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O direito ao esquecimento e suas condições de incidência

Créditos: the-lightwriter / iStock

Esteve em julgamento o chamado caso Aida Curi, no qual discute-se o direito à indenização dos irmãos de uma jovem, assassinada depois de uma tentativa frustrada de estupro aos dezoito anos, no ano de 1958, em razão de uma emissora de televisão ter feito um programa sobre o caso. Os irmãos da vítima pediram indenização pelo sofrimento e constrangimento causado por rememorar e novamente levar o público a tragédia familiar.

Haveria um direito ao esquecimento capaz de fundamentar tal indenização? Vejamos.

Caracteriza-se tal direito como uma faculdade de excluir do conhecimento de terceiras informações verdadeiras que, em razão do decurso do tempo, se tornaram irrelevantes para o público.  Como bem colocam Fujita e Barreto Junior, não se trata de rescrever a história, mas de discutir o modo e a finalidade com que os fatos são divulgados (2020, p.15). Apesar de a expressão direito ao esquecimento ser bastante discutida, o uso já foi consagrado.

Os primeiros reconhecimentos de tal direito de que se tem notícia ocorreram na França, primeiro em 1965 e depois em 1983, embora o tema já tenha sido ventilado em casos anteriores (SARLET, 2018, p. 492). O caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados e Gonzales, foi estabelecido o dever do provedor de busca de desindexar determinada informação relativa a um fato do passado que consistisse na violação de direitos individuais (FUJITA; BARRETO JUNIOR, 2020, p. 16-17), embora sem mencionar o direito ao esquecimento (SARLET, 2018, p. 493).

Antes disso, o nosso Superior Tribunal de Justiça já havia, em 2014, no caso “Chacina da Candelária”, reconhecido o direito ao esquecimento do autor, que havia sido citado em documentário sobre a referida chacina, mesmo após ser absolvido. De acordo com o relator, Min. Salomão, embora o fato fosse histórico e relevante, não havia necessidade de identificar o demandante, prejudicando sua reinserção social. (SARLET, 2018, p. 508-509)

A legislação da União Europeia, da França, do Estada da Califórnia prevê, em alguns aspectos o direito ao esquecimento (FUJITA; BARRETO JUNIOR, 2020, p.16-19). Também podemos encontrar aspectos deste direito no Brasil, ns Códigos Penal e de Processo Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor e Código Civil, além do Marco Civil da Internet (SARLET, 2018, p. 499-500) e da Lei Geral de Proteção de Dados.

Em audiência pública nos autos do referido recurso extraordinário no qual se discute a pertinência ou não do direito ao esquecimento no nosso sistema jurídico, em especial enquanto direito fundamental, três posições se destacam. (SCHEIBER,2017).:

Pró-informação: não existe um direito ao esquecimento, ausência de fundamento jurídico e prejudicial para memória do povo.

Pró-esquecimento: o direito ao esquecimento deve prevalecer sobre o direito à informação sempre.

Intermediária: deve haver uma ponderação entre a liberdade de informação e a privacidade.

O direito ao esquecimento, como todos os direitos humanos, é decorrência da dignidade da pessoa humana, característica intrínseca do sujeito que o torna um fim em si mesmo, um bem em si mesmo, não podendo servir simplesmente de meio para a satisfação de qualquer interesse, por, mas nobre que seja. Mais especificamente, pode ele decorre do direito à privacidade, mas também à intimidade, ao nome e ao desenvolvimento da personalidade. Está relacionado com o direito de estar só, de não sofrer influências indevidas em seus assuntos particulares, base do direito à privacidade. (DIVINO; SIQUEIRA, 2017, p. 220.) Ainda pode-se encontrar fundamento no direito à autodeterminação informativa, reconhecido pelo STF no julgamento no ano passado, C), com base em Sarlet e Ferreira Neto (2018). Este último direito consiste no indivíduo ter controle sobre as informações que disponibiliza para terceiros, em especial online.

Então, parece muito razoável defender a existência de um direito ao esquecimento com implícito na constituição, baseado na tutela da vida privada e da intimidade, assegurados no art. 5º, X da Constituição Federal, bem como do direito a autodeterminação informativa. Como bem aponta Maldonado, nem toda informação que interessa ao público é de interesse público (2017, p. 63). Se por um lado não se pode ter um critério único para fazer esta distinção a priori, o que poderia ter como consequência a indesejável e inconstitucional censura, por outro é possível, a partir da existência do Outro com deveres para o sujeito (LEVINAS, 2004) entender que certas informações dizem respeito, exclusivamente, ao sujeito, visto que não contribuem em nada para a compreensão do passado, do presente ou do futuro da sociedade.

Pensando o direito como uma prática de interpretativa que visa a justiça, o direito ao esquecimento é resultado de uma análise dos fundamentos de moralidade política (DWORKIN, 1999) que fundamentam o nosso sistema.

Afirma o Ministro Toffoli que o decurso de tempo não é suficiente para que se possa inviabilizar o acesso e a circulação de informações obtidas de forma lícita. Entretanto, o direito ao esquecimento não consiste simplesmente em excluir a circulação da informação. O que se assegura com este direito é que a informação, que em decorrência do decurso do tempo tenha deixado de ser de interesse público, sendo apenas objeto de curiosidade, seja esquecida.

O direito ao esquecimento, assim como a liberdade de expressão e do direito à informação é um direito abstrato (DWORKIN, 1999), ou seja, ele é um direito reconhecido pelo sistema, considerado em si mesmo, sem comparação com outros direitos.

Pois bem, o próprio Ministro Toffoli reconhece que o direito à informação e a liberdade de expressão podem ceder em razão da proteção da privacidade. Acresce, é verdade, que o tempo não é o fator determinante para este reconhecimento. Entretanto, o tempo pode de fato transformar uma informação de interesse público em uma informação que diz respeito à vida privada do sujeito.

A definição do caso concreto somente pode ser feita através do  máximo de proporcionalidade (ÁVILA,2003). Em primeiro lugar, deve ser verificado se a restrição à liberdade de expressão e/ou direito à informação (LE/DI) pela retirada de acesso do público a uma informação relativamente antiga vai, de fato, proteger o direito à privacidade (DP) do sujeito supostamente titular do direito ao esquecimento. Se for este o caso, deve-se buscar os meios mais eficientes de proteção do (DP), ou seja, o meio que restringe menos a LE/DI para proteger a privacidade. Por fim, é preciso saber qual o direito que sofreria uma restrição mais forte, a LE/DI para proteger o DP, com a restrição do acesso à informação ou o DP para atingir LE/DI, com a disponibilização de uma informação relativamente antiga sobre o sujeito. O meio menos restritivo dos direitos fundamentais deve ser preferido, eis que como foi dito no início, o fundamento de todos os direitos é a dignidade da pessoa humana.

Por óbvio que se a empresa não puder divulgar o caso, o direito à privacidade será protegido. Mas a questão que surge é saber se seria possível proteger a privacidade sem impedir a expressão jornalística e o direito à informação. Uma alternativa poderia ser não utilizar o nome, mas isso não seria suficiente, visto que o caso era muito conhecido e mesmo que ninguém mais soubesse, a família saberia.

Por um lado, quando se garante um direito ao esquecimento para proteger a privacidade de uma família que já sofreu muito, se restringe o direito de informação da sociedade sobre um tema atualíssimo, que é a violência contra a mulher. Embora o fato seja antigo, o problema é atual. Reconhecer, neste caso, uma situação em que uma determinada informação perdeu a relevância pública é ajudar a esconder uma realidade de violência que não pode ser desconsiderada. Assim, trata-se de uma restrição grave.

Por outro lado, quando se permite o exercício mais amplo do direito à informação e da liberdade de expressão, autorizando que se traga à tona casos do passado por entendê-lo de relevância pública, se está divulgando uma informação que é pública, embora até o advento do programa de televisão não fosse de conhecimento de parte da população. Assim, trata-se de uma restrição média.

Deste modo, pode-se considerar que para que o transcurso do tempo leve ao direito concreto ao esquecimento, é previsto que além disso, o tempo tenha tornado a informação irrelevante para a sociedade como um todo.

Conclui-se que o direito ao esquecimento é uma decorrência da proteção da privacidade e da vida privada, mas que ele só pode ser reconhecido em concreto quando a informação, seja no passado, seja na atualidade, não seja de interesse público. Isso não quer dizer que o direito não exista no sistema, mas que ele precisa de um conjunto de condições fáticas para prevalecer, não tendo o condão de prevalecer a priori  com relação à liberdade de expressão e/ou direito à informação.

Bibliografia

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

DIVINO, Sthéfano Bruno Santos; SIQUEIRAO, Lucas André Viegas Carvalho de. Direito ao esquecimento como tutela dos direitos da personalidade na sociedade da informação: uma análise sob a ótica do direito civil contemporâneo . Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM v. 12, n. 1 / 2017 p.218-236.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FUJITA, Jorge Shiguemitsu; BARRETO JUNIOR, Irineu Francisco. O direito ao esquecimento e a liberdade de informar na Sociedade da informação. Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 2, p. 5, mai./ago., de 2020.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós:ensaios sobre a alteridade. Petrópolis:Vozes, 2004.

MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Baureri: Novo Século, 2017.

SARLET, Ingo Wolfgang. Proteção da personalidade no ambiente digital: uma análise à luz do caso do assim chamado direito ao esquecimento no Brasil. EJJL Joaçaba, v. 19, n. 2, p. 491-530, maio/ago. 2018.

SARLET, Ingo W. e FERREIRA NETO, Arthur M. O direito ao “esquecimento” na sociedade da informação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

SCHREIBER, Anderson. As três correntes do direito ao esquecimento. JOTA, 18 jun. 2017.

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APLICATIONS

Concessão de descanso de 35h entre jornadas semanais afasta horas extras...

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A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho não conheceu do recurso de um moldador mecânico da Wetzel S.A. contra decisão que negou o pagamento de horas extras requeridas sob a alegação de que não usufruiu do intervalo de 35 horas entre as jornadas semanais. Segundo o trabalhador, a empregadora desrespeitava o período, resultante da combinação do intervalo intrajornada de 11 horas (artigo 66 da CLT) com o descanso semanal de 24 horas (artigo 67). O pedido do moldador foi indeferido pelo juízo da 2ª Vara do Trabalho de Joinville (SC) e pelo Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRT-SC). O entendimento dessas instâncias foi o de que a lei, embora assegure 11 horas de descanso entre o fim de um dia de trabalho e o início de outro, não determina sua cumulação com as 24 horas relativas ao repouso semanal remunerado. O TRT ainda analisou planilha, apresentada pelo próprio moldador e concluiu que não houve irregularidade, pois o que deve ser observado é o respeito ao descanso semanal.