos termos do art. 105, inciso I, alínea “d” da Constituição Federal – CF. 2. O núcleo da controvérsia consiste em saber se o fato de a Polícia Federal estar autorizada a investigar, excepcionalmente, um delito interestadual por si só atrai a competência da Justiça Federal. 3. “Nos termos do artigo 144, § 1º, da Constituição Federal e do artigo 1º da Lei 10.446/2002, as atribuições da Polícia Federal não se confundem com as hipóteses de competência criminal da Justiça Federal, sendo certo que as primeiras são bem mais amplas do que as últimas.” Precedentes: RHC 88.187/TO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, DJe 19/12/2018; RHC 57.487/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, DJe 17/6/2016; “Excepcionalmente, possui a Polícia Federal atribuição para apurar infrações penais cujo processamento e julgamento não são da competência da Justiça Federal (CF, art. 144, § 1º, inciso I, parte final), hipótese em que devem ser observados os requisitos da Lei nº 10.446/2002.” (RHC 66.008/BA, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 24/2/2016) 4. Na espécie, considerando o que foi analisado até o presente momento no inquérito policial, extrai-se dos autos de prisão em fragrante que o delito em tese praticado prejudicou apenas o patrimônio particular das empresas Tera Metais Alumínio Ltda. (Itatiba/SP), remetente do alumínio, e da empresa Brasquímica (Candeias/BA) que tinha expectativa contratual de recebê-lo. 5. Assim, à míngua de indícios de violação direta aos interesses descritos no art. 109 da CF, incide o enunciado da Súmula n. 150 do Superior Tribunal de Justiça – STJ, segundo a qual “compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas”. As evidências coletadas até o momento nas investigações não apontam interesse da União de tal sorte que a atuação da Polícia Federal se dá por excepcional autorização da Constituição para repressão uniforme do delito, situação que não desloca a competência do feito para a Justiça Federal. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 3ª Vara Criminal de Juiz de Fora – MG, o suscitado.
(CC 166.600/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/08/2019, DJe 09/09/2019)
Competência da Justiça Federal
Os limites da competência da Justiça Federal estão indicados, basicamente,[1] nos artigos 108 e 109 da Constituição Federal. Nesse sentido, os juízes federais são competentes para processar e julgar[2]: i) as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; ii) as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País; iii) as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; iv) os crimes políticos[3] e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral[4]; v) os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente[5]; vi) a as causas relativas a direitos humanos[6] a que se refere o § 5º do art. 109 da Constituição Federal[7]; vii) os crimes contra a organização do trabalho[8] e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira[9]; viii) os habeas corpus , em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; ix) os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; x) os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves[10], ressalvada a competência da Justiça Militar; xi) os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro[11], a execução de carta rogatória, após o “exequatur”, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização; e xii) a disputa sobre direitos indígenas[12].
Polícia Federal
A segurança pública é exercida[13] pelos seguintes órgãos: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares; e polícias penais federal, estaduais e distrital.
A Polícia Federal, órgão vinculado à União, se destina a realizar as seguintes atividades: i) apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da união ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; ii) prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; iii) exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; e iv) exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da união.
A Lei nº 10.446/2002 trata de infrações penais de repercussão interestadual ou internacional.
Conforme previsão do art. 1º da mencionada lei, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos demais órgãos de segurança pública, realizar a investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais: i) sequestro, cárcere privado e extorsão mediante sequestro se o agente foi impelido por motivação política ou quando praticado em razão da função pública exercida pela vítima; ii) formação de cartel; iii) relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; iv) furto, roubo ou receptação de cargas, inclusive bens e valores, transportadas em operação interestadual ou internacional, quando houver indícios da atuação de quadrilha ou bando em mais de um Estado da Federação; v) falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e venda, inclusive pela internet, depósito ou distribuição do produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado; vi) furto, roubo ou dano contra instituições financeiras, incluindo agências bancárias ou caixas eletrônicos, quando houver indícios da atuação de associação criminosa em mais de um Estado da Federação; vii) quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres.
Além desses casos, a Polícia Federal poderá investigar outros crimes, desde que previamente autorizada pelo Ministério correspondente.
Como apontado, as atribuições da Polícia Federal não se confundem com as regras de competência constitucionalmente estabelecidas para a Justiça Federal. Assim, é plenamente possível que alguma infração penal investigada pela Polícia Federal seja processada perante a Justiça estadual.
[1] “A Justiça comum federal tem sua competência expressamente contemplada na Constituição Federal, sendo que o art. 108, da Carta Magna, trata da competência dos Tribunais Regionais Federais, e o art. 109 elenca a competência dos juízes federais. Trataremos neste tópico da competência da justiça federal de primeiro grau, reservando· nos a tratar dos aspectos mais relevantes da competência dos TRFs dentro do tema competência ratione personae. ” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 391.
[2] Art. 109 da Constituição Federal.
[3] “A ideia majoritariamente aceita pela doutrina e jurisprudência é a de reconhecer a existência de crime político, cuja espécie, nas palavras de Roberto Luchi Demo, “somente se caracteriza quando presentes os pressupostos cristalizados no art. 2º, da Lei no 7.170/1983: motivação política e lesão real ou potencial aos bens juridicamente tutelados””. TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 391.
[4] “Quanto aos serviços, passamos a focalizar a própria atividade do ente federal, a sua finalidade, ao passo que o interesse, talvez a expressão de significação mais ampla, abarca aquilo que está ligado ao ente federal, aquilo que lhe diz respeito. Não é suficiente o simples interesse genérico ou indeterminado para atrair a competência da Justiça Federal, imprescindível, para tanto, existir interesse direto e imediato da União, afastando-se ofensas indiretas, reflexas, que não se coadunem com o parâmetro restritivo para a definição da competência da Justiça Federal. ” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 391.
[5] “Contudo, além da existência do tratado ou convenção, é essencial que a infração praticada transcenda as fronteiras de mais de um país, ou seja, a internacionalidade da conduta é requisito objetivo para a fixação da competência federal. Logo, em que pese a existência de tratado ou convenção internacional, se a infração se limitar às fronteiras brasileiras, a competência será, de regra, da Justiça Estadual. A título de exemplo, o tráfico interno de drogas é de competência estadual, ao passo que o tráfico internacional será julgado pela Justiça Federa. Neste sentido a Súmula no 522, do STF: “salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando então a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e julgamento dos crimes relativos a entorpecentes”. TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 400.
[6] “Temos a previsão de um incidente processual para que se preserve a competência da Justiça Federal resta-nos saber em que circunstâncias ele teria cabimento. A nosso sentir, sendo a competência federal de ordem material, e por consequência absoluta, os juízes e delegados de polícia estadual deveriam, de ofício, declinar de sua competência e atribuição respectivamente, remetendo os autos para a esfera federal, sempre que estiverem diante de infração que afete direitos humanos contemplada em tratado internacional que o Brasil seja signatário. Caso não o façam, abre-se então, ao PGR, como forma de preservar a competência da Justiça Federal, o incidente protetivo perante o STJ. Portanto, esta ferramenta seria apenas mais um instituto para se assegurar a manutenção do juiz natural, já que o próprio magistrado deveria declarar-se ex officio incompetente, assim como as partes poderiam apresentar exceção de incompetência a qualquer tempo, afinal, é critério de competência absoluta. ” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 401.
[7] § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.
[8] “Tais crimes estão previstos nos arts. 197 a 207, do CP, sendo que, só serão julgados na Justiça Federal se houver ofensa à coletividade de trabalhadores. Ofensas que afetem interesses individuais resolvem-se na Justiça Estadual. Nesse sentido, a Súmula n° 115, do TFR, averbando competir à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente. ” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 402.
[9] “No que tange à ordem econômico-financeira, da mesma forma, necessita-se de previsão expressa na legislação ordinária para que haja a apreciação perante a Justiça Federal. As Leis n° 8.137/1990 e 8.176/1991 tratam da matéria, contudo, por ausência de previsão nos respectivos textos, os crimes nelas previstos serão apreciados, em regra, na Justiça Estadual. Subsiste o julgamento na seara federal quando estas infrações afetarem bens, serviços ou interesses de ente federal, por aplicação do inciso IV, do art. 109, da CF/1988” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 403.
[10] “O conceito de navio pode ser encontrado a partir do art. 11, da Lei no 2.180/1954. A conjugação da aptidão à realização de viagens internacionais e o grande porte é que nos podem dar segurança na identificação das embarcações consideradas propriamente navio. Estão de fora as canoas, lanchas, botes, etc. As infrações ocorridas em embarcações de pequeno calado serão apreciadas na esfera estadual. Já o conceito de aeronave nos é dado pelo art. 106, da Lei no 7.565/1986 (Código Brasileiro de: Aeronáutica), ditando que se considera aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas. Como a CF/1988 usou a expressão genérica aeronave, sem fazer distinção; o porte e a autonomia são irrelevantes para a definição da competência federal. ” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 404.
[11] “Asseverando o art. 22 da CF/1988, em seus incisos XIII e XV, respectivamente, que cabe à União legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização, e também sobre a emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiro, natural que as infrações afetas ao alienígena para legitimar o seu ingresso ou permanência irregular no país, sejam apreciadas pela Justiça Federa. É oportuno lembrar que a conduta de ingressar ou permanecer ilegalmente no país, em si mesma, não é tipificada como crime, tendo natureza de infração de cunho administrativo, a merecer reprimenda desta natureza. O que será apreciado na Justiça Criminal Federal são as infrações penais perpetradas para a consecução da permanência ou do ingresso irregular no Brasil. ” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 404.
[12] “Se o crime contra o índio envolver disputa de direitos indígenas e, nesse contexto, qualificar-se como delito contra a vida, a competência será do Tribunal do Júri Federal. Quando há tal interesse coletivo, surge para a FUNAI (Fundação Nacional do índio) o interesse em prestar assistência aos índios envolvidos, eis que é órgão tutor dos silvícolas não integrados (Lei no 6.001/1973, art. 2°). Caso o crime cometido seja de genocídio contra índios (tipificação disposta na Lei no 2.889/1956), é relevante distinguir: se o crime de genocídio contra grupo indígena se deu em concurso formal próprio ou impróprio […] “ TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 405.
[13] Art. 144 da Constituição Federal.