Os meios digitais e as informações neles depositadas já fazem parte do cotidiano de boa parte das pessoas. Informações de vida pessoal (nome, e-mail, dados bancários, participação em sociedades, etc) estão integrados ao mundo virtual a partir de websites, redes sociais, aplicativos etc..
Alguns indivíduos utilizam o meio virtual como mecanismo de obtenção de lucros financeiros, enquanto outros preferem expor a intimidade.
Desse modo, pode-se imaginar a quantidade de documentos, fotos, informações e relações jurídicas no mundo virtual, o que traz a seguinte pergunta: o que acontece com esses dados quando o titular falece?
Esse é o ponto de surgimento da questão acerca da herança digital, com destaque para as situações que o titular não tenha deixado a senha de acesso com nenhuma outra pessoa, de modo que há potencialidade de controvérsias jurídicas, com necessidade de adaptar a legislação em vigor para as demandas digitais, inclusive no âmbito sucessório.
Daí é importante trazer os seguintes questionamentos: podem os sucessores (herdeiros e legatários) terem acesso às conversas privadas eletrônicas mantidas por alguém antes do seu óbito? Os sucessores podem manter a continuidade de conteúdo patrimonial do falecido, titular da página?
Para a doutrina, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, não havendo manifestação de vontade do titular de dados, os dados e informações contidos no mundo virtual (eletrônico), devem respeitar a autonomia privada da pessoa, no que concerne ao aspecto de informações de natureza existencial, extinguindo-se com o falecimento
Desse modo, se o usuário não sinalizar o desejo para a plataforma de que as informações ali registradas sejam compartilhadas com alguém da sua escolha, aquilo não passará para outra pessoa. Por exemplo, nas configurações de conta no Google, há opções para contas inativas, com possibilidade de compartilhamento de dados.
No Brasil, já há manifestações do Poder Judiciário acerca do tema, como a decisão negando o acesso da mãe aos dados pessoais da filha falecida, com base no sigilo de correspondências, inclusive digital, de modo que uma eventual quebra de sigilo acarretaria violação à vida íntima da pessoa morta e de outras pessoas com quem ela se comunicou (TJ/MG, Decisão da Vara Única da Comarca de Pompéu, processo nº 0023375-92.2017.8.13.0520). Outro exemplo é o caso no TJSP, que julgou improcedente os pedidos de indenização e reativação da conta por parte da genitora da pessoa falecida, uma vez que a filha optou, em vida, pela exclusão da conta no caso de óbito ( 31ª Câmara de Direito Privado, processo 1119688-66.2019.8.26.0100, relator Des. Francisco Casconi).
No que concerne ao aspecto patrimonial digital, há doutrina que entende que as relações econômicas do titular falecido, angariadas durante sua vida, possuindo repercussão econômica, serão transmitidas aos sucessores. Citam-se a monetização de perfis, moedas virtuais, programa de milhagem de titularidade do falecido, jogos on-line com valores acumulados, negócios virtuais, etc.
É o caso da instagrammer Nara Almeida, com um grande acervo digital, que lucrava bastante. Usava a Internet para vender roupas, usando a si própria como garota-propaganda. Obteve contratos com confecções de São Paulo, quando a sua doença apareceu, momento que Nara estava faturando 30 mil reais por mês.
Desse modo, enxerga-se um panorama de existirem dois aspectos acerca da herança digital: o existencial e o patrimonial. No aspecto existencial, deve-se respeitar a autonomia privada da pessoa falecida, porquanto não quis revelar aspectos personalíssimos, como conversas, fotos e vídeos porventura armazenados em dispositivos ou em servidores. Por outro lado, no aspecto patrimonial, as atividades da pessoa falecida que tenham repercussão econômica serão transmitidas aos herdeiros por integrarem a herança, uma vez que somente relações jurídicas patrimoniais admitem a substituição do sujeito da relação jurídica quando da morte do seu titular.
Por fim, não há previsão regramento específico acerca da herança digital, sequer no Marco Civil da Internet, sequer na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), devendo-se aplicar dispositivos constitucionais e civilistas. No que concerne à LGPD, há recente posicionamento da Autoridade Nacional de Proteção de Dados pela não aplicabilidade da lei de proteção de dados para pessoas falecidas.