O policial militar do estado do Ceará Darlan Abrantes teve a carreira destruída depois de publicar um livro, de forma independente, afirmando que a Polícia Militar (PM) deveria ser desmilitarizada. Na publicação, ele afirmava que o Brasil tem uma Polícia Militar medieval e que “ao policial de baixa patente não é permitido pensar”. Em função da publicação do livro, ele foi condenado a dois anos de prisão e acabou expulso da corporação em 2014. O comando-geral no estado alegou que a publicação continha “graves ofensas” e que, ao publicá-lo, Darlan demonstrava “total indisciplina e insubordinação”.
O caso de Darlan – que tinha um comportamento considerado excelente – não é exceção e integra relatório divulgado esta semana pela organização não governamental Human Rights Watch (HRW) cobrando das autoridades brasileiras a reforma de leis. Para a ONG, a legislação atual impõe punições desproporcionais a PMs que se manifestem politicamente ou façam reclamações públicas.
“Aqueles que enfrentam diariamente o crime nas ruas podem oferecer perspectivas valiosas sobre as políticas de segurança e reforma policial e devem ter o direito de expressar suas opiniões sem o receio de serem punidos arbitrariamente”, disse a diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch, Maria Laura Canineu, em nota. Ela defende que o país considere novas abordagens à segurança.
Por serem consideradas forças auxiliares do Exército, os policiais militares estão submetidos ao Código Penal Militar. O documento é de 1969 e teve origem no Ato Institucional número 5 – um dos mais duros instrumentos do regime militar.
Controverso, por anteceder a Constituição, o código é alvo de projetos de lei que cobram a sua atualização, junto com os regimentos disciplinares – leis estaduais que também datam da ditadura.
O autor de uma das propostas, deputado federal Subtenente Gonzaga (PDT-MG), diz que a medida pode frear punições exageradas como a prisão administrativa e assegurar o direito de defesa em casos de “insubordinação”.
De acordo com a Human Rights, leis internacionais permitem aos países impor restrições à liberdade de expressão de integrantes das forças de segurança, em nome da segurança nacional. Porém, não autorizam sanções desproporcionais à gravidade das infrações. A organização também defende que os policiais brasileiros tenham acesso a uma defesa justa com análises imparciais dos recursos.
Ex-chefe do Estado-Maior da PM fluminense o coronel Robson Rodrigues da Silva, atualmente na reserva, vem alertando para a questão. Estudioso de políticas de segurança, ele avalia que os códigos disciplinares estão atrasados e permitem decisões subjetivas.
“Muitas vezes, o policial fica ao sabor de desejos, às vezes, até sádicos, dos superiores”, critica. “Punir por punir, por orgulho de superior em relação ao subordinado, só para autoafirmação, para confirmação da hierarquia, é anacrônico e equivocado”, afirmou o coronel, que, após 31 anos na PM, se dedica ao doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Desobediência
No Rio, a Defensoria Pública do Estado, responsável por defender policiais e bombeiros processados com base no Código Penal, denuncia ainda que a maioria dos crimes na Justiça Militar é por desacato à autoridade e indisciplina. Farda mal passada e a participação em movimentos políticos são atitudes consideradas crimes.
Em dezembro de 2016, o subtenente do Corpo de Bombeiros Mesac Eflain ficou detido no quartel após denunciar à imprensa condições precárias nos refeitórios da corporação. A instituição argumentou que o militar causou uma “percepção de insegurança em toda a população”.
Eflain foi solto dez dias depois, por meio de um mandado de segurança apresentado à Vara de Fazenda Pública, órgão civil, que referendou o direito à liberdade de expressão do bombeiro. Na Justiça Militar, todos os recursos foram negados. “A prisão de Mesac foi um claro caso de perseguição e de retaliação ao direito de expressão, prova que as leis militares precisam ser recepcionadas pela Constituição”, disse, à época, o defensor público Thiago Belotti.
De acordo com a Human Rights Watch, o código penal militar e os códigos estaduais não especificam quais ações constituem incitação à desobediência e indisciplina, por exemplo. “Isso confere aos promotores ampla margem de interpretação para criminalizar manifestações de opiniões críticas”, disse a entidade no relatório.
Com a interdição do debate nas corporações, a ONG alerta para a dificuldade de enfrentar abusos cometidos pela PM. Em entrevistas à entidade, policiais criticaram a estrutura e o treinamento militares que “perpetuam a visão de policiais como heróis” e podem levar ao uso excessivo da força em comunidades pobres, além de alto nível de estresse entre os policiais.
O governo federal, em 2010, recomendou que os estados reformassem regulamentos militares e garantissem aos policiais o direito de se manifestar, além de participar da elaboração das políticas públicas de segurança. O Ministério da Justiça, no entanto, não informou à Agência Brasil como tem monitorado a convocação e apoiado o trâmite de leis nesse sentido.