Segundo os autos de um processo, dois clientes compraram passagens entre São Paulo e Brasília pretendendo embarcar no aeroporto de Guarulhos, mas acabaram selecionando o aeroporto de Viracopos, em Campinas/SP, para o embarque por engano. Por conta disso, tiveram que comprar novas passagens de ida com embarque em Guarulhos.
Na viagem de volta, eles foram informados de que não poderiam embarcar, pois suas reservas haviam sido canceladas por motivo de “no show” no momento de ida, e tiveram de comprar novas passagens de volta.
Por conta disso, entraram com pedido de indenização por danos morais e materiais na Justiça.
Os pedidos dos dois clientes foram julgados improcedentes nos juízos de 1º e 2º. Para o TJ-SP, não houve abuso, venda casada ou outras violações ao CDC no caso. Assim, os requerentes interpuseram recurso especial no STJ.
Ao analisar o caso, ministro relator Marco Aurélio Bellizze, destacou que os artigos 39 e 51 do CDC, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, estabeleceram as hipóteses das chamadas práticas abusivas, que consubstanciam abuso no direito de contratar diante da vulnerabilidade de uma das partes na relação – no caso, o consumidor.
O relator considerou que a prática de cancelamento unilateral da passagem de volta em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show) configura prática de venda casada, incidindo na hipótese prevista no artigo 51 do CDC.
Com isso, Bellizze entendeu que a prática é abusiva e está em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, votando por dar provimento ao recurso especial dos consumidores. O voto foi seguido à unanimidade pela 3ª turma do STJ. (Com informações do Migalhas.)
Processo: REsp 1.699.780 – Ementa (Disponível para download)
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS. AQUISIÇÃO DE PASSAGENS DO TIPO IDA E VOLTA. CANCELAMENTO AUTOMÁTICO E UNILATERAL DO TRECHO DE VOLTA, TENDO EM VISTA A NÃO UTILIZAÇÃO DO BILHETE DE IDA (NO SHOW). CONDUTA ABUSIVA DA TRANSPORTADORA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 51, IV, XI, XV, E § 1º, I, II E III, E 39, I, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESSARCIMENTO DAS DESPESAS EFETUADAS COM A AQUISIÇÃO DAS NOVAS PASSAGENS (DANOS MATERIAIS). FATOS QUE ULTRAPASSARAM O MERO ABORRECIMENTO COTIDIANO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A controvérsia instaurada neste feito consiste em saber se configura conduta abusiva o cancelamento automático e unilateral, por parte da empresa aérea, do trecho de volta do passageiro que adquiriu as passagens do tipo ida e volta, em razão de não ter utilizado o trecho inicial.
2. Inicialmente, não há qualquer dúvida que a relação jurídica travada entre as partes é nitidamente de consumo, tendo em vista que o adquirente da passagem amolda-se ao conceito de consumidor, como destinatário final, enquanto a empresa caracteriza-se como fornecedora do serviço de transporte aéreo de passageiros, nos termos dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor – CDC. Dessa forma, o caso em julgamento deve ser analisado sob a ótica da legislação consumerista, e não sob um viés eminentemente privado, como feito pelas instâncias ordinárias.
3. Dentre os diversos mecanismos de proteção ao consumidor estabelecidos pela lei, a fim de equalizar a relação faticamente desigual em comparação ao fornecedor, destacam-se os arts. 39 e 51 do CDC, que, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, estabelecem, em rol exemplificativo, as hipóteses, respectivamente, das chamadas práticas abusivas, vedadas pelo ordenamento jurídico, e das cláusulas abusivas, consideradas nulas de pleno direito em contratos de consumo, configurando nítida mitigação da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda).
4. A previsão de cancelamento unilateral da passagem de volta, em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show), configura prática rechaçada pelo Código de Defesa do Consumidor, nos termos dos referidos dispositivos legais, cabendo ao Poder Judiciário o restabelecimento do necessário equilíbrio contratual.
4.1. Com efeito, obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais (CDC, art. 51, IV). Ademais, a referida prática também configura a chamada “venda casada”, pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo do “trecho de volta” à utilização do “trecho de ida” (CDC, art. 39, I).
4.2. Tratando-se de relação consumerista, a força obrigatória do contrato é mitigada, não podendo o fornecedor de produtos e serviços, a pretexto de maximização do lucro, adotar prática abusiva ou excessivamente onerosa à parte mais vulnerável na relação, o consumidor.
5. Tal o quadro delineado, é de rigor a procedência, em parte, dos pedidos formulados na ação indenizatória a fim de condenar a recorrida ao ressarcimento dos valores gastos com a aquisição da segunda passagem de volta (danos materiais), bem como ao pagamento de indenização por danos morais, fixados no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada autor.
6. Recurso especial provido.
(STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.699.780 – SP (2017/0238942-0) RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE RECORRENTE : XXXXXXXXXXXXXXXXXX RECORRENTE : XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX ADVOGADOS : FABIO SCOLARI VIEIRA E OUTRO(S) – SP287475 FERNANDA SCOLARI VIEIRA – SP387313 RECORRIDO : XXXXXXXXXXXXXXXXX ADVOGADOS : GUSTAVO ANTÔNIO FERES PAIXÃO – SP186458 FERNANDA RIBEIRO BRANCO – SP294856 NOELY EMILIA OLIVEIRA COSTA E OUTRO(S) – SP315396. Data do Julgamento: 11 de setembro de 2018.)